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3.11.08

Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur...

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Terminado todo o processo eleitoral aqui no Rio, quase mergulhei em profunda depressão. Desconectei do Orkut e do MSN por um tempo e fui fazer outras coisas... Era preciso me afastar um pouco da sujeirada toda que foi essa eleição. Opções: ler um bom livro ou fazer as pazes com o dvd player e pôr em dia a paixão pelo cinema... Optei pela segunda. Lembrei-me que havia pegado emprestado com um amigo o box da 1ª temporada de Roma, excelente séria exibida pela HBO. Assisti a dois ou três episódios antes que o tédio me fustigasse. Belíssimo roteiro que mistura personagens históricos e fictícios, um tratamento magistral das questões políticas e a “cidade eterna” hollywoodianamente reconstituída como provavelmente tenha sido: caótica, imunda, perversa, colorida e atraente como uma metrópole do terceiro mundo. Os produtores da série falharam, talvez, na escolha dos atores que a protagonizam (Kevin McKidd e Ray Stevenson): ambos têm o physique de rôle mais para o “Royal Shakespeare” do que para os dois legionários romanos que encarnam. Kevin McKidd é Lucius Vorenus, o centurião (uma espécie de sargento), um cidadão-modelo da República; Ray Stevenson é o soldado Titus Pullo, fanfarrão e mulherengo, chegado a brigas e confusões. Os dois são citados en passant no livro de Júlio César sobre a guerra da Gália como pilares da disciplina romana: embora se odiando, lutavam sempre juntos. A amizade instável dos dois reflete, sem dúvida, a também dividida e conturbada política daquele período. Aliás, a meu ver, o período mais fascinante de toda a história de Roma: a República encontra-se em seus momentos finais, delineada pela apatia e corrupção dos aristocratas no Senado e a ascensão vertiginosa de César. Um César que, apesar de nobre, cresce defendendo as causas da plebe, mas prepara também o caminho para o poder absoluto que seu sobrinho-neto Octavius consolidará como o primeiro imperador. Uma República de poderio inimaginável, cuja busca a qualquer preço pela conquista de um império acabou destruindo os valores tradicionais de austeridade e sacrifício que a tornaram grande, com o aumento das desigualdades sociais e a política se tornando um jogo corrupto de compra de votos e populismo escancarado. Opa!!! Algo lhe soa familiar, caro leitor?! Não à toa, intitulei esta postagem com um dos versos mais famosos das Sátiras de Horácio: “Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur” (“Por que ris? A anedota fala de ti, só que com outro nome”). Pois é, e lá me vejo eu de volta ao tema que procurava esquecer quando decidi me dedicar ao prazer da arte cinéfila!

O resultado dessa eleição no Rio deixou claro uma coisa: nosso novo alcaide é uma bosta! Mas uma bosta que deve ter feito a lição de casa direitinho e, como filho bem nascido que foi, deve ter bebido nos manuais de História numerosos exemplos a seguir: entre eles, sem dúvida alguma, o César romano que aparece na série da HBO (não à toa, seu mentor e criador nos tempos atuais também se chama César!). E aqui uma curiosidade da campanha eleitoral do nosso próximo alcaide: além da corrupção e compra de votos, do populismo escancarado ("Upa pra lá e pra cá... Vigi, que coisa mais linda!"), soube ele tocar demagogicamente num ponto caro para o eleitorado menos informado – a educação! Prometeu mover céus e terra para que nossas crianças tivessem uma educação de qualidade... Bom, até aí nada de surpreendente! Uma das primeiras obrigações de todo governante, imediatamente depois de assegurada a segurança da sociedade (segurança entendida em todos os sentidos: profissional, econômica, social, etc.), seria ocupar-se do bem-estar da geração seguinte. E a educação é, indubitavelmente, o principal pilar desse bem-estar. Entretanto, quando se pensa em discutir o binômio “educação-instrução para a vida”, parece-me que toda preocupação acaba recaindo não raro sobre dois campos do saber: linguagem (aí compreendido, sobretudo, o aspecto formal do ensino da língua materna) e tecnologia (aí compreendidas a Ciência e a Matemática). No momento histórico que vivemos, marcado por desafios cada vez mais complexos no campo da medicina e por ameaças cada vez mais presentes por conta de conflitos e guerras, seria até perdoável essa ênfase em campos que parecem prometer um maior avanço da humanidade. O grande problema, porém, dessa maneira de se pensar a “instrução” me parece ser a subjugação da História a um segundo plano nas escolas e na sociedade em geral. A História é talvez uma das disciplinas mais controversas exatamente por causa de sua natureza mesma: difere da Matemática por estar recheada de argumentos discutíveis em vez de provas concretas; mas difere também da Ciência justamente por apresentar fatos contra os quais nenhuma quantidade de experiências pode provar qualquer coisa conclusiva. A História convida a uma releitura constante. A História é talvez, de todas as disciplinas, aquela em que o maior número de idéias opostas podem harmonizar-se e serem aceitas como legítimas. Até mesmo o estudo das religiões é um produto da maleabilidade histórica, faz parte do reino da História. E essa maleabilidade histórica se traduz de várias maneiras: ninguém pode discutir, por exemplo, que o Império Romano caiu; há dúzias de teorias sobre por que caiu, quando caiu, e como caiu, e a maioria destas teorias é legítima porque não se excluem umas às outras. Eis por que entendo que a História seja a disciplina mais importante na instrução escolar. Precisamente porque não é algo tão concreto quanto a Matemática ou a Ciência; porque não exige a memorização de equações nem tem uma desconexão com a emoção humana: é o percurso da humanidade desde lá do seu início, o relato de tudo que experimentamos desde nossos primeiros passos sobre a Terra; mostra de quão longe viemos em nossa compreensão coletiva do que é a vida e de como estabelecemos o valor das coisas. Mas, sobretudo, nos ensina onde erramos no passado e como podemos evitar tais erros no presente e no futuro. A instrução que relega a História ao segundo plano encontra-se, irremediavelmente, em total desconexão com o futuro e seus avanços; tornando a sociedade vítima de falhas econômicas e sociais... E o que é mais triste: perplexa diante de tais falhas e ignorante de suas causas!
O não conhecimento da História permite que loucos a manipulem a seu bel-prazer. As religiões todas estão, talvez, entre os maiores deturpadores da História por não tentarem compreendê-la em suas múltiplas possibilidades; mas por tentarem fazê-la caber no espectro estreito de seu sistema e de seus dogmas. Não só a religião padece desse mal que é o desprezo pela História, entretanto: a política, quando lhe convém, consegue ser igualmente perniciosa. Nunca haverá nenhum substituto para o conhecimento histórico (nem mesmo o filosófico e o literário, creio eu), e a ausência deste conhecimento significará campo fértil para a desonestidade e a corrupção; o que fará da humanidade uma sucessão de gerações de palhaços ignorantes que vêem o mundo através de suas próprias vidraças embaçadas, pensando tratar-se da realidade... Sem o conhecimento da História, estaremos fadados a viver na Matrix!

A mesma Matrix que parece ter cegado boa parte do eleitorado carioca no último pleito... Atribuir ao adversário a intenção de deitar por terra “valores cristãos e morais” já seria suficiente para deixar boquiaberta qualquer pessoa razoavelmente informada e capaz de juntar dois mais dois. Mas o mais chocante é que alguém possa ter concebido, em pleno 2008, uma campanha baseada na demonização de seu adversário: o discurso é tão vazio de racionalidade quanto a pregação do racismo, da guerra santa ou do nacionalismo do século XIX. O mesmo apelo à irracionalidade aparece no esforço para semear a rivalidade e o ódio entre regiões de uma cidade já tão dividida, como se esta eleição fosse uma disputa entre o Rio menos desenvolvido e Rio orgiástico da zona sul. O recado efetivo do próximo alcaide, ao acusar a elite zona sul de odiar os desprotegidos do subúrbio, não foi contra um grupo concreto e identificável por suas ações. Até por que ele mesmo, nascido e criado na zona sul, apelou para o populismo do César romano e se arvorou o defensor dos pobres, dos fracos e dos oprimidos: até na lama entrou em defesa de seu povo... Só faltou criar uma biografia onde aparecesse acordando cedo, pegando ônibus lotado com a marmitinha embaixo do braço. Ou seja: criou, no seio dessa elite que ele mesmo condenou, um subgrupo que poderíamos chamar de “a elite boazinha e abnegada”. Mas quem seria essa elite podre e preconceituosa? Em que ela se diferenciaria daquela que trabalha, que acorda cedo e que é boazinha, segundo a ressalva do nosso futuro alcaide? Mais uma vez a História nos mostra que os pregadores do racismo, por exemplo, nunca deixaram de reconhecer a existência de negros bonzinhos e respeitosos. Mas a mensagem eficiente deles sempre foi a do ódio racial, a do apelo à irracionalidade e aos sentimentos mais perigosos... Muito perigoso todo e qualquer discurso que prega o separatismo, ainda que se façam ressalvas canalhas!

