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14.12.08

Capitu atirando em elefantes me fez chorar... And it rips through the silence

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Não falarei da microssérie Capitu, a cujo último capítulo assisti na noite de ontem quase em prantos, com os olhos de professor de literatura que sou. Não. Tais olhos poderiam trair-me, como acreditou Bentinho terem-lhe igualmente feito os olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Deixo um pouco de lado, pois, o professor de literatura amante incondicional da obra machadiana, para dar voz ao espectador ávido de imagens e modernidades plasmadas numa telinha da tv. Até porque o texto de Machado sempre me fez dar boas risadas, mesmo os mais sisudos e graves. Já a magistral adaptação de Luiz Fernando Carvalho do romance Dom Casmurro levada ao ar pela Rede Globo esta semana me fez chorar em vários momentos, sobretudo o grand finale. A questão é que tenho tara por imagens. Imagens, com freqüência, têm o poder de me emocionar e, não raro, me comovem. Não as imagens mentais, mas as imagens visuais, as que me atingem direto as retinas, as que estão no enquadramento do meu olhar. E, nesse sentido, o trabalho realizado na microssérie Capitu foi foda!... Tão foda quanto usar a palavra “foda” num texto em que se vai, ainda que indiretamente, falar de Machado... Mas vá lá: a palavra já foi lançada.

Antes de mais nada, quero aqui refutar algumas críticas à micossérie, críticas essas que li em vários fóruns por esse mundão cibernético afora, notadamente na comunidade dedicada a Machado no Orkut. A primeira dessas críticas condena Luiz Fernando Carvalho por ele ter imprimido sua visão pessoal ao romance Dom Casmurro em detrimento do que seria “a visão de Machado”. Juro que nunca li tamanha tolice. Ora, se um diretor (seja ele diretor de uma microssérie, de um filme, de uma peça) não aplicar sua visão pessoal da obra, digam-me por favor o que ele deveria aplicar. E mais: a visão de Machado?! Quem aqui sabe qual foi ela? Talvez (vejam bem que digo “talvez”) só tenha existido uma pessoa no mundo que poderia nos dizer qual foi a visão do Machado. Infelizmente, estamos comemorando neste ano de 2008 o centenário da morte dessa pessoa: ele próprio, Machado de Assis! Outra crítica que se fez à microssérie foi a de que ela estaria detonando com a ambigüidade do texto original, com a dúvida que transpassa a escritura machadiana. Mais uma enorme besteira! Todos os ingredientes dessa ambigüidade e dessa dúvida estão presentes na adaptação televisiva. Como o próprio diretor explicou, ele quis fazer de Capitu “um ensaio sobre a dúvida”; e para tanto usou e abusou de expedientes bastante convincentes: o trabalho de fotografia, os movimentos em cena, a luz e as sombras, o tom operístico, tudo esteve a serviço do processo criativo que procurou, antes de qualquer coisa, evocar uma espécie de improvisação, “como um quadro que está sendo pintado no momento em que a cena acontece”. Todos esses elementos juntos serviram para deixar no espectador aquela mesma incerteza experimentada ao se ler o romance. Além disso, o personagem-narrador esteve presente o tempo todo na adaptação de Luiz Fernando Carvalho: o contraponto entre o que ele narrava e o que era mostrado só fez aumentar essa sensação de dúvida e ambigüidade (talvez até mais que no romance, ouso dizer). E o jogo de câmeras foi magistral: para as cenas que representam o ponto de vista de Dom Casmurro, criou-se uma lente especial de mais ou menos 30 cm de diâmetro, cheia de água, acoplada à frente da câmera “para dar à imagem a textura aquosa como o mar de ressaca dos olhos de Capitu e a aparência de alguém que ora flutua, ora é arrastado pelas águas do tempo – a matéria de Dom Casmurro são apenas suas memórias, suas fantasias”. E uma terceira crítica que muito vi nos tais fóruns foi a que se refere aos elementos de modernidade explícita presentes na microssérie: o rock e as músicas internacionais, os aparelhos de mp3, o celular, o trem da Supervia, o rap de Marcelo D2, entre outras coisas. Particularmente, eu achei tudo isso magnífico. Como falei no início, é com os olhos de espectador ávidos por imagens e inovações visuais que falarei de Capitu. E, nesse sentido, a microssérie cumpriu talvez mais um importante papel: reaproximar os jovens da obra machadiana, desfazer o preconceito que esses jovens têm da obra de Machado, a qual só lêem por obrigação escolar. “O que fiz foi reafirmá-lo em termos de conteúdo e linguagem. A síntese do texto é dele. Agora, é claro que eu espelhei aquelas situações e as lancei para outras relações de imagens, procurando um diálogo com possibilidades simbólicas da modernidade, alçando o texto a outras visibilidades”, conta Carvalho.


