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14.2.08

No país do panis et circenses, até Bruna Surfistinha periga virar uma imortal - Parte II



E aí lembrei-me de dois poemas do Pessoa em que se exalta a felicidade que parece haver no "não-pensar". Dois poemas clássicos e bastante conhecidos para os que têm um mínimo conhecimento da boa literatura: "Ela canta, pobre ceifeira" e "Gato que brincas na rua".

"Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

(...)

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !"


Mas eu gosto muito mesmo é do segundo...

"Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu."



Pois é. Parece que o grande barato da coisa é não pensar. É ser ignorante das coisas. São mais felizes, me parece, as pessoas ignorantes.

Por conta da última postagem, um bando acéfalos acorreu para defender a tal Bruna Surfistinha e suas maravilhosas publicações. Não se deram nem ao trabalho de ler o meu texto para verificar que a alusão à puta escritora (ou escritora puta, como queiram) foi mero pretexto para discorrer sobre algo muito mais sério... Mas é como eu disse: são felizes porque são ignorantes... Quisera eu não pensar como eles e, assim, reivindicar para mim também meu quinhão de felicidade. Porque a prova mais cabal de que o pensar é o mal que assola a humanidade é a felicidade que se vê nas crianças (que pensam menos e são mais alegres), nos ignorantes e parvos, nos animais, nos loucos, nas plantas, nos medíocres, etc. São felizes porque não pensam, não vivem querendo fazer ninguém pensar. São puramente instintivos. São cheios de felicidade. Infelizes mesmos somos nós, os literatos, os estetas, os filósofos e os gramáticos, que, não contendo nossa inveja da felicidade ignorante dos medíocres, achamos de lhes impor o pensamento. E para que serve essa coisa de pensar senão para complicar, dividir, desagregar e fazer dos homens os seres mais infelizes da criação? Por acaso alguém já viu um gafanhoto deprimido?... Ou um pé de alface? Ou um leitor de Bruna Surfistinha? Ou um espectador de Big Brother Brasil?...

E por falar em Big Brother Brasil, li um excelnte texto da Bia Abramo na Folha de São Paulo, em que ela discorre justamente sobre esse "temor de pertencer ao esquisito grupo dos que são de ler livro"... livro de verdade.


Pérolas, porcos e patetas

"Graças a Deus, nunca fui de ler livro." A frase, definitiva, é de uma das ilustres celebridades criadas no laboratório do "BBB", um tal de Fernando. É má política ficar indignado com aquilo que já sabemos não ser digno de atenção, mas, ainda assim, por vezes a estupidez dá tais sustos na gente que é difícil ficar impassível.
Neste caso, o mais intrigante não é, evidentemente, o fato de o moço não ser de "ler livros". A cultura escrita não goza lá de muito prestígio entre nós, brasileiros, falando de maneira bem genérica. Se consideramos o microcosmo do "BBB" - gente jovem, considerada bonita, com pendores exibicionistas, ambição de se tornar celebridade e propensa a ganhar dinheiro fácil - o índice deve tender a quase zero.
O mais revelador é o alívio com que ele se expressa, como a dizer: "Graças a Deus não fui amaldiçoado com essa estranhíssima vontade, esse gosto bizarro, esse defeito de caráter". Qual é, exatamente, a ameaça que se pensa haver nos livros, ficamos sem saber, mas o temor de pertencer ao esquisito grupo daqueles que "são de ler livro" fala por si só.
Por outro lado, é nesses momentos de espontaneidade real que o "BBB" tem algum interesse. Embora aqueles que chegaram ao programa não sejam, a rigor, representativos de nada, nessas brechas escapa o que vai na cabeça dessas moças e rapazes, de certa forma parecidos com os que estão do lado de fora.
O desprestígio do conhecimento letrado é marca funda da sociedade brasileira - e quando é formulado com tanta veemência e clareza, é preciso prestar atenção.


(BIA ABRAMO, Folha de São Paulo Ilustrada. São Paulo: 03 de fevereiro de 2008)



Quer saber? Depois de se tomar conhecimento da imbelicidade desse "brother" Fernando e de ler as besteiras e mediocridades nos comentários da postagem anterior, estou começando a achar que melhor mesmo é não pensar. Como já disse Alberto Caeiro (um dos heterônimos do Pessoa), "há metafísica bastante em não pensar em nada"... Deixemos que as bruninhas, as surfistinhas, as putinhas, as plantinhas e os gafanhotos esfreguem sua felicidade chocante nas nossas caras! Que eu, meus amigos, eu já estou cansando de tentar me desvencilhar de tanta mediocridade...


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...


(Álvaro de Campos, in FERNANDO PESSOA. Obra poética completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987)
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