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30.3.07

Por que, por quem escrevo... II





Adoro nomes
Nomes em ã

De coisa como rã e ímã...


(Caetano Veloso)








De novo o Caê. Ele diz gostar dos nomes em ã... Eu já gosto dos nomes em ente... Não sei por que, essa terminação me fascina. Uma palavra que adoro é premente: o que não permite demora, o que é urgente. Premente rima com gente. Gente pra mim é premente... Adoro gente. Amizade pra mim é premente. Consideração pra mim é premente. Premente é o afeto, o companheirismo, a dedicação ao outro. Disse em outra postagem que escrevo para ser lido e para que meus amigos me amem ainda mais, citando García Marques. Quem escreve descreve-se, é bem verdade. Mas também descreve outros. Descreve os seus pares. Esse retorno ao mesmo tema é para dizer que os entes que fazem a minha escritura é que me dão a minha verdadeira dimensão. Aproveito para pedir desculpa por não estar escrevendo nada tão premente assim nessa postagem. Não que o tivesse feito antes. Mas neste momento menos ainda. Vim aqui hoje mesmo só para comentar sobre os entes queridos. E isso pra mim já é muito...
Nas últimas 48 horas, cedi ao premente de rimar gentes. Já fazia algum tempo que tava querendo escrever esses entes, mas não sabia por onde começar. Havia o desejo, mas faltava a iniciativa, a motivação, o conteúdo… E sobejava a preguiça. No entanto o premente se impunha. Era preciso me dividir. Isso! Escrevo para me dividir... e para me multiplicar. Dividir para multiplicar. Escrevo para dividir com os entes coisas nem sempre tão prementes que vivencio, sentimentos, fatos marcantes, e muitas outras coisas… Enfim, para dividir com e nos entes algo do que eu sou… Nesse dividir-me, nesse partilhar de mim mesmo, espero que esses entes também se sintam motivados a dividir algo de si mesmos, efetuando-se assim a multiplicação da divisão… Sinto que uma onda de gozo me preenche quando me divido em entes… Me preenche tanto, que simplesmente não cabe só em mim… Também quero que o máximo possível de entes possam ter esse gozo premente de serem preenchidos desse jeito, ou de algum outro jeito parecido… Vamos aos entes!!!! Presentes... sempre...



GABRIEL’S HYM(e)N
a Arlete Gabriel

na feminilidade do arcanjo no nome
vem essa mulher de muitas luas
por entre ruas traçadas nos ares
anunciar-nos o gozo das horas
os pés nus a flutuar alçados em asas
por sobre as casas de uma terra outra
refletindo na janela de uma casa estranha
sua própria face desconhecida
ouvindo as vozes de carinhos ausentes
na propulsão de cada gota de sangue
sussurrante como a chuva
a queimar-lhe as veias mudas
que esbravejam para o céu acima
mas ainda assim ela sobrevive
na noite em que todos dormem
mundos encantados em sonhos despertos
em que amigos se saúdam conexos
no bálsamo de um beijo sem destino
que tem o efeito de um hino de graças
amazing grace
how sweet the sound that saved me

from the streets of philadelfia


(Edmilson BORRET – 28/03/07)



ESSA MULHER
a Miriam Assunção

Que me venha essa mulher irmã
nos seus sortilégios incestuosos
de impenetrável castidade pagã
eu menino dos olhos curiosos

Que me venha essa mulher amiga
em seus véus de nudez invisível
de entendimento claro que intriga
eu poeta do verbo raro e risível

Que me venha essa mulher fada
em encantos de bruxa nos dedos
de sorte em vôo de ave lançada
eu mortal de muitos arremedos

Que me venha essa mulher inteira
em suas várias caras e quases
de perícia esbelta e certeira
eu homem de certezas fugazes

Ela tem a magia de um rito druída
Ela tem o colo da casta madona
a flor da pele de Almodóvar assumida
o instante eterno das mulheres da zona

Ela tem o erotismo barroco dos anjos
tem o silêncio esclarecedor dos sábios
de scarlets, gildas e barbarellas os arranjos
de clarices, hildas e anaïs os alfarrábios

(Edmilson BORRET – 30/03/07)

27.3.07

Os hyperlinks do coração... Homenagem ao amigo Othoni.


Vamos criar hyperlinks para o nosso coração e visualizar numa nova janela, de afeição e carinho, o que podemos ter de melhor. Vamos acessar novas possibilidades sem abrirmos mão de algumas antigas. Vamos selecionar o que de novo e bom aparecer nessa nova janela, copiar e colar em nossas memórias. Não vamos fazer dessas novas aquisições arquivos temporários.
O coração, metafórica e metonimicamente, é o músculo involuntário mais voluntário que conheço. Ao mesmo tempo que ele bate por si só, ele bate o que a gente decidir que ele bata. E aí estão os hyperlinks que podemos criar. Uma vez li que, para a tradição semita, o coração é conhecido como um “girador”. O que primeiro poderíamos inferir dessa associação é que o homem seria um ser volúvel e inconstante, voltando-se pra cá e pra lá, ao sabor dos ventos caprichosos de seus impulsos repentinos. Pois, para muitos de nós, o ato de “girar” estaria ligado a disfunções e desvarios mil: “gira” é a pessoa adoidada, amalucada, “biruta” (biruta, como se sabe, é aquele pano cônico dos aeroportos que gira ao sabor dos ventos). Também o famoso insulto “babaca” remete em sua origem - ao contrário do que muitos sacanamente acreditam - ao verbo tupi babak, que significa simplesmente “girar”. Se para muitos, porém, esse “girar” está associado à anormalidade, para essa tradição semita não: o oscilar-se seria a função normal do centro de gravidade do homem: o coração. O girar, o oscilar, o virar... virar a página – eis aí o hyperlink!!!
O árabe aprofunda ainda mais essa questão. Nessa língua linda, literalmente, a palavra para coração, qalb, deriva diretamente de qalaba, que significa “girar”. Para a ocidentalidade, é comum a observação que a condição “normal” do homem anda meio desregulada e que sua bússola, o coração, não pára quieta:

“The heart is like the sky, a part of heaven,
But changes night and day, too, like the sky”

(Lord Byron)

Ainda que sem a associação imposta pela língua (como ocorre no árabe), nossos poetas, vez ou outra, apontam essa característica “giratória” do coração. Assim, em Autopsicografia, após descrever belissimamente os vai-e-vem e reviravoltas a que está sujeito o poeta, Fernando Pessoa conclui:

“E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.”


E em Roda Viva, de Chico Buarque:

“Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração”


E numa surpreendente coincidência com o espírito da língua árabe, diz a canção de Kleiton e Kledir:

“Ah! Vira, virou
Meu coração navegador

Ah! Gira, girou

Essa galera”


García Lorca tem um poema dedicado ao coração-girador. O título bastante sugestivo, Veleta, significa não só cata-vento, mas, metaforicamente, “persona inconstante y mudable”. O poeta, desiludido, dialoga com os ventos: todos chegaram tarde demais e a “veleta” deve, afinal, girar sem ventos...

“Las cosas que se van no vuelven nunca,
todo el mundo lo sabe,

y entre el claro gentío de los vientos

es inútil quejarse.

¿Verdad, chopo, maestro de la brisa?

¡Es inútil quejarse!

Sin ningún viento

¡hazme caso!

gira, corazón;

gira, corazón.”


Mas por que falar de coração justo hoje? Por que considerar o seu movimento giratório como possibilidade de hyperlinks? Porque hoje, exatamente hoje, um grande amigo querido lá da comunidade orkutiana Ame e dê vexame está numa mesa de cirurgia para consertar o seu girador. Os médicos lhe estão criando hyperlinks novos, não tão metafóricos, mas ainda assim possibilidades novas para o seu girar. Ao Othoni, esse nosso grande amigo, dedico esta postagem de hoje. Rezando para que tudo saia bem e para que ele possa em breve estar conosco de novo lá na comunidade.

Mas aproveito a postagem também para insistir na idéia do hyperlink e da possibilidade de se verem as coisas por uma nova janela. Não sendo embora um crente, um cristão de fé, mas enquanto apreciador dos belos textos, recorro a uma passagem bíblica para propor que o grande “giro”, a grande reviravolta do coração humano, só ocorrerá quando se cumprir, como condição prévia, o bom funcionamento de um outro órgão: o ouvido: “Ouvireis, ouvireis, mas não querereis compreender; porque o coração está embotado” (Mt 13, 14-15).

23.3.07


A MEDIDA DOS HOMENS

rasos os olhos dos homens
em que lhes pese a fundura da alma
leves suas horas noturnas
em que lhes pese o peso de anos
montanhosos seus sonhos
em que lhes pese a estatura de homens
esbeltos seus corações prêt-à-porter
em que lhes pese o grasso medo
exatas suas ruas e cidades
em que lhes pese o passo torto
rijas suas certezas poucas
em que lhes pese a carne trêmula
áridos seus terços e novenas
em que lhes pese o úmido sexo
decotadas suas ingratas atitudes
em que lhes pese o recato da amizade
canhotos seus descuidados encontros
em que lhes pese a destreza do amor
de resto resta-lhes a medida
de músculos
de sangue
de carne
de pêlos
de ossos

em que lhes pese a medida de pó

(Edmilson BORRET)

21.3.07

Segue o teu destino...


cursum vitae

"A realidade
Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos."

(Ricardo Reis)


vida vai
e vida vem
e a gente aqui
no meio da vida
esperando da vida
que conosco ela divida
a sabedoria adquirida
ora, a vida convida
é essa sua lida
à gente cabe
que a viva

(Edmilson BORRET – 21/03/07)



Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(Fernando Pessoa, in Odes de Ricardo Reis)

19.3.07

Hoje não dá...


Os Anjos
(Renato Russo)

Hoje não dá
Hoje não dá
Não sei mais o que dizer
E nem o que pensar
Hoje não dá
Hoje não dá
A maldade humana agora não tem nome
Hoje não dá
Pegue duas medidas de estupidez
Junte trinta e quatro partes de mentira
Coloque tudo numa forma
Untada previamente
Com promessas não cumpridas
Adicione a seguir o ódio e a inveja
As dez colheres cheias de burrice
Mexa tudo e misture bem
E não se esqueça: antes de levar ao forno
Temperar com essência de espirito de porco,
Duas xícaras de indiferença
E um tablete e meio de preguiça
Hoje não dá
Hoje não dá
Está um dia tão bonito lá fora;
E eu quero brincar
Mas hoje não dá
Hoje não dá
Vou consertar a minha asa quebrada
E descansar
Gostaria de não saber destes crimes atrozes
É todo dia agora e o que vamos fazer?
Quero voar p'ra bem longe mas hoje não dá
Não sei o que pensar e nem o que dizer
Só nos sobrou do amor
A falta que ficou.


É isso, amigos. Sinto muito, mas hoje não dá. Quem sabe amanhã.

17.3.07

VERSOS DE DESENCANTO

Enquanto em versos canto
(cantava!)
aos quatro cantos
teus mil encantos
conseguiste como
que por encanto
plantar no meu verso
o desencanto
E vens agora me dizer
sei lá de que canto
que minha falta é tanta
que te aquebranta
Porém me espanta
que teus muitos recantos
e teus tantos encontros
não te cubram o pranto
Não, não é rancor
o que agora te conto
mas por enquanto
deixa-me aqui
no meu canto
Quem sabe um dia
eu te reencontro.

(Edmilson BORRET – 17/03/07)




Eu não estava preparado para essa sua vinda de repente. Pegou-me de surpresa esse seu manque... Como recorrer não sei às musas de outrora, faço-o mais modernamente:
- Canta agora, ó Fagner, o que em meu peito explode!


Revelação

Um dia vestido

De saudade viva

Faz ressuscitar

Casas mal vividas

Camas repartidas

Faz se revelar


Quando a gente tenta

De toda maneira

Dele se guardar

Sentimento ilhado

Morto, amordaçado

Volta a incomodar

14.3.07

Por que, por quem escrevo...