Mas, voltando à microssérie e esquecendo as críticas a ela, que prazer imenso experimentei nesses últimos cinco dias! O primeiro capítulo me pegou de jeito. Logo no início, a cena do trem superlotado da Central já foi um baque: os acordes da guitarra de Hendrix e o trem grafitado serpenteando pela noite contemporânea do Rio de Janeiro formaram o cenário perfeito para o encontro do personagem-narrador com o rapaz que ele conhecia de vista e de chapéu e que lhe daria a alcunha que serviria de título para o romance... Ah... “a vida tanto pode ser uma ópera quanto uma viagem de mar... ou uma batalha”...





Logo depois, a CENA!!!! Sim, a CENA… Capitu nos é apresentada no mesmo e exato momento em que nos é apresentada a música que vai ficar em nossos ouvidos por muito e muito tempo. “Elephant Gun” do Beirut ao fundo, enquanto Capitu jovem risca no chão um traço de giz sobre o qual Dom Casmurro caminha trôpego e faceiro. E ali fica a dúvida: caminhará Capitu nas linhas traçadas pelo narrador ou, ao contrário, foi o narrador-personagem que teve seu destino traçado por Capitu? A cena é linda de doer... Letícia Persiles deixa qualquer marmanjo apaixonado! Melhor escolha não poderia haver para representar a jovem Capitu dos “olhos de ressaca, como um força que arrastava para dentro”... Michel Melamed (que interpreta o já velho Dom Casmurro e o Bentinho adulto) dá show de atuação, nessa cena e em todas as outras... Apaixonei-me por ele também...





E então vêm duas cenas também magistrais: a da varanda e a da inscrição. Bentinho jovem oferecendo a hóstia a Capitu, num ritual perfeito de comunhão entre a inocência do rito católico e sensualidade dos passos quase dançados de Capitu. O muro foi transportado para o chão, que virou lousa onde os personagens inscreviam suas impressões a giz, como numa sala de aula... A vida como uma aprendizagem... E Capitu diz: “Meus sonhos são mais bonitos que os seus”... “Eram!”, concorda o velho Dom Casmurro. E Bentinho se dá conta: “Quer dizer então que eu amava Capitu e Capitu me amava?”... Ora, Bentinho, tu não leste a inscrição que ela fez ao esburacar o reboco do muro?! O muro, meu caro Bentinho, o muro falou por vós... E dá-lhe mais “Elephant Gun”!!!!









Mas é, talvez, no segundo capítulo que está a cena mais linda e perfeita de toda a microssérie... A cena do penteado, sem dúvida alguma, vai virar umas daquelas cenas antológicas da teledramaturgia brasileira... Sobre ela nem comentarei nada... Seria quase uma heresia... Capitu é uma esfinge a ser desvendada... Dom Casmurro chora vendo os dois nessa cena... Eu também... E quem não? Ah... “eis aqui um que não fará grande carreira nesse mundo: as emoções o dominam”...





No terceiro capítulo, a cena que chocou o mais conservadores... Escobar é apresentado dançando sobre uma mesa. A música é “Iron Man”, da banda de heavy metal Black Sabbath dos anos 70/80, tocada ao piano. A coreografia foi criticada por alguns por seu gestual efeminado (juro que li um “boiola” nos fóruns de discussão do Orkut!)... A cena é de uma teatralidade impressionantemente bela! Em alguma coisa, lembrou-me uma outra cena do filme Hair, em que o personagem Berger também dança sobre a mesa cantando “I’ve got life”. É o início dessa relação de amizade (alguns teimam em afirmar que era mais que isso) entre Bentinho e Escobar... Bentinho parece inebriado pela figura do amigo que acabara de conhecer, o amigo o seduz à primeira vista, a identificação de almas é imediata... Almas são casas: ora com muitas janelas e portas abertas, cheias de luz; ora, fechadas, cheia de sombras, semelhantes a conventos e prisões...





No quarto capítulo, mais emoção... É a cena do retorno de Bentinho já adulto após ter ido estudar em São Paulo. Aqui um parênteses para falar da brilhante atuação do ator Antonio Karnewale, que faz o agregado José Dias. Foi, ao lado do Melamed, uma das grandes surpresas da microssérie. Deu o tom exato e perfeito ao personagem dos muitos superlativos. Nesta cena, Bentinho retorna e é chamado por todos de Dr. Bento Santiago. D. Glória, tio Cosme, prima Justina e José Dias o paparicam ainda mais... “Eis aí teu filho... Filho, eis aí tua mãe”, diz José Dias. Mas o grande reencontro mesmo ainda estava por vir. Surge na sacada a Capitu também adulta: linda, estonteante!! Maria Fernanda Cândido mais bela que nunca empresta seu corpo e seus olhos à personagem feminina mais famosa de nossa literatura... Chorei mais uma vez...





Bem, foram muitas as cenas que me comoveram nessa adaptação de Dom Casmurro para a televisão. Para ser sincero, quase todas elas. O toque mágico de Luiz Fernando Carvalho foi essencial para que esse sentimento de “já-saudade” que estou experimentando começasse a se prefigurar já ontem no início do último capítulo. Que, aliás, segundo os críticos de plantão, foi o capítulo que mais se aproximou da atmosfera machadiana. Se foi, não sei. Só sei que foi muito lindo! A cena em que Escobar se afoga é outra que vai ficar na memória da televisão brasileira: o movimento de um enorme plástico balançado pelos próprios atores. Pierre Baitelli dá um show de expressão corporal! Logo em seguida, a cena do enterro: o cenário todo branco em contraste com o luto dos personagens... E a lágrima de Capitu diante do morto no caixão... Lágrimas quase de uma viúva, segundo o doentio ciúme de Bentinho. A seqüência de cenas é magnífica e tocante! Mais choro deste que vos escreve...





E então, o grand finale: o retorno de Ezequiel da Europa após a morte de Capitu, que lá foi enterrada durante a longa viagem que fez depois de sua separação de Bentinho. O choque de Bentinho ao ver o filho crescido, acreditando estar vendo seu amigo Escobar diante dele. A cena da morte de Capitu contada pelo filho: o espelho caindo-lhe das mãos (o mesmo da cena do penteado no segundo capítulo), o sorriso estampado-lhe no rosto na hora da morte.





Infelizmente, não há no site da Globo a cena da morte de José Dias. Essa vocês terão que esperar que saia a DVD para conferir. Mas foi belíssima. O último superlativo do agregado foi de machucar corações. Antonio Karnewale merecia o Oscar por ela!

A cena final é com Dom Casmurro congelando os personagens da história à medida que passa por eles, um a um, no galpão do Automóvel Club em que a microssérie foi gravada; isso ao som de “Elephant Gun”, que será, logo em seguida, substituída pela belíssima “Juízo Final” de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, enquanto mais uma vez o trem da Supervia serpenteia pelo Rio de Janeiro contemporâneo... E o velho Dom Casmurro - agora meio Bentinho, meio Capitu, meio D. Glória, meio José Dias (fantástica a incorporação de todos os outros personagens na figura de Dom Casmurro nessa cena final!) - soltando as últimas frases do romance: “A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios”... Chorei baldes...


E aí, cabe a vocês agora me perguntarem o porquê do título desta postagem. Bom, tem a ver com a postagem imediatamente anterior a esta, na qual falo sobre a banda Beirut e seu hit “Elephant Gun”. Não sei vocês, mas toda vez que eu reler agora Dom Casmurro, o farei com essa música na cabeça. Nunca uma música encaixou-se tão bem a uma história como essa ao texto de Machado. Até mesmo a letra da música tem algo de machadiano, tem algo niilista, pungente e cético:

If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight

Far from home, elephant gun
Let's take them down one by one
We'll lay it down, it's not been found, it's not around

Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down

Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down

And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the night

And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the silence, all that is left is all that i hide


(Se eu fosse jovem, eu fugiria desta cidade
Enterraria meus sonhos no subsolo
Como eu, nós bebemos até morrer, nós bebemos essa noite

Longe de casa, arma para elefante
Vamos derrubá-los um a um
Nós os deitaremos, eles não foram encontrados, não estão por aqui

Que comecem as estações - elas rolam como devem
Que comecem as estações - derrube o grande rei

E rasgam o silêncio do nosso acampamento à noite
E rasgam a noite

E rasgam o silêncio do nosso acampamento à noite
E rasgam o silêncio, tudo que é deixado é o que eu escondo)




É isso. A microssérie Capitu teve o mérito de atirar em elefantes. E foram vários os elefantes: desde as críticas mais pesadas à roupagem dada ao texto machadiano por Luiz Fernando Carvalho, passando pelo suposto estranhamento provocado naqueles que se arvoram donos da obra de Machado, até o preconceito que os jovens tinham com relação ao romance Dom Casmurro... Alguns silêncios foram, sem dúvida, rasgados com esse belíssimo trabalho de Luiz Fernando Carvalho.



A propósito: o primeiro elefante a tombar, acredito eu, foi o imbecil do Diogo Mainardi.
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