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28.2.07

Sexualidade e repressão

EROS E PSIQUE

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)



Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

(Fernando Pessoa)



(Eros e Psique - Rodin)


O Mito

Existiu uma filha de reis, chamada
Psique, que era belíssima, ao ponto de despertar a inveja da própria deusa do amor, Vênus. Enciumada, Vênus ordena a seu filho Eros que vá até Psique, disfarçado, e a faça apaixonar-se pelo homem mais horrendo e vil da terra, como desforra contra a beleza provocadora de Psique.
Quando Eros encontra Psique para cumprir a vingança, em obediência a sua mãe Vênus, descontrola-se diante da beleza da moça e, descontrolado, espetando-se nas próprias flechas, apaixona-se perdidamente por Psique. Os oráculos transmitem ao rei, pai de Pisque, a orientação de que ela deveria ser levada a um penhasco para viver dentro de um castelo à espera de um esposo. Eros aproveitava-se e à noite, disfarçado, passa a visitá-la para amarem-se, pedindo a Psique que não tentasse conhecê-lo, evitasse vê-lo ou saber seu nome, porque somente assim a relação se tornaria eterna.

As irmãs de Psique, invejosas, convenceram-na que tal amor desconhecido seria na verdade um monstro disfarçado, uma serpente, que a mataria em determinado momento. A ingênua Psique, acreditando, preparou-se com um punhal, para na próxima noite cortar a cabeça de seu amante, o incógnito Eros. Após amarem-se, como de costume, ela decidiu matá-lo enquanto ele dormia. Mas, quando, ao pegar uma lamparina e iluminar a figura para melhor atacá-lo, viu o rosto dele e descobriu que seu objeto de amor era o próprio deus do amor, lindo e jovem, e nada de monstro, segundo a invenção das irmãs. Eros despertou, por ter-lhe caído uma gota de óleo quente da lamparina e viu-se descoberto. Sentindo-se traído em sua confiança, partiu imediatamente em vôo, encerrando a relação com Psique.

Psique, desamparada, tenta o suicídio e decide afogar-se, mas é salva pelo deus
Pan. Este a aconselha a procurar uma cura para seu problema no próprio amor. Psique - que nada sabia sobre o plano de Vênus, a mãe de Eros - foi ao encontro dela, confiante, pedir apoio. A deusa mandou torturá-la de variadas formas, mas ao fim cedeu e decidiu entregar-lhe o filho caso cumprisse quatro tarefas:
1- Separar num dia uma montanha de sementes;
2 - Pegar a lã dourada dos carneiros do deus Sol;
3 - Pegar água de uma fonte guardada por dragões; e
4 - Descer ao mundo dos mortos e pegar a caixa com a beleza da morte e entregá-la a Vênus.

Todas as tarefas foram realizadas, com apoio de muitas forças sobrenaturais, de deuses aliados e compadecidos, mas ao encontrar-se na posse da caixinha que continha a beleza da morte, Psique não resistiu à curiosidade e cometeu a imprudência de abri-la. Nesse instante uma nuvem a faz cair em sono mortal. Enquanto isso tudo acontecia, Eros recupera-se de sua ferida e vai à procura de Psique, encontrando-a desfalecida. Com uma de suas flechas do amor, Eros desperta Psique. Casam-se, com a ajuda de Júpiter, e chegam a ter uma filha chamada
Volúpia.



Há alguns anos, usei este poema do Pessoa e o mito grego para trabalhar com os alunos do Núcleo de Adolescentes Multiplicadores. Queria, com isso, introduzir a questão da sexualidade na puberdade, o despertar da psiquê para as coisas do desejo e do sexo.
O desejo, desiludido com a traição da alma por, não confiando plenamente nele e tão somente nele, ter preferido dar ouvidos ao que os outros (a sociedade) diziam contra ele, resolve dela se afastar. E aí começa toda essa busca interminável, essa luta perpétua entre, por um lado, atender seu apelo e entregar-se ao desejo e, por outro lado, comportar-se como toda alma supostamente deveria, de acordo com o que se exige de sua pretensa castidade. Até o momento que os dois – desejo e alma – descobrem que um não pode viver sem outro, que ambos se complementam, que são um só... para além de toda e qualquer moralidade.
Eis o caráter repressivo que permeia o mito de Eros e Psique (sobretudo quando pensamos na "moralidade cristã", que tão calhordamente se apoderou do mito): dois seres, enclausurados num cubículo e em suas vestes, sem rosto, enlaçados pelas convenções. Encontro sem contato (as bocas não se beijam, beijam trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob os panos que cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da sociedade inteira, vigiando e controlando o pobre casal (o muro a ser vencido).
O que ocorre, porém, é que Eros e Psique não são dois entes separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são um só e mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). No poema de Fernando Pessoa, percebemos isso claramente quando o príncipe destemido busca a princesa encantada para descobrir que ele era ela. Esse desejo de indivisão e de fusão perpétua (quase sempre impossível), o laço que une desejo e alma em terno e profundo abraço (o "processo divino que faz existir a estrada"), é a sexualidade humana, perpetuamente reprimida. E só nos livraremos dessa repressão no momento em que entendermos que quando o desejo nos bate à porta da alma, esta não deve nunca lhe ficar indiferente, temer-lhe suas intenções ou delas desconfiar, sob pena de ficarmos eternamente pela metade...

26.2.07

O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não... A insustentável leveza do ser...


Foi esse meu amigo de nome diferente na foto aí em cima que me fez revisitar A Insustentável Leveza do Ser, título maravilhosa e paradoxalmente imaginado por Milan Kundera. Daniel Sulzbach Szmidt é professor também, leciona História, Geografia e Ensino Religioso lá em Campo Bom/Estrela, na rede estadual do Rio Grande do Sul. Em nossas conversas no MSN, falamos de tudo um pouco: vamos dos papos de putaria típicos dos homens, sobre bunda de mulher e conquistas sexuais às digressões sobre filosofia, Romantismo, medievalismo, poesia, música, etc. Foi ele que me mostrou o poema do Edgar Allan Poe, “Alone”, que postei há algum tempo aqui neste blog. A partir de sua paixão por Kundera, resolvi reler esse romance.

