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5.1.07

Doces mentiras



"Quanta verdade tristonha

Ou mentira risonha uma carta nos traz

E assim pensando, rasguei sua carta e queimei

Para não sofrer mais"
...



Porque eras assim, sob a toalha lunar


porque eras assim, sob a toalha lunar
e as estrelas debruçadas sobre ti, respirando
as tuas suspeitas noturnas. E ríamos mais
de vinte vezes por noite como
um ator antigo, que despe e veste
o próprio interior: ou como feiticeiros
com delicadas argolas de madrepérolas nos seios.
Mas também, às vezes, éramos barcas
muito pálidas, as proas perdidas no silêncio,
navegando devagar, com uma tristeza aberta e
pura por vento. E as nossas mãos abertas
eram velas, enlaçando, velejando. Nós,
finalmente, reduzidos a nós próprios
ao mesmo tempo.

(...)
e imagino agora todo o canibalismo
da tua docilidade, de onde emergia
um jardim intenso, onde teus olhos
adotavam nuvens. E eu, um alguém a serviço
dessa terra de borboletas, vivia entre
tulipas, piscinas de pólen, e me deitava
ao zumbido alado da vida intacta.
E enquanto trazias a virgem noite reclinada
sobre teus cabelos, quando a brisa
afaga as flores com doces mentiras, eu
tentava salvar-te de mim mesmo, de tua
terrível eternidade dentro
de mim. Observando. O quieto
navegar de estrelas em teus gestos revelando
que o teu sorriso é o universo
que tomba e te faz cócegas.

(Marcelo Sorrentino)



ACIDENTE DE PERCURSO


Teu mundo me veio de há pouco

e nele me perdi

Nessa one-way road impiedosa

teus faróis me iluminaram

antes que me lançasse longe

agonizante

o veículo que louco e vão

tentavas controlar...

Rastros de sangue na pista

sirenes e balbúrdia

O ar me falta e a dor consome

Pedestres se achegam

uns curiosos, outros indiferentes...

Nenhum beijo no asfalto!!!

A vida como ela é...

Sinais de vida no corpo inerte

Tum... tum... tum... tum...

- Afastem-se, senhores! Deixem-no respirar...

Tum... tum... tum... tum...

Tua imagem me vem em flashes...

Teus versos não são pra mim

Teu choro não é por mim

Nunca serei teu mundo

Não estou na tua pele

Não cuidarás desse pássaro aqui ferido

Não velarás meu sono

Não serei o fogo que te consome

Não cantarás pra mim

as músicas que te emocionam

Nem me verás nos filmes

que te encantam...

Tum... tum... tum... tum...

Tum... tum... tum...

Tum... tum...

Tum...


(Edmilson BORRET)

Da palavra arrancada à flor da pele

Quando todo silêncio é prefiguração de murmúrios. Quando toda palavra lançada foi vã. Mutilada. Conspurcada. Ultrajada. Abandonada. E sobeja no peito arfante a vontade urgente de desferir-te o soco final. De quebrar-te a cara. Arrebentar-te os dentes. E chutar-te as costelas. Puxar-te pelos cabelos. Arrastar-te por toda a cidade. Para a zombaria geral de todos os teus vizinhos. E amigos. E parentes. Gargalhar da tua roupa em farrapos. Colocar meu pau pra fora. Luzidio. Sob a luz pálida da lua. Fazer a dança da chuva. Rodear teu corpo ensangüentado. Mijar nos teus cortes e ferimentos. Escarrar na tua cara. Escarnecer de tuas quinquilharias. E banhar-te de lua, chuva, mijo, sangue e escarro. Não me apiedar de ti. E virar-te as costas em paz. E seguir rua abaixo. Assoviar um samba-canção. Olhar as casas do teu bairro evoluído e limpo. E parar no quiosque ao final da rua. Servir-me de uma farta porção de fritas. Parar sob a luz do poste. Ver meu rosto na vitrine em frente. E sentir um prazer brutal. Novo. E com as mãos ainda sujas do teu sangue. Lambuzadas do óleo das fritas. Bater de todas as punhetas a mais precípua. E esporrar nas tuas lembranças. Limpar as mãos no sobretudo. E sentir que recuperei minha palavra... E meu juízo...

(Edmilson BORRET – 05/01/07)





O que será que será?

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

(Chico Buarque)
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