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9.10.10

O Baile... e ainda ontem eu tinha 20 anos (reload)*




O ano era 1989, eu tinha 22 anos. Na faculdade, a professora de francês passou um filme que nenhum de nós tinha visto ainda: O Baile, do diretor italiano Ettore Scola, um filme de 1983. Embasbacamento geral! Todos os alunos mudos, exatamente com os personagens do filme... Embora as bocas permanecessem fechadas, os queixos estavam caídos: mais do que uma figura de retórica, esse paradoxo da expressão facial revelava os dois opostos numa mesma reação de estupefação e deslumbre diante das imagens que invadiam nossas retinas. Nenhuma palavra, nenhum diálogo e 50 anos de história da França e do mundo se passavam em pouco menos de 2 horas de filme. Eu tinha que escrever alguma coisa depois daquilo. Sempre foi assim: quando algo me toca profundamente, eu tenho que escrever sobre.

Por isso, caros leitores, o texto que segue é um texto de juventude (e nesse caso aqui, traduzido – o que é pior). Queiram, portanto, perdoar o que pode haver de ingenuidade nele. Trata-se, no fundo, do ardor típico dos jovens. Ao arrumar velhos papéis, resolvi remexer nos sótãos da memória. E eis que esse texto meio que pulou entre vários outros. Mas... atenção, caros leitores! Não se invade impunemente o reino das memórias. Lágrimas sempre me vêm aos olhos lendo esses meus textos de outrora. Tantas coisas vividas... Ça voulait dire on a vingt ans... On était jeunes, on était fous...





O Baile


Bem, bem... aqui estou mais uma vez ! Tudo recomeça. O salão já foi limpo, arrumado, iluminado. As filas de mesas pacientemente dispostas dos dois lados do salão. Agora fazer o mesmo com os copos, as garrafas... A vida, a alma, o mundo, nada está rigorosamente em ordem, mas o salão, pelo menos o salão, ele tem que estar. Arrumar o exterior para se ter a impressão de haver arrumado o interior. Quem disse que devemos nos ater a isso? Não sei. Mas é realmente uma responsabilidade essa minha, quase um poder! Dar-lhes essa frágil e débil aparência de organização. Quanto isso me custa entretanto! Cabe a mim a realização ou o fracasso de suas esperanças. Pois no baile, como na vida, nunca deve haver meio-termo: é tudo ou nada. E eu bem no meio. O que eles esperam de mim? Já estou farto de lhes preencher os espaços entre o desejado e o vivido. Nem consigo me lembrar do meu primeiro baile. Posso, contudo, assegurar a quem quