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8.1.07

Confesso que vivi...



“Meu caminho junta-se ao caminho de todos. E em seguida vejo que desde o sul da solidão fui para o norte que é o povo, o povo ao qual minha humilde poesia quisera servir de espada e de lenço para secar o suor de suas grandes dores e para dar-lhes uma arma na luta pelo pão.”
Pablo Neruda





Em 12 de julho de 1904 — há mais de cem anos portanto — nasce Neftali Ricardo Reys Basoalto. No pequeno lugarejo em que nasceu, Parral, a 340 quilômetros de Santiago, ou em qualquer outro lugar, os nascimentos fazem parte do cotidiano. Nada há de especial. Seus pais são personagens comuns: ele é José del Carmen Reys Morales, maquinista de um trem lastreiro; ela, Rosa Basoalto Reys, professora, morta de tuberculose um mês depois de o menino nascer. Outra personagem entra no enredo de Neftali — Trinidad Candia Marverde — a segunda esposa de seu pai a quem ele acha incrível ter de chamar de madrasta já que ela é o anjo tutelar de sua infância, diligente e doce, com senso de humor camponês, e a bondade ativa e infatigável. Rodolfo e Laura — seus irmãos, filhos de seu pai e de Trinidad — são mais dois personagens do enredo nerudiano.



Nos primeiros cinco anos, Neftali corre sua infância pelas veredas de Parral ao sabor da chuva, do vento e do frio. Ternos anos, pouco registrados pela memória do garoto. Mudou-se com a família para Temuco — cidade pioneira, dessas sem passado, com grandes lojas de ferragem ostentando desenhos dos produtos à venda porque muitos compradores são índios e não sabem ler. Aliás, os araucanos, que lá vivem, são acossados primeiro pelos espanhóis; depois, pelos próprios chilenos. Neste mesmo ano, 1910, Neftali é matriculado no Liceu, cuja diretora, mais tarde, seria a escritora Gabriela Mistral — Prêmio Nobel de Literatura em 1945. Gabriela Mistral e seu tio Orlando Masson, poeta e fundador do Diário de Temuco, estimulam suas incursões poéticas.


“Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros.
Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado.
Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.”


Depois dos anos de Liceu, o poeta vai para faculdade em Santiago do Chile e incorre em novas descobertas e desconhecimentos. Assume a timidez inimaginável para o autor dos Cantos Gerais:


“A timidez é uma condição estranha da alma, uma categoria e uma dimensão que se abre para a solidão. Também é um sofrimento inseparável, como se a gente tivesse duas epidermes e a segunda pele interior se irritasse e se contraísse diante da vida. Entre as estruturações do homem, esta qualidade ou este defeito são parte do amálgama que vai fundamentando, numa longa circunstância, a perpetuidade do ser.”



A nomeação de Pablo Neruda para ser cônsul do Chile em Rangum inicia uma nova fase na vida do poeta que conhece um novo mundo nos lugares remotos que vive e passa a ter uma percepção mais ampla do homem:


“O poeta não pode temer o povo. Pareceu-me que a vida fazia uma advertência e me ensinava para sempre uma lição: a lição da honra oculta, da fraternidade que não conhecemos e da beleza que floresce na escuridão.”



Sua relação com Federico Garcia Lorca e com a Espanha estão sacramentadas no caderno “Espanha no coração”. O poeta vive a guerra civil espanhola e tais vivências influenciam de forma marcante sua literatura e o seu ingresso no Partido Comunista, seu encontro com a União Soviética, os escritores em ebulição em Moscou, a esperança de que o grande continente alçasse o grande vôo de uma nova verdade. “A revolução é a vida e os preceitos buscam seu próprio túmulo.” Neruda sente necessidade de escrever para os seus semelhantes, no caminho do humanismo enraizado nas aspirações do ser humano. Assim começou a escrever os Cantos Gerais.



Neruda nunca esqueceu suas raízes, sempre esteve ligado aos acontecimentos políticos e sociais de sua pátria. Aliás, em sua poesia podemos observar sempre a alusão às raízes, desde as tenras da infância nos bosques chilenos aos alicerces de convicções que nosso poeta construiu e floresceu em seus poemas.

Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca mais se viu no mundo... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais as que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras, como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.”



O último capítulo é sobre a vida e a morte de Salvador Allende, primeiro marxista eleito presidente da República na América Latina em 1970, morto durante o golpe que do depôs em 11 de setembro de 1973. Neruda escreveu-o poucos dias após aos fatos que culminaram na morte do governante e morreu no mesmo mês, em 23 de setembro de 1973.



Pablo Neruda, pseudônimo criado por Neftali Ricardo Reyes Basoalto ainda na juventude para esconder a autoria dos poemas de seu pai, viajou o mundo inteiro e divulgou sua poesia e seus ideais humanísticos pelos diversos povos e culturas.



Como o próprio poeta afirmou em sua autobiografia: “...a história é escrita pelos vencedores ou pelos que desfrutaram da vitória.” Pablo Neruda é um vitorioso, venceu os preconceitos e as tantas perseguições políticas e criou uma obra literária lida no mundo inteiro - uma leitura obrigatória para toda a humanidade.

"Em minha pátria, prendem-se mineiros. E os soldados mandam mais que os juízes."

"Mudou a sociedade, mudaram a época e a moda. As fábricas transformaram-se em deusas. Os deuses associados produziram salsichas, armamentos, automóveis. As guerras santas desta época foram as do petróleo. Os hereges que não se prosternarem ante os pagodes petrolíferos foram exterminados, não pela cimitarra ardente, nem pela cruz cheia de pregos, mas pelos golpes da polícia, pela tortura e pelas prisões."

"Coube a mim sofrer e lutar, amar e cantar: couberam-me na partilha do mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e o do sangue. Que mais quer um poeta?"

"E todas as alternativas, desde o pranto até os beijos, desde a solidão até o povo, perduram em minha poesia, atuam nela porque vivi para minha poesia e minha poesia sustentou minhas lutas."

"E se muitos prêmios alcancei, prêmios fugazes como mariposas de pólen fugitivo, alcancei um prêmio maior, um prêmio que muitos desdenham mas que é na realidade inatingível para muitos. Cheguei através de uma dura lição de estética e de busca, através de labirintos da palavra escrita, a ser poeta do meu povo. Meu prêmio é esse e não os livros e os poemas traduzidos ou os livros escritos para descrever ou dissecar minhas palavras."

"A poesia é sempre um ato de paz. O poeta nasce da paz como o pão nasce da farinha."

"O poeta não é um 'pequeno deus'. Não, não é um 'pequeno deus'. Não está assinalado por um destino cabalístico superior ao dos que exercem outros misteres ou ofícios. Expressei amiúde que o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada dia: o padeiro mais próximo, que não se acredita um deus. Ele cumpre sua majestosa e humilde tarefa de amassar, enfornar, cozer e estragar o pão de cada dia, com uma obrigação comunitária."


"E se o poeta chega a alcançar essa singela consciência, poderá também a singela consciência converter-se em parte de um colossal artesanato, de uma construção simples ou complicada, que é a construção da sociedade, a transformação das condições que rodeiam o homem, a entrega da mercadoria: pão, verdade, vinho, sonhos."

"... o poeta tomará parte no suor, no pão, no vinho, no sonho de toda a humanidade."

"Penso com alegria que tudo o que vivi e escrevi serviu para aproximar-nos. O primeiro dever do humanista e a tarefa fundamental da inteligência é assegurar o conhecimento e o entendimento entre todos os homens. Vale muito ter lutado e cantado, vale muito ter vivido se o amor me acompanha."

" Nunca entendi a luta senão para que esta termine."


(Fragmento dos livros Confesso que vivi e Para nascer nasci, de Pablo Neruda.Ed. Difel, 1977)




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Sim, confesso que vivi. Confesso, outrossim, que morri. E assim vou morrendo para a vida e revivendo da morte. Quotidianamente. Didaticamente. E estabeleço minha aprendizagem nesse eterno ir e vir. Do funeral ao luto de mim mesmo, do luto de mim mesmo à ressurreição, toda a fugacidade do momento se expande e se agiganta consoante meus movimentos na direção da minha gnose e de meus mistérios. Sou Perséfone masculinizada ou Hades feminilizado. Sou morte e vida. Severa e severina. Carrego em meu ser a morte e a vida. Entendo-me mais que barro; mas lamaçal, lodo, mangue – onde toda a biodiversidade reina de par com a podridão dos restos mortais dos homens que aí se aventuram em busca de seus caranguejos. Homens, caranguejos, poetas e lama – tudo oriundo da mesma matéria líquida. Tudo destinado à mesma certeza sólida dos solos. À mesma certeza etérea do esquecimento.
Sim, confesso que vivi. Confesso, outrossim, que morri...

(Edmilson Borret)

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