Diante do que foi esse pleito na cidade do Rio de Janeiro, resta-nos a perplexidade diante do estado de coisas: os loucos não seríamos nós, atentos aos descalabros de toda a História, que olhamos a cena política carioca e apontamos o estado de manicômio em que ela se encontra? Alguém até poderia inquirir: “Por que se incomodar com os loucos? Deixemos os loucos com sua loucura!”. Ora, se a questão fosse assim tão simples, não haveria problema algum. O problema é que os loucos querem se tornar governantes (e aqui no Rio tornaram-se de fato); e, a partir do poder, querem moldar os homens à sua loucura: a isso chamamos de engenharia social. Às vezes dá uma vontade enorme de colocarmos entre nós e o manicômio chamado Rio uma distância segura e higiênica. Mas seria covardia abandonar o barco agora e deixá-lo nas mãos de timoneiros inescrupulosos. Resta-nos a nós continuarmos aqui denunciando periodicamente que o estado de loucura está aumentando e funcionarmos como sentinelas atentos e prontos para, a qualquer momento, medir a vazão do leito de um “rio” que corre o risco de passar por uma enchente. Pois enchente, todos sabemos, não poupa ninguém.

Nunca perdendo de vista a importância dos ensinamentos da História para o esclarecimento das gerações, cabe aqui lembrar Tomás Antônio Gonzaga e suas Cartas chilenas, que narram as desordens do governo de Fanfarrão Minésio, general do Chile, e em cuja “Dedicatória aos Grandes de Portugal” lemos:

Dois são os meios porque nos instruímos: um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da imitação; outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento. Ambos estes meios são eficazes: esta a razão porque os teatros, instituídos para a instrução dos cidadãos, umas vezes nos representam a um herói cheio de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro, coberto de horrorosos vícios.

Entendo que V. Exas se desejarão instruir por um e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro, têm V. Exas os louváveis exemplos de seus ilustres progenitores. Para se instruírem pelo segundo, era necessário que eu fosse descobrir o Fanfarrão Minésio, em um reino estranho!


E no “Prólogo” da obra, Tomás Antônio Gonzaga dá o mesmo recado:

Um D. Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um governador despótico.

(...)

Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo...


Sem medo algum de me acusarem de sensacionalista, ouso prever que o futuro do Rio de Janeiro será de sombras e assombros e, como tal, não deixará de haver assombrações. Além das Sátiras de Horácio lembradas no título desta postagem, cabe aqui outra citação latina: a de Cícero, em De Senectute, que diz que “pares cum paribus facillime congregantur” (“os iguais com os iguais facilmente se juntam”). Somos espectadores de uma alquimia partidária estranha de indivíduos que hoje sorriem entre si, mas que amanhã se devoram. Só a História dirá se estou certo. Essa mesma História da República do César romano. Essa mesma História tão pouco cogitada na instrução escolar. Essa mesma História que nos ensina tal como Horácio: Mutato nomine, de te fabula narratur... Ninguém estará livre de ser cobrado pela cumplicidade que advém da ignorância da História, ainda que esta cumplicidade tenha a forma de um mísero voto, um voto como aqueles que elegeram Hitler.
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