Noite de Hotel

Noite de hotel
A antena parabólica só capta videoclips
Diluição em água poluída
(E a poluição é química e não orgânica)
Do sangue do poeta
Cantilena diabólica, mímica pateta

Noite de hotel
E a presença satânica é a de um diabo morto
Em que não reconheço o anjo torto de Carlos
Nem o outro
Só fúria e alegria
Pra quem titia Jagger pedia simpatia

Noite de hotel
Ódio a Graham Bell e à telefonia
(Chamada transatlântica)
Não sei o que dizer
A essa mulher potente e iluminada
Que sabe me explicar perfeitamente
E não me entende
E não me entende nada

Noite de hotel
Estou a zero, sempre o grande otário
E nunca o ato mero de compor uma canção
Pra mim foi tão desesperadamente necessário

(Caetano Veloso)




E nunca o ato mero de escrever um blog pra mim foi tão desesperadamente necessário!!!!! É catártico. Reinvento-me nas palavras. Refaço-me, descubro-me nelas. E delas me alimento. E, de certa forma, dou de comer também aos outros. É um lindo repasto.
Um antigo copidesque do jornal O Estado de São Paulo costumava dizer que uma "lauda em branco aceita tudo". Dizia isso para criticar a quantidade de sandices que se escreveu e que certamente se escreve até hoje, seja lá qual for a intenção. Talvez o meu blog seja mesmo um amontoado de sandices, talvez não... Mas isso a mim pouco importa. A lauda em branco é minha, nela eu escrevo o que eu quiser. E lê quem quiser também. De qualquer maneira, é minha terapia há alguns meses, é o meu tarja preta sem efeitos colaterais.
E aí, vieram me dizer certa vez que pouco visitavam meu blog por eu ser demasiadamente prolixo. Por serem minhas postagens muito longas. Lembrei-me de imediato de uma frase de Voltaire: "Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta."
E por que haveriam de ser curtas e concisas minhas postagens? Como exigir concisão de um cara que é um emaranhado louco de idéias? Escrever, pra mim, sempre foi muito fácil. O fluxo vem e deixo a coisa rolar. E quando me dou conta, saiu aquela verborragia toda de sempre. Eu simplesmente não entendo por que me condenam. Sou assim e pronto. Gostem ou não. Que não me leiam então, porra!
Eu preciso escrever. É vital para mim. Aliás, acho que é a única coisa que sei fazer bem nessa minha vidinha de merda. É como disse o Neruda: "Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca idéias." E eu tenho tantas idéias... Às vezes nem sei o que fazer delas. Elas me fustigam às vezes, me mordem, me esbofeteiam. E quando finjo que não lhes dou atenção, só consigo piorar as coisas. Uma vez uma idéia me cuspiu na cara; d'outra feita, uma quase me furou os olhos. Elas exigem muita atenção as idéias. Aí a gente tem que parar o que estiver fazendo no momento para lhes ouvir. Na verdade, o ato de escrever é isso: conversar com nossas idéias. Foi Sofocleto, acho, que disse que escrever é simplesmente "uma maneira de falarmos sem que nos interrompam".
Pois é, nunca o ato mero de escrever (um blog, um diário, um poema, um recado) pra mim foi tão desesperadamente necessário. Aliás, acho que para quase todo mundo. Só que poucos se dão conta disso. Para fazer mais uma citação (como as fiz nessa postagem, não???!!!), lembrei-me agora de Saramago: "Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não." E por que escrevo então? Bom, além dessa minha necessidade quase vital, escrevo porque quero ser lido. E como de muitas citações se compôs este texto...

"Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais."
(Gabriel García Márquez)

"Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."
(Clarice Lispector)



Evohé, amigos!

12.3.07

Libertas quae sera tamen... No equilíbrio distante... Venha, que o que vem é perfeição



Venha, meu coração está com pressa

Quando a esperança está dispersa

Só a verdade me liberta

Chega de maldade e ilusão

Venha, o amor tem sempre a porta aberta

E vem chegando a primavera

Nosso futuro recomeça:

Venha, que o que vem é perfeição...

(Perfeição, Renato Russo - 1960/1996)





Me dá um nó na garganta e meus olhos enchem d'água cada vez que ouço essa música. Aliás, cada vez que ouço quase todas as músicas que o Renato gravou. Mas essa em especial. Todo e qualquer equilíbrio parece ficar mesmo distante sem a voz dele. Renato e seus strani amori... Renato e sua solitudine... Ave, Renato! Farei do "equilíbrio distante" a minha "perfeição"...



O MARINHEIRO

Os medos do mundo são tantos.
Esperar. Retornar. Descansar.
As horas passando...
a água passando...
as gentes passando...

Escorrego entre os corpos...
Conheço essas pessoas...
Não vejo suas caras
nomes
famílias.
Não vejo as bocas. Emudeceram.
Digo que do outro lado
a vida nos espera.

Estejamos vivos para ela!

Fugir daqui. Fugir pro mar.
Ganhar o mundo.
Navios em cruzeiro
um pássaro cantando
um jogo de futebol
um discurso empolgado
um par de coxas
uma garrafa de vinho
pão e aurora surgindo
um ar de sedução e gozo
no pasto verde
na grama verde.
Nada temos senão esse lugar comum!...

A vida berra louca
pelos quatro cantos
e nos pede um beijo
(um beijo uma carícia
um golpe de amor
ainda é o maior consolo do homem).

(Edmilson BORRET)

9.3.07

E tudo não passou de um grande engano...

Sabe aqueles dias esquisitos? Quando as pessoas não são o que parecem ser... Tudo duvidoso. Quando não chove, mas também não faz sol... Quando você descobre que sua vida é uma pilhéria, uma piada de mau gosto ou de humor negro e que, ainda assim, você ri da porra toda só para não chorar... E então sobrevêm algumas lembranças... Aí fode tudo de vez. E você se dá conta de que quase doze meses da sua vida não passou de um grande engano. E você descobre que pessoas que lhe pareciam lindas no início tornaram-se feias assim da noite pro dia. Mas feias mesmo, feias por dentro, feias na alma, asquerosas, nojentas, mesquinhas, pequenas, podres.... E vem aquela ânsia de vômito só de lembrar que um dia se nutriu algum sentimento bom por essas pessoas. Talvez o grande aprendizado que advenha de tudo isso é que em nossas muitas relações, virtuais ou reais, estejamos sempre a um passo de avaliações errôneas acerca das pessoas. Por vezes super-estimamos demais algumas e subestimamos outras. Dando, porém, continuidade a esse aprendizado, lançando mão de muita disciplina e alguma orientação, em pouco tempo, a gente consegue uma reeducação geral. Retomam-se atividades que nos davam prazer, readquirem-se hábitos saudáveis, e regulam-se o sono e a alimentação. Aí então seremos pessoas muito mais dispostas e, de quebra, mais leves... Mas essa "transformação" pode ser ainda mais profunda e eficaz. A gente sente falta de tudo e de todos que considera importantes, mas, para nossa surpresa e alegria, a gente descobre também o que era excesso. E é aí que está o segredo. E, num radiante momento de clarividência e atenção para com nossos sentimentos, a gente se pergunta: “Precisamos mesmo disso? Vai nos fazer bem ou nos acrescentar alguma coisa? Qual é o saldo, a relação custo/benefício?" Portanto, pense duas vezes antes de se empanturrar com uma caixa inteira de chocolates ou se embebedar com uma garrafa de vinho ou se aniquilar com uma caixa de anti-depressivos... e faça o mesmo antes de deixar as pessoas participarem da sua vida. Afinal, "você é o que você come", "quem com porcos anda, farelos come" e "diga-me com quem andas que eu te direi quem és"...

7.3.07

A mulher nos reinventando... "Vamos de Deus mesmo"

Eu precisava refazer aquela história, o que significava voltar no tempo séculos e milênios, precipitar-me no redemoinho cósmico que me levaria... Para onde? Merda, eu não sabia, e aquilo estava me levando, e com uma rapidez assombrosa, a um estado de loucura, mas não loucura comum, loucura existencial, coisa muito séria, coisa para filósofo, não para mocinha feia. O que fazer? Vamos de Deus mesmo, pensei, em desespero, e aquilo me deu enorme alívio. (...) Eu ia de Deus. Por que Deus e não Deusa? Por que Jeová e não Astarté, a divindade que os outros povos da região veneravam? Por que barba e não face lisa, com no máximo alguns sinais ou talvez até muitos sinais? Por uma simples e definitiva razão: eu não podia começar o grande livro criando caso, ainda mais com meu patrocinador. Salomão falava em Deus, os velhos falavam em Deus, meu pai falava em Deus. Deus!, bradavam as rochas da montanha. Deus!, gritavam os pássaros, os canoros e os mudos. Deus, portanto. Na minha cabeça, Deus seria apenas a energia geradora, não uma figura antropomórfica a reinar sobre a criação. Que Salomão e outros o imaginassem como homem, a mim não importava.
(...)
“No começo criou Deus o céu e a terra.” Pronto: estava escrito. E, a frase escrita, invadiu-me súbita euforia. Comecei a rir. Ri tanto e tão alto que um dos anciãos – eles estavam na sala ao lado – veio ver o que estava acontecendo. Entrou, sem bater e – merecido castigo – encontrou-me ali, sentada à mesa, cálamo na mão, diante do pergaminho. Consumara-se, aos olhos deles, a abominação: eu estava, mesmo, escrevendo a história que até então pertencera exclusivamente a eles, aos anciãos. Não pôde se conter: soltou um berro de ódio e fugiu correndo.
A mim pouco importava. Tendo dado início à tarefa, eu agora iria em frente. “Deus disse, faça-se a luz, e a luz se fez.” Ótimo, já tínhamos luz – e trevas também, porque não havia luminosidade sem escuridão, sem sombra. (...) Dada a magnitude da tarefa, precisava andar ligeiro. Resumi a criação a seis dias, incluindo um sétimo para repouso, deixando bem claro que naquele caso a pressa não fora inimiga da perfeição. “E viu Deus quanto havia feito, e achou que estava muito bom”. Não quis colocar “ótimo”, ou “excelente”, ou “maravilhoso”, porque afinal mesmo o Todo-Poderoso precisa ser um pouco modesto. Digamos que na escala de zero a dez ele se tenha autoconferido um oito, a imperfeição correndo por conta dos répteis e da feia.
Essa introdução foi fácil. Mas eu previa dificuldades pela frente. Tratava-se da criação do primeiro homem e da primeira mulher. Os anciãos tinham escrito pilhas de pergaminhos a respeito (...). Em termos de homem e mulher, de masculino e feminino, eu simplesmente deixaria o meu instinto falar. Segundo os anciãos, Deus criara o primeiro homem a partir do barro. Eu não tinha nenhuma objeção a essa humilde matéria-prima. Mas por que o homem primeiro, e não a mulher? E por que tinha a mulher sido criada de maneira diferente? A história da costela me parecia tola, para dizer o mínimo, ou talvez até uma afronta, considerando a modéstia dessa peça anatômica.
Decidi corrigir tais equívocos mobilizando para isso as minhas próprias fantasias. Criados, o primeiro homem e a primeira mulher enamoraram-se loucamente um do outro, e aí transformaram o Éden num cenário de arrebatadora paixão. Fodem por toda parte, na grama, na areia, à sombra das árvores, junto dos rios. Fodem sem parar, como se a eternidade precedendo a criação nada mais contivesse que a paixão deles sob forma de energia tremendamente concentrada. O encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang do sexo, muito Big e muito Bang. Todas as posições eram usadas, todas as variantes experimentadas, isso sob o olhar curioso das cabras e dos ornitorrincos e, mais, sob o olhar benévolo de Deus.
Que, na minha versão, não os expulsava do Paraíso; ao contrário, encorajava-os: agora que descobristes o amor, podeis enfrentar a vida como ela é, a vida cheia de som e fúria.

(Moacyr Scliar, A mulher que escreveu a Bíblia.)



Como homenagem ao Dia Internacional da Mulher, quis aqui reproduzir um trecho desse romance do Moacyr Scliar. Uma mulher do nosso tempo submete-se a uma terapia de vidas passadas e descobre que numa encarnação anterior, há três mil anos, foi ela que escreveu a primeira versão da Bíblia. Ela teria sido uma das setecentos esposas de Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. Encantado com essa habilidade inusitada, o soberano a encarrega de escrever a história da humanidade e, em particular, a do povo judeu - tarefa a que uma junta de escribas se dedica há anos sem sucesso. Com uma linguagem que vai do mais elevado e austero discurso bíblico ao palavreado desabusado do mais baixo calão, a anônima redatora conta sua trajetória, desde o tempo em que não passava de uma simples pastora de cabras, filha de um chefe tribal obscuro. Para além de toda sátira e humor irreverente, o que mais chama atenção nesse romance é o profundo humanismo que o percorre do início ao fim. O que vemos - muito mais do que um relato de uma experiência histórica, narrado a partir de um ponto de vista declaradamente feminino, que impõe sua voz, ou seja, seu modo de contar os fatos segundo sua perspectiva - é uma gostosa reescritura da tradição, recontada sob um outro olhar, não restrito a uma elite letrada; sendo, neste caso, privilegiada a postura feminina frente ao discurso (religioso-eurocêntrico, ou seja, do homem branco, cristão e ocidental) que sempre a marginalizou.



“Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe
O Superhomem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher”


(Gilberto Gil)

3.3.07

“O diabo na rua, no meio do redemoinho...” Viver é muito perigoso...


“Estou explicando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra os vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe,e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo eu renegava. Muitos momentos."


(João Guimarães Rosa, Grande sertão:veredas)




O que faz desse romance, na minha opinião, o mais fantástico e mais belo de todos os tempos é justamente esse “não querer mais que bem-querer”, esse Deus e o Diabo digladiando no mais recôndito da alma. Além de questionar e refletir sobre seus atos passados, Riobaldo é essa antítese ambulante, esse paradoxo supremo, metáfora máxima do humano: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo...” E suas inquietações são parecidas com as de muitos de nós... com as minhas, pelo menos: a existência ou não do Demônio; a natureza nebulosa das relações entre o Bem e o Mal; o significado do sentimento que experimentou por uma pessoa (“Diadorim era a minha neblina”); o sentido de sua vida como jagunço; a busca de uma explicação para a condição humana...

Apesar de Grande sertão: veredas apresentar uma primorosa reconstituição realista do sertão mineiro e da vida dos jagunços, com passagens verdadeiramente épicas, os tormentos individuais de Riobaldo constituem, no mais das vezes, o questionamento do ser humano onde quer que ele esteja: no sertão de Minas, em Nova Iorque, em Paris, na Sibéria, no raio que o parta enfim. Muitas das interrogações do narrador-personagem não encontram respostas objetivas – a não ser no final do romance, e isso até certo ponto. De maneira que o clima geral da obra é de fascinante ambigüidade. A idéia que norteia a narração de Riobaldo é a fluidez de todas as coisas: “E estou contando não é uma vida de sertanejo, mas a matéria vertente.”

Quando ele afirma que o Diabo existe e não existe, quando diz que gosta de Diadorim e que não gosta, quando louva e repudia a jagunçagem, quando supõe que “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar...”, Riobaldo constrói um universo onde nada é fixo, onde tudo muda e se transforma e onde “as pessoas ainda não foram terminadas”. Não conseguindo entender a totalidade da vida real – pelo menos, a que ele vive e na qual se insere – o protagonista-narrador tenta, de maneira pungente, ordenar o informe, esclarecer o obscuro e colher, nas paisagens hostis e resvaladiças da realidade sertaneja, a essência verdadeira do humano, se é que alguém pode encontrá-la: “A natureza da gente é muito segundas-e-sábado, tem dia e tem noite, versáveis...”

O diabo na rua, no meio do redemoinho, ri e gargalha de nossa condição, de nossos medos, da nossa não-aceitação do que a vida se nos propõe. E quanto mais a gente briga com nossos sentimentos, mais ele zomba de nós. Quem nunca teve seu momento de Riobaldo? Quem nunca se perdeu na neblina de uns olhos? Quem nunca sentiu a angelical presença do diabo nas palavras e gestos sedutores de alguém? Que atire a primeira pedra quem nunca fez seu pacto de morte e vida com o amor!!! Pois o amor, em última instância, nada mais é do que isso: um pacto de morte e vida.... Um eterno recomeçar, um morrer aos pouquinhos para, logo em seguida, renascer...

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Viver - não é - é muito perigoso. Por que ainda não se sabe, porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo".

É sublime o dom da vida e, mesmo quando marcada pela dor dos limites, ela não perde seu valor nem seu sentido e merece ser amada e respeitada simplesmente porque é vida. A vida exige, de cada um de nós, um ato de contínua e inacabada coragem e as razões de viver sustentam essa capacidade de luta, sem a qual a vida perde seu verdadeiro sentido.


Você que me lê (e eu sei que você me lê, não negue), você também era a minha neblina...

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