Aplaudido por uns, criticado por outros, A Insustentável Leveza do Ser parece pairar entre o romance filosófico e a mais açucarada narrativa amorosa: retrato de uma época e relato tipicamente ficcional. Mas, acima de tudo, este é um livro que mostra, de maneira ímpar e realista, a dimensão desse misterioso terreno que é o amor.
Um cirurgião tcheco, divorciado, vive envolvido naquilo a que dá o nome de “amizades eróticas”. Conhece Tereza, que trabalha num café, numa viagem que, por obra do acaso, tem que fazer à província. E se apaixonam.
Mas não é uma paixão comum (se é que existem paixões comuns). É antes uma mistura de sentimentos contraditórios, de dar sem saber o que pedir em troca, de infelicidades indefinidas, de vazios mentais cheios de nada, de uma estranha forma de amar traindo, de viver num limbo constante entre a felicidade desmesurada e o precipício.
Viajamos aos bastidores do romance, em que Kundera nos desconcerta e nos fala não como narrador, mas como escritor, não como entidade onisciente, mas como construtor de uma realidade que tem muito de auto-biográfica.
O ritmo da narrativa lembra um compasso marcado pelo peso da leveza introspectiva, e esse compasso parece ir do Andante ao Vivace, a marcação passando do binário ao quaternário, com momentos de “tempo forte”: cruzamos com a cadela de nome inspirado no romance de Tolstoi, imaginamos Sabina, a pintora e irresistível amante de Tomáz, ficamos curiosos por reler O Rei Édipo, nos espantamos com sonhos que pensávamos ser reais e com realidades que não pensávamos ser tangíveis. Refletimos não só sobre o acaso, mas também sobre a alma, a morte e o amor... o amor.
Percebemos um autor marcado pela mão pesada do comunismo soviético, um país (Tchecoslováquia) mergulhado numa profunda crise de identidade e, fundamentalmente, um povo fustigado pelo ódio à ditadura imposta.
Como eu disse há pouco, gostamos, ou não, de Milan Kundera e das suas asserções. Descobrimos que de complicado tem muito pouco, que escreve de maneira simples sobre coisas complexamente bonitas e que gosta de números, de dividir a sua obra de forma a (também) fazer dela um instrumento de análise para a ciência da Numerologia.





“O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se encontrem nele desde o primeiro instante como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis.
(...)

Não se pode, portanto, criticar o romance por seu fascínio pelos encontros misteriosos dos acasos (como o encontro de Vronski, Anna, a plataforma e a morte, ou como o encontro de Beethoven, Tomas, Tereza e o copo de conhaque), mas se pode, com razão, criticar o homem por ser cego a esses acasos, privando assim a vida da sua dimensão de beleza.”


(Milan Kundera, A insustentável leveza do ser)



Essa postagem é dedicada a você, meu caro amigo de nome diferente.

Aquele abraço!

19.2.07

Oh, céus! Sou um “frutinha”!!!!!!

Estava aqui no meu cantinho, sossegado, pensando na vida e vendo a banda passar. De repente, aquela campainha irritante do MSN... Sem querer, esqueci de me esconder e sair do status "on-line"... Alguém me chamava: um chato de galochas que esqueci de bloquear.. ai ai ai... Ok, ok, não havia como fugir, tive que ir falar com a figura. Bem, quem já teve o privilégio de encontrar o Ed aqui on-line no MSN e veio papear, pôde observar que uso uma fonte rosa.... Isso mesmo: rosa. Algum problema? Pois é, mas pra tal figura isso pareceu ser um problema sim. Dei lá as minhas justificativas (não que eu me visse na obrigação de fazê-lo, mas só para ser educado) e continuei com o diálogo. Aliás, diálogo não; monólogo: já que as merdas ininteligíveis que o “péla-saco” escrevia não podiam, nem para o mais imbecil dos imbecis, ser considerado algo digno a levar alguém a considerá-lo um interlocutor. A uma certa altura do "diálogo-monólogo", a anta lança a seguinte pérola: “Ed, vc tem uma mania estranha de mandar beijos e abraços pra todo mundo nos scraps e nos posts do orkut, né?”. Reação de estupefação do Ed aqui: “Como assim estranha, rapaz?”. Pausa de longos minutos (perfeitamente compreensível: a figura devia estar fazendo um esforço enorme para concatenar as parcas palavras e idéias): “Ah, sei lá, isso de ficar mandando beijos pra outro homem me parece coisa de frutinha”... Meu mundo caiu.... OH, CÉUS! EU SOU UM “FRUTINHA”!!!!!!!!!... Hehehehehehe

Mas peraí!!! Quero aqui me rebelar contra essa definição injusta sobre minha pessoa. Por que “frutinha”? Já que é para sê-lo, que o seja pelo menos no grau normal ou no aumentativo: “fruta” ou “frutona”, porra! É isso aí: quero ser uma “fruta” sim. E se me fosse dado poder escolher, eu ia querer ser uma manga. Não uma manga qualquer, uma carlotinha bem pequenininha; mas uma bem grande: uma manga-rosa ou uma manga-espada. E por que exatamente uma manga? Para ser devorado com todo o prazer e deleite por quem me comesse. E manga é uma fruta assim, que a gente come sem culpa nem vergonha, se lambuzando todo: os dedos, as mãos, a boca e a cara... E aquele líquido a escorrer pelo canto da boca e a sujar a roupa e o chão, onde a gente senta como criança, de pernas abertas, a bacia de mangas no meio delas e se regala com o doce sabor da fruta. Se for para me comerem, que me comam assim: com prazer, chupando-me todo, até o caroço. E eu deixando meus fiapos por entre os dentes de quem me devorou tão prazerosamente... E meu caroço seria lançado ao solo, e dele nasceria uma mangueira frondosa, que daria sombra para um corpo cansado e muitos edmilsons-mangas para serem chupados e devorados por quantas bocas que se inebriassem com o sabor único de minha polpa... Que deve ser uma maravilha ser assim tão voluptosamente comido, saboreado e deglutido por alguém!!!!!
Você tem toda a razão, caro amigo-anta do MSN: eu sou não UM, mas UMA frutinha sim... E com muita honra, valeu? Vem cá chupar essa manga, vem! Aposto que você vai querer repetir e repetir e repetir. E sabe por quê? Porque sou um "moreno tropicano e todos querem meu sabor"... Eu hein, Rosa! (ou seria melhor: eu hein, manga-rosa... hehehehe)



Primeira enquete desse blog sem nexo:

Você, caro leitor, se lhe fosse dado ser uma fruta, qual você seria? E por quê?

De como chegamos ao que somos...

O texto abaixo é um apud de um apud. Explico: nas minhas perambulações e garimpagens por blogs alheios (coisa típica de insone, que quando não está tocando punheta, está fuçando na criatividade dos outros), fui cair no blog de uma tal de Hilda, uma mineira de 23 anos lá de Montes Claros. O texto foi enviado a ela por uma tal de Vera (que não faço a mínima idéia de quem seja) e é de autoria de um jovem diplomata, amigo do filho dessa Vera. Ele (o jovem diplomata, não o filho da Vera) escreve no blog Explorador Deitado na Rede e na mesma linha do texto "De minhas origens 4: O Efeito Borboleta", podemos encontrar os textos "De minhas origens 1, 2 e 3" no arquivo de Janeiro de 2006 do referido blog. É grande o texto? Sim, é enorme. Mas, como diz a tal da Hilda, vale a pena colar no Word, imprimir e ler no intervalo da novela, se for o caso... Faz a gente pensar sobre o que é que foi que trouxe a gente pra esse exato momento que estamos vivendo...


De minhas origens 4: O Efeito Borboleta


Eu gosto da idéia de que estou no controle de meu destino. Não que eu possa fazer qualquer coisa ou mesmo tudo que eu quero, há muito mais no mundo que foge completamente a meu controle, mas gosto da idéia de que o que sou é conseqüência de minhas próprias escolhas, para o bem ou para o mal, e que, portanto, em última instância sou o único responsável por onde e como me encontro. Livre-arbítrio é isso aí, uma responsabilidade da porra...

Mas de vez em quando eu tenho que me render a evidências de que talvez a parcela de minha vida sob meu controle seja muito, muito, muito pequena para fazer qualquer diferença. Fatos importantes têm uma causa última em eventos muito, muito, muito remotos e aparentemente inocentes, dos quais ninguém jamais poderia inferir suas conseqüências no longo prazo. Como a historinha da Teoria do Caos, uma borboleta bate as asas aqui e chove em Pequim. A idéia de conseguir ver essas relações de causalidade se aproxima da onisciência, o que em última instância seria paralisante - imagine se você pudesse calcular absolutamente todas as conseqüências de cada um de seus atos, você os cometeria mesmo assim? Seja lá qual for sua resposta, conseguiria dormir de noite?


Por exemplo, a profissão que exerço é resultado da faculdade que cursei. Nem todo mundo que cursou essa faculdade fez a mesma escolha profissional, mas há uma relação direta entre minha graduação e o concurso que prestei. Essas decisões determinam o fato de eu morar em Brasília e determinarão os lugares onde viverei no futuro próximo. Tomei essas decisões consciente de tais, e outras, conseqüências, mas sei que seria um ser completamente diferente se tivesse permanecido em Santos, por exemplo. Provavelmente feliz, mas totalmente ignorante de meu alter-ego candango, da mesma forma que não consigo imaginar como seria hoje meu alter-ego santista.


Porém, essas escolhas acabaram também por determinar uma parcela considerável de meu círculo de amigos, relacionamentos pessoais e profissionais, enfim, se eu não tivesse escolhido a faculdade e a profissão que escolhi, hoje eu estaria falando, saindo, beijando, bebendo e comendo com outras pessoas. De repente, todo meu destino, cada momento do meu dia-a-dia, é resultado de uma tarde preguiçosa e indecisa lendo o Guia do Estudante.


Mas podemos ir mais longe.


A escolha daquela faculdade em particular somente tornou-se uma possibilidade real porque eu tinha domínio de uma língua estrangeira - a esmagadora maioria da bibliografia do curso era, ainda é, em inglês. Comecei a aprender inglês, no Pink&Blue, antes mesmo deste tornar-se Freedom, na mesma época em que fui alfabetizado (fui alfabetizado duas vezes, nas duas línguas, na verdade).


Tanta precocidade, obviamente, não foi escolha minha, foi decisão de meu velho. Uma parcela considerável de meu destino, portanto, é resultado do dia em que meu velho pegou seu filho remelento no colo e disse para ele "Amanhã, você vai começar a aprender inglês" - eu provavelmente sequer tinha consciência da existência de outras línguas - "Por que, papai?" - "Porque é importante, filho".


Vamos levar esse raciocínio às causas últimas.


O que eu só vim a saber muito tempo depois é que eu não fui colocado em uma escola de inglês "porque é importante". A grande frustração da vida de meu velho é o fato de que ele não fala outra língua - fui levado a aprender inglês a fim de sanar um pouco essa frustração. Pais fazem isso, projetam nos filhos suas falhas e frustrações e tentam criá-los de forma que não as repitam - quase sempre dá errado, mas pais fazem isso.


E a frustração de meu pai decorre de um único evento que se passou no Guarujá.


Meu tio foi o primeiro membro da família a viajar para o exterior. Arranhava o alemão e foi mandado pela empresa para a Deutschlândia. No vôo de volta, sentou-se ao lado de uma jovem alemã que vinha para o Brasil sozinha morar com uns parentes e não sabia absolutamente nada de português. Essa menina se perdeu no aeroporto e, solidário, meu tio a ajudou a achar seus familiares, que ficaram extremamente gratos. A demonstração dessa gratidão veio em um convite para passar um dia na casa de veraneio da família alemã, no Guarujá.


O Guarujá então era o balneário da elite paulista, a patuléia se banhava em Santos. Hoje a elite seguiu para o Litoral Norte, Guarujá é sinônimo de farofada e ninguém tem coragem de se banhar em Santos.


Meu tio chamou meu velho, que tinha carro. Pegaram o fusquinha (cuja buzina soava como "Acorda, Maria Bonita") com suas então respectivas namoradas, ambas filhas do Seu Américo, e tocaram para o Guarujá. Estacionaram debaixo de um Chapéu de Sol, bem longe da enorme e intimidadora casa dos alemães, que tinha de tudo: churrasqueira, piscina, mais quartos do que meu velho podia contar, e até mesmo um campinho de futebol.


Tava a alemãozada toda lá, inclusive a menina perdida. Os alemães foram muito gentis, receberam muito bem os quatro. A conversa rolava animada, com um único porém: meu tio era o único que falava alemão.


"Wie geht's?"

"Mir geht's gut, danke sehr! Das buch ist auf der Tisch!"
"Ach so!"

E meu velho foi se sentindo pequenininho, com uma pontinha de vergonha de não poder participar da conversa, ainda que nunca tivesse tido oportunidade de aprender uma língua estrangeira. Então, a pontinha de vergonha virou humilhação quando o patriarca alemão disse com pouco sotaque:


"Que falta de educação, estamos aqui falando alemão, vocês não falam alemão...desculpem-nos... Vamos falar inglês, assim todo mundo entende"


Meu velho se sentiu um merda. Queria enfiar a cabeça na areia, pensou em se jogar na piscina, saiu de perto da alemãozada, tirou suas sandálias Havaianas e foi bater bola sozinho no campinho. Poucas embaixadinhas depois, para tornar o cenário ainda mais ridículo e humilhante, o velho pisou em um enorme monte de bosta dos rottweilers que cuidavam da segurança do patrimônio teutônico. Foi a gota, ele se mandou, puto da vida, ofendido com a humilhação que ele mesmo, sem querer, se impôs.


Naquele dia, embaixo de um Chapéu de Sol no Guarujá, cujas folhas mais macias foram usadas para tirar os últimos resquícios de cocô de cachorro de entre seus dedos, meu velho fez um juramento solene ao crepúsculo. Ainda que fosse tarde demais para ele, jamais seus filhos passariam por isso. Não, seus filhos seriam poliglotas, aprenderiam inglês, conquistariam o mundo depois, e nunca, nunca teriam que se preocupar com merda de rottweiler entre seus dedos.


Meu destino foi selado naquele fim de tarde. O Efeito Borboleta. Tudo que sou, cada instante de meu cotidiano hoje é, de certa forma, conseqüência daquele instante, fruto do fato de meu pai ter pisado na merda. Sou resultado de um monte de bosta.



Não sei por que, mas esse texto calou forte aqui em mim... O quanto o que sou hoje se deve à perseverança de uma única pessoa: minha mãe...
E aí me lembrei de um trecho do poeta Manoel de Barros que costumo usar para me definir... se alguma definição da minha pessoa for possível... hehehehehe


"(...) No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. (...)"


(Manoel de Barros)


16.2.07

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Quem me vê assim caído, fodido e magoado, pode até pensar que eu já era.... mas não, estou apenas fazendo uma retirada estratégica... Que o leão aqui não se entrega, mesmo lhe cortando a juba...
"Sou bravo, sou forte
Sou filho do Norte
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi!"

E todos os filhos da puta que tentarem me sacanear, podem esperar porque...
"O vento que venta aqui
É o mesmo que venta lá

E volta pro mandingueiro

A mandinga de quem mandigar

Mas que malandro sou eu

Pra ficar dando colher de chá

Se eu não tiver colher, vou deitar e rolar


Quaquaraquaquá, quem riu

Quaquaraquaquá, fui eu

Quaquaraquaquá, quem riu

Quaquaraquaquá, fui eu


Ainda sou mais eu"


E "vamu qui vamu" que eu quero mais é botar pra quebrar!!!!




Quando o carnaval chegar

(Chico Buarque)

Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar


PARCEIROS
"E tecemos na junção dos corpos
Uma linda e louca guirlanda."

(Alita Diana)


Jeans justo nas pernas.
T-shirt. Azzaro. Vou.
Respiro. Toc-toc. Espero.
Uau! Cê vai arrasar!
Vamos pela noite
onde todos os gatos
são pardos
negros
brancos...
Olhos e bocas: via que te quero Ápia!
Anjos azuis, boêmios, gaivotas e papagaios.
Desafios à lei do encaixe perfeito...
Milenar... Tão familiar!
Não é bom que o homem esteja só.
Olhai os lírios do campo!
Caras-metades ignoram Selene mãe.
Num impulso te ofereço flores.
Rapte-me. Capte-me uma mensagem à toa.
Te faria um madrigal
um soneto
um rondó
um concreto.
Mas como libertinagem pouca é Bandeira
e a noite põe em cima
o tesão original dos filhos de Deus,
segura essa: ¡Usted me gusta!

(Edmilson BORRET)

15.2.07

Em minha poesia já não tem mais seu nome

"Et dire que j'ai gaché des années de ma vie, j'ai voulu mourir, j'ai eu mon plus grand amour pour une femme qui ne me plaisait pas, qui n'était pas mon genre."
(Proust)





Já Foi

(Cidade Negra)

Te dei a minha vida
E uma parte do meu coração
Esquece as nossas dúvidas
Bom caminho é liberdade
Bom caminho não é prisão

Te dei a minha vida
E uma parte do meu coração
Esquece as nossas dúvidas
Bom caminho é liberdade
Bom caminho não é prisão

Quando o sentimento voa
Bate as asas algo de bom... algo de bom
Sentimento alado,
Choro chorado... uouou
Pare de reclamar da vida
Não adianta se você fez o que fez
Não adianta achar a chave pra partida
Se você não está disposto a correr

Riscou...uoou
Apagou da minha vida...iéiéiéié
Em minha poesia já não tem mais
Já não tem seu nome... seu nome
É... acabou, já foi...já foi
Eu não quero estar só
Mas já estou uoou
Iéiéié é, é... acabou
Chegou ao fim...
Se eu não quero acreditar
A dor me faz despertar... despertar... despertar...
despertar... despertar...


Iéiéié é, é... acabou
Chegou ao fim...
Se eu não quero acreditar
A dor me faz...
Despertar... despertar... despertar... despertar...
Despertar ...


"La passion amoureuse est un délire; mais le délire n'est pas étrange; tout le monde en parle, il est désormais apprivoisé. Ce qui est énigmatique, c'est la perte de dérire: on rentre dans quoi? (...) ... c'est l'épreuve de réalité qui me montre que l'objet aimé a cessé d'exister. Dans le deuil amoureux, l'objet n'est ni mort, ni éloigné. C'est moi qui décide que son image doit mourir (et cette mort, j'irai peut-être jusqu'à la lui cacher). Tout le temps que durera ce deuil étrange, il me faudra donc subir deux malheurs contraires: souffrir de ce que l'autre soit présent (continuant, malgré lui, à me blesser) et m'attrister de ce qu'il soit mort (tel du moins que je l'aimais). Ainsi je m'angoisse (vieille habitude) d'un téléphone qui ne vient pas, mais dois me dire en même temps que ce silence, de toute manière, est inconséquent, puisque j'ai décidé de faire mon deuil d'un tel souci: il appartenait seulement à l'image amoureuse d'avoir à me téléphoner: cette image disparue, le téléphone, qu'il sonne ou non, reprend son existence futile."

(Roland Barthes, Fragments d'un discours amoureux)


End of a love affair
(Billie Holyday)

So I walk a little too fast and I drive a little too fast
And I'm reckless it's true, but what else can you do at the
End of a love affair?

So I talk a little too much, and I laugh a little too much
And my voice is too loud, when I'm out in a crowd
So that people are apt to stare

Do they know, do they care, that it's only that I'm lonely
And low as can be?
And the smile on my face isn't really a smile at all!

So I smoke a little too much, and I drink a little too much
And the tunes I request are not always the best
But the ones where the trumpets blare!

So I go at a maddening pace, and I pretend that it's taking
Your place
But what else can you do, at the end of a love affair?

14.2.07

Sobre homens e corações



"Eu tenho um coração maior que o mundo
tu, formosa Marília, bem o sabes;

um coração, e basta,

onde tu mesma cabes"


(Tomás Antônio Gonzaga)




Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele estale.


(...)

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que homens se comunicam.)


(Carlos Drummond de Andrade)



GRANDEZAS & MISÉRIAS

Nada foi dito.
Pensa-se muito
mas nada é dito.
E teu futuro não espelha
grandeza nenhuma.
No meu coração
sei que a fábula é única.
O tempo passa
a história o enfrenta.
No fundo do meu coração
percebo a miséria de se estar.
No meu coração sei que nada foi dito.
No meu coração - e eu o tenho.
Tu bem sabes, Marília -
eu quase tenho um coração
maior que o mundo.

(Edmilson BORRET)

12.2.07

We'll find a new way of living


Somewhere
(Leonard Bernstein/Stephen Sondhein)

There's a place for us
Somewhere a place for us
Peace and quiet and open air
Wait for us
Somewhere
There's a time for us
Someday a time for us
Time together with time to spare
Time to learn
Time to care
Someday, somewhere
We'll find a new way of living
We'll find there's a way of forgiving
Somewhere
There's a time for us
Someday a time for us
Time together with time to spare
Time to learn
Time to care
Someday, somehow
We'll find a new way of living
We'll find there's a way of forgiving
Somewhere
There's a place for us
A time and a place for us
Hold my hand and we're half way there
Hold my hand
And I'll take you there
Somehow
Someday, somewhere


Por mais doloroso que seja o momento, o "olho por olho, dente por dente" nunca foi nem nunca será a solução. Será que todos embruteceram?

10.2.07

A barbárie de nossa juventude transviada

O que pode haver em comum entre o filme Cama de gato, o caso do menino João Hélio Fernandes de 6 anos e o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos?


O longa de estréia de Alexandre Stockler, Cama de Gato, de 2002, segue alguns preceitos do movimento Dogma 95, dos dinamarqueses Thomas Vinterberg e Lars von Trier, preceitos esses que foram “abrasileirados” no que o diretor paulista batizou de Manifesto Trauma. Privilegiando uma atuação espontânea e natural, os atores parecem não ter recebido um roteiro prévio e a ação se desenrola livre de controle externo, como numa improvisação coletiva. Em Cama de Gato, o apelo sexual serve apenas para criar polêmica e chocar o espectador. Numa cena, o personagem interpretado por Caio Blat faz sexo oral numa colega de escola, com um realismo capaz de colocar em dúvida se na longa cena de estupro, praticado logo depois por ele e outros dois amigos, houve ou não penetração.

Cristiano (Caio Blat), Chico (Rodrigo Bolzan) e Gabriel (Cainan Baladez) são três amigos inseparáveis que se envolvem numa espiral de violência que só tende a aumentar pela completa incapacidade do trio em controlar seus atos. Eles não são assassinos por natureza, mas apenas três garotos mimados de classe média que cometem um crime e se complicam ainda mais ao tentar esconder a autoria.
Cristiano recebe a visita de uma colega, com quem planeja se divertir, sem que ela saiba que seus dois amigos permanecerão escondidos e se apresentarão para um “ménage” quando ela menos esperar. Mas a moça não concorda e acaba sendo estuprada pelos rapazes. Eles perdem o controle da situação e, ao final, percebem que ela está morta (na verdade, ela está apenas inconsciente, mas isso eles só viriam a descobrir mais tarde, quando ateiam fogo ao suposto cadáver para dar sumiço no corpo da jovem).
A mãe de Cristiano chega inesperadamente e o pânico toma conta do filho que tenta impedir que ela suba ao quarto e encontre o corpo da garota. Mas ela se assusta com a aparição repentina de um deles, rola a escada e quebra o pescoço.
Com dois cadáveres em casa, os desastrados amigos se culpam pelo ocorrido e tentam encontrar uma saída para a situação. Eles querem se livrar dos corpos, apagar todos os vestígios que os liguem aos crimes, e ainda encontrar um tempinho para ir a uma festa.
A história chega a parecer cômica por toda sua inverossimilhança. O filme pretende ser uma crítica ao atual estado em que se encontra o país.
Cristiano, Francisco e Gabriel são três jovens de classe média que moram em São Paulo, com a típica alienação juvenil dos dias de hoje. Todos com muitas frases feitas na cabeça e nenhum senso de realidade. Assim que terminam o ensino médio, saem pela noite paulistana em busca de diversão. O filme faz um retrato dos dilemas de uma juventude dos anos 90 e focaliza uma geração diante de um dilema: de um lado uma necessidade quase fisiológica de se divertir; de outro, uma preocupação contínua de se estabelecer em uma sociedade que oferece cada vez menos oportunidades. Na noite de horrores na qual os garotos mergulham, o entretenimento confunde-se com a violência, assim como a preocupação de se estabelecer na sociedade confunde-se com a tragédia humana.


Nesses dias atuais em que jovens arrastam até a morte um menino de 6 anos por 7 quilômetros preso pelo lado de fora ao cinto de segurança de um carro, após terem cometido um assalto; ficamos a nos perguntar para onde caminha a nossa juventude. João Hélio Fernandes foi barbaramente despedaçado, vítima da crueldade de dois jovens: um de 18 anos, outro de 16. O crime ocorreu na noite de quarta, 7 de fevereiro. Por volta das 21h, a comerciante Rosa Cristina Fernandes Vieites voltava em seu carro de um culto em um centro espírita, com os filhos João Hélio e Aline. Ao passar por um cruzamento na zona norte do Rio, foi abordada por dois homens - que mais tarde, presos, diriam à polícia que portavam um revólver de plástico. Rosa e Aline saíram rapidamente do carro, mas a mãe não conseguiu retirar o filho de 6 anos, que sofria de hiperatividade e tinha dificuldades motoras e de fala. No banco traseiro e com cinto de segurança, João Hélio tentava sair do carro quando os ladrões arrancaram. Ficou pendurado no veículo e foi arrastado por um percurso de sete quilômetros, com o carro em alta velocidade e pessoas na rua gritando para que o motorista parasse. Os pneus do carro passaram várias vezes sobre o corpo que ficou dilacerado, com vários ossos expostos e sem a cabeça. O próprio pai de um dos assassinos – Diego, de 18 anos – entregou o filho à polícia.


Bom, os autores de tão bárbaro crime não eram “filhinhos de papai” como os personagens de classe média do filme Cama de gato. O que não diminui em nada a culpabilidade e o caráter hediondo dos atos de Diego e de seu comparsa menor de idade. Mas, gostaria de levar os leitores desse blog a refletir acerca de um e-mail que recebi hoje, onde é questionada a culpabilidade de nossos jovens consoante sua posição social e o seu poder aquisitivo. Assim como no filme Cama de gato, houve há alguns anos atrás um outro crime bárbaro que chocou a nação: um índio foi queimado vivo por jovens de classe média alta em Brasília. E hoje todos eles estão aí livres, sem terem pagado por seu crime também hediondo. Segue o texto do e-mail que recebi:


“Os autores do monstruoso crime que resultou na morte brutal de um menino de seis anos no Rio devem ser colocados lado a lado com os rapazes de classe média alta que há cerca de dez anos queimaram vivo um índio morador de rua em Brasília. Os dois grupos merecem a mesma execração pública, o mesmo tratamento inclemente da mídia e a mesma punição da justiça. Os pais dos rapazes de Brasília, em vez de ficarem usando de artifícios espúrios para descolar empregos públicos com salário inicial de R$ 6.000,00 para seus filhos criminosos (que deveriam estar cumprindo pena), devem mirar-se no exemplo do porteiro que denunciou o próprio filho à polícia no caso ocorrido no Rio. Ou será que o crime de Brasília foi menos monstruoso e menos estarrecedor que o daqui? E alguém ainda acredita que o crescente clima de violência que apavora as cidades brasileiras vai ser resolvido punindo-se apenas aqueles que já nascem castigados por um esquema cada vez mais excludente, cada vez mais injusto, cada vez mais concentrador de renda?”

(Jaime Coelho)



Não tenho a mínima idéia de quem seja Jaime Coelho. O texto, como eu disse, me foi repassado por um amigo via e-mail: mas, sem dúvida, o mesmo nos leva a pensar numa série de coisas que estão erradas nessa nossa sociedadezinha de merda.


Baader-Meinhof Blues
(Legião Urbana)

A violência é tão fascinante
E nossas vidas são tão normais
E você passa de noite e sempre
Vê apartamentos acesos
Tudo parece ser tão real
Mas você viu esse filme também
Andando nas ruas pensei que podia ouvir
Alguém me chamando, dizendo meu nome
Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentindo frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar o próximo é tão démodé
Ô ô ô
Essa justiça desafinada é tão humana e tão errada
Nós assistimos televisão também, qual é a diferença?
Não estatize meus sentimentos
Pra seu governo, o meu estado é independente
Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentindo frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar o próximo é tão démodé


9.2.07

Gota d'água

"Sempre achei interessantíssima a metáfora gasta da "gota d'água". Nem na minha maior curiosidade infantil cheguei a contar quantas gotas d'água, afinal, cabem num copo. Sei que são muitas. Muitas mesmo. E quem pode imaginar que é uma, apenas uma que irá derrubar todas as outras? Algumas pessoas dizem qu eu faço 'tempestade em copo d'água', mas na verdade, eu faço tempestade em GOTA D'ÁGUA, porque um copo inteiro é muita coisa. Uma gota é o suficiente para tornados e enchentes. Desde que, claro, o copo já esteja cheio. Mas o copo não enche do dia pra noite. E é isso que todos esquecem.
(...)

Um dia a gente se apaixona. Pode demorar pra um, ser frequente pra outro, mas é inevitável: seja por culpa Freud, seja por coração burro, todo mundo, cedo ou tarde, se apaixona. E desapaixona. O primeiro namoro não deu certo, tudo bem, bola pra frente. O segundo também não. Poxa vida, mas o segundo era tão legal... O terceiro... O quarto, o quinto, o sexto o décimo! O que acontece? Isso mesmo, bingo! Gota d'água. Existe alguém na vida de todo mundo que é uma gota d'água. Não é igual a ninguém. Transborda. E depois da tempestade, a única verdadeira bonança de que se tem notícias é a sensação de que mais ninguém sera gota d'água. Terá que se encher outro copo, porque aquele passou do limite. E acho muito difícil alguém querer enfrentar outro copo, depois que um sangrou.

A gente compra uma roseira. Linda, estonteante. Murcha. A gente segue o que diz no rótulo, consulta um jardineiro, compra adubo, mas a bichinha resolve murchar. Compra-se outra. Murcha. E assim vai. Gota d'água? Plantas artificiais.

A gente come carne. Muita e sempre. Dá indigestão. Toma remédio. Vomita. É chamado prum churrasco, tenta ir de leve. Dá no mesmo. Vomita mais ainda. Gota d'água? Virar vegetariano.

A gente casa uma vez, leva chifre. A segunda, chifre de novo. A terceira, mais um pouquinho de chifre. Gota d´'agua? Vira-se gay ou põe-se a pôr chifre em todo mundo.

A gente tem um melhor amigo. Decepciona. Passa o tempo, vem outro. Magoa. Uns anos depois, mais um. Some sem explicação. Gota d'água? Rendemos de homenagem a solidão.

As gotas d'águas são bem mais frequentes do que se imagina. Cada pessoa tem seu ritmo. Talvez seja por isso que um não respeita as gotas d'água do outro. Passei por uma enorme gota d'água agora. Enorme que ninguém entende por que é enorme, pois que imaginaram ser só mais uma gota. Porém, quem foi que disse que a gota d'água também não é só gota? A diferença é que a gota d'água esgota.

Toda gota d'água, assim se chama, por fazer-se gota em nossos olhos.
Lágrimas são, uma a uma, gotas d'água. E quando cada uma pinga no chão, a gente sabe (mesmo que não diga) exatamente por que foi. Não mais me importa que me digam que minhas gotas d'águas são sempre invenção. Se for, foi a última gota d'água inventada. Isso é o suficiente para enxugar as gotas de água que caem dos olhos e esperar que aquela gota d'água, tão forte e única e destrutiva, seque. Sim, só quando uma gota d'água seca, é que estamos preparados para recomeçar a encher o copo (ou o saco, se preferirem...). E isso leva tempo. Muito tempo. Tempo suficiente pra que a gota, agora seca, pudesse ter regado a roseira plantada, que ameaçava murchar..."


(Samelly Xavier)



Achei esse texto num dos muitos blogs que pululam por aí (assim como o meu... hehehehe) e adorei. Tanto que resolvi postá-lo aqui. Demais quando ela diz que "toda gota d'água assim se chama, por fazer-se gota em nossos olhos". Também ando colhendo minhas gotas d'água amiúde, às vezes em lencinhos, outras vezes nas costas das mãos mesmo... Que gotas d'água são o adubo necessário para as nossas roseiras do dia-a-dia: puro espinho no longo inverno, mas que belas rosas na primavera!!!





Gota d'água
(Chico Buarque)

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
Pode ser a gota d'água

8.2.07

Música, letra, voz, cabelos e músculos.... adoro essa mulher!!!!

Aqui
(Antônio Villeroy/Ana Carolina)

Aqui
Eu nunca disse que iria ser
A pessoa certa pra você
Mas sou eu quem te adora
Se fico um tempo sem te procurar
É pra saudade nos aproximar
E eu já não vejo a hora
Eu não consigo esconder
Certo ou errado, eu quero ter você
Ei, você sabe que eu não sei jogar
Não é meu dom representar
Não dá pra disfarçar
Eu tento aparentar frieza mas não dá
É como uma represa pronta pra jorrar
Querendo iluminar
A estrada, a casa, o quarto onde você está
Não dá pra ocultar
Algo preso quer sair do meu olhar
Atravessar montanhas e te alcançar
Tocar o seu olhar
Te fazer enxergar e se enxergar em mim
Aqui
Agora que você parece não ligar
Que já não pensa e já não quer pensar
Dizendo que não sente nada
Estou lembrando menos de você
Falta pouco pra me convencer
Que sou a pessoa errada
Eu não consigo esconder...








Não dá pra disfarçar
Eu tento aparentar frieza mas não dá
É como uma represa pronta pra jorrar
Querendo iluminar
A estrada, a casa, o quarto onde você está
Não dá pra ocultar
Algo preso quer sair do meu olhar
Atravessar montanhas e te alcançar
Tocar o seu olhar
Te fazer enxergar e se enxergar em mim



Agüenta, coração!!!!!!!!!

5.2.07

Perto do coração selvagem de Clarice




Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.
(Clarice LISPECTOR. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)



Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é, sem dúvida, um dos livros mais fantásticos que já li. A história de Lóri (Loreley, a sereia germânica que seduzia os navegantes do Reno; a sereia de Campos a quem Ulisses resiste, fechando-se a seus encantos, até que eles mesmos se tornem encantados) nos encanta justamente pelo fato de tudo estar por acontecer. Absolutamente nada é imediato, o conhecimento da personagem se constrói lentamente, como se a natureza estivesse acumulando a seiva da vida, mas sem perder o sentido de sua precariedade. A narrativa parece mostrar o próprio mistério da experiência. E daí talvez advenha o estranhamento da estrutura e da linguagem do romance: ignoramos o início, desconhecemos o fim. A narrativa parte de uma vírgula inicial e original, vírgula essa que tem a forma do nosso ancestral espermatozóide, também original. Vírgula essa que parece sinalizar uma continuação de um não sei quê de desconhecido que apenas aumenta o sentido de precariedade. Enquanto os dois pontos finais fazem dessa narrativa algo extremamente incômodo, isto é, acentuam nosso desconhecimento do fim. Talvez porque Lóri e Ulisses sejam pessoas tão comuns - professora primária, professor universitário - de suas vidas só temos poucas indicações, quadros pintados meio a distância, momentos já vividos. Vidas comuns, mas vividas com intensidade, com o prazer e dor de seres jogados num mundo, onde a felicidade é quase sempre uma ficção. Um encontro, um amor, um caso. Tudo muito humano, "demasiado humano".
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é um livro inclassificável e é impossível qualquer tentativa de comparação. Ao término da leitura, lembrei-me um pouco de A náusea, de Sartre: os dois são livros que falam da angústia do nada, a construção do sujeito pela construção do amor. Mas Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é diferente. A narrativa, apesar de linear, não tem início, meio e fim, porque só tem meio. Como um meio-termo.

Era uma noite muito bonita: parecia com o mundo. O espaço escuro estava todo estrelado, o céu em eterna muda vigília. E a terra embaixo com suas montanhas e seus mares.
Lóri estava triste. Não era uma tristeza difícil. Era mais como uma tristeza de saudade. Ela estava só. Com a eternidade à sua frente e atrás dela. O humano é só.
(Clarice LISPECTOR. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)


O que acontece na verdade com Lóri é que - por algum motivo que nem ela mesma sabe qual - ela tinha, por medo, cortado a dor de sua vida. Só com Ulisses viria aprender que não se podia cortar a dor, senão se sofreria o tempo todo.
Ao contrário dos niilistas que buscavam a verdade, mas não podiam suportar o aparecimento dessa verdade, Lóri constata e aceita a verdade da existência. Reconhece que todo prazer que desconsiderar a dor ou ignorá-la, graças à aparente e passageira plenitude da felicidade, é necessariamente um prazer falsificado. Ou a gente vive essa dor ou corre o risco de viver como a narrativa do romance: sem início e sem fim, só meio. Meio-termo...


Meio-termo

Ah! Como eu tenho me enganado
Como tenho me matado
Por ter demais confiado
Nas evidências do amor

Como tenho andado certo
Como tenho andado errado
Por seu carinho inseguro
Por meu caminho deserto

Como tenho me encontrado
Como tenho descoberto
A sombra leve da morte
Passando sempre por perto
E o sentimento mais breve
Rola no ar e descreve

A eterna cicatriz
mais uma vez
Mais de uma vez
Quase que fui feliz

A barra do amor é que é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo


(Lourenço Baeta / Cacaso)





4.2.07


NÃO SE PERCA DE VOCÊ

Não se perca de você, meu amor
Não é seu esse caminho
que trilham seus pés atônitos
Não coloca esse vazio
nos seus abraços
A água que transborda
de seus olhos virou correnteza
que afoga seu coração
na próxima curva do rio
Não abra assim a sua porta
para a doce mentira
das muitas vozes
Não queira trazer ao colo
todas as crianças
que você se tornou
Não ponha na alma
esse desânimo disfarçado de prazer
Cuidado na estrada, mon enfant
Sua rota de colisão
me faz perder o sono:
esses passos já foram os meus
Não volte muito tarde, meu amor
Seu prato está no forno
A chave no tapete da soleira
Limpe os pés ao entrar
Lave o seu corpo maculado
seu sexo insatisfeito e tosco
Apague as luzes ao vir deitar
E não esqueça que eu te amo

(Edmilson BORRET – 04/02/07)

3.2.07


CONTRA-DANÇA
O importante é o que fazemos com o que fizeram de nós.
(Jean-Paul Sartre)


Não tenho certeza
mas acho que hoje estou feliz
De qualquer maneira
vou me fingir de morto
e não tocar muito no assunto
Vai que essa senhora danada
Tristeza chamada
(que mulher é,
e sortilégios elas têm:
tão suscetíveis!)
resolve me dar uma rasteira...
Para todos os efeitos
foi só um cochilo
do acaso
Algumas plumas na alma
uma certa purpurina no coração
e uma maquiagem discreta
E lá vou eu!
Ainda que o salto quebre
que a meia desfie
terei ao menos
ensaiado uma contra-dança.

(Edmilson BORRET – 03/02/07)

1.2.07

Voltando de Floripa...

Sobre amizades, sobre toques, sobre o tempo necessário para me perceber, sobre a descoberta de mim mesmo...


Aqui estão três pessoas lindas que eu só conhecia virtualmente e que tive o prazer de conhecer pessoalmente em Floripa: meu irmãozão Sílvio, sua esposa Sílvia e a nossa querida e linda Isabel (a Bel). Foi algo inenarrável ter encontrado essas três almas. Conversando com a Bel no MSN, após a minha volta, ela me falou da questão do toque; da necessidade que ela tem de tocar as pessoas, de lhes sentir o calor da pele, e de como ela pegava no meu braço enquanto caminhávamos lá em Floripa. Então, e só então talvez, comecei a me dar conta do quanto não nos permitimos o toque. O quanto temos medo do toque, da reação do outro ao nosso toque, do que ele poderá achar. E assim, nos fechamos em nossas vidinhas cheias de “não-me-toque”. A Bel ficou preocupada com o que eu poderia achar de seus apertos em meu braço enquanto caminhávamos. Eu achei ótimo. Também abracei e toquei muito meu irmãozão Sílvio, acariciei-lhe a barriga e a careca... Hehehehehehe... Foi bom. Foi muito bom.

Essa viagem, mais do que simples turismo, foi a ocasião para eu me repensar sob muitos aspectos. Foram 10 dias afastado do virtual. O que me fez rever certos posicionamentos, apagar alguns medos e soltar algumas amarras. O tempo necessário para o meu tão almejado “exílio do imaginário”. Percebi-me. Pus-me a nu. Literalmente. Fui, pela primeira vez, a uma praia de nudismo. E não só como observador. Tirei a roupa em público. E gostei. Adorei. Sentir-me nu, em contato com o vento, com a água do mar. E saber que ninguém estava nem aí para o meu corpo magro, encurvado e fora de forma. A Praia da Galheta vai ficar para sempre na minha memória como o momento mágico em que rompi meus limites. Foi bom. Foi muito bom.



Voltei um pouco diferente de quando parti. Mais seguro de mim mesmo. Mais confiante. Mais eu. Disposto a novas descobertas. A novas possibilidades. Encontrei amigos novos lá, amigos que só existiam no virtual. Reencontrei amigos antigos cá, ainda no virtual. E percebi, assim, que o virtual e o real são, por vezes, as duas faces de uma mesma moeda. Basta querermos. Foi bom. Foi muito bom.

De repente me veio à mente uma música da Vanusa, meio brega talvez, muito antiga, mas que traduz bem essa minha nova disposição para as coisas.


Mudanças

( Vanusa e Sérgio Sá)


Hoje eu vou mudar
Vasculhar minhas gavetas
Jogar fora sentimentos e
Ressentimentos tolos
Fazer limpeza no armário
Retirar traças e teias
E angustias da minha mente
Parar de sofrer
Por coisas tão pequeninas
(...)


Hoje eu vou mudar

Por na balança a coragem

Me entregar no que acredito

Pra ser o que sou sem medo

Dançar e cantar por hábito

E não ter cantos escuros

Pra guardar os meus segredos

Parar de dizer

"Não tenho tempo pra vida"

Que grita dentro de mim...

Me libertar


Hoje eu vou mudar

Sair de dentro de mim

Não usar somente o coração

Parar de contar os fracassos

Soltar os laços

E prender as amarras da razão

Voar livre

Com todos os meus defeitos

Pra que eu possa libertar os meus direitos

E não cobrar dessa vida

Nem rumos e nem decisões


Hoje eu preciso e vou mudar

Dividir no tempo e

Somar no vento

Todas as coisas que um dia sonhei conquistar

...



E foi bom. Foi muito bom...

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