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28.11.06

Começou a circular o Expresso 2222...

... que parte direto de Bonsucesso pra depois.


Pra depois de tudo e depois de nada. Pra depois de Gil, depois de mim e depois de você. Nesse trem não há parada, é louca descida declive abaixo, pra dentro do abismo que se fundou da partida à chegada. Os poucos trôpegos e temerários passageiros que ainda restam – uns atiraram-se há pouco das janelas, outros mais sensatos nem embarcaram – tentam manobras tontas e cansadas. As mãos já sangram pelos vidros quebrados in case of emmergency. Freios não tem mais a locomotiva. Engodo foi para sangrar mãos e braços e pernas e coração. Todas as cabines escancaram-se. Todas as valises vieram abaixo. Segredos se espalharam pelo chão do vagão. E lá ficaram em meio aos estilhaços de copos e restos de comidas e cubos de gelos da última bebida exótica de um longínquo país dos trópicos. SOS lançados na vastidão da noite gélida desaparecem e não fazem mais sentido. Nada mais faz sentido nessa viagem. A plataforma de embarque lá atrás ficou, num 26 de abril qualquer. Viagem longa, tormentosa, tortuosa, claustrofóbica – com raros momentos de calmaria, e tantos outros de turbulência ante o descarrilamento inevitável na curva não menos evitável. Que soem todos os apitos na noite. O abismo está mais à frente. Descerrem-se as cortinas às janelas da alma para que não se veja o impacto final. Basta senti-lo. Na imensidão branca dessas terras estrangeiras, arremete o 2222 para seu destino inesperado e escama o gelo dos trilhos. Povoam a cabeça do incauto passageiro das terras quentes canções de Gil e poemas de sua gente: lá de Minas lhe vêm versos terminais e últimos. Como terminal e última é essa viagem da qual muito pouco restará, senão destroços no fundo abissal. Ainda assim os versos lhe chegam aos ouvidos e ele chora de saudade de sua língua....


RESÍDUO

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

(Carlos Drummond de Andrade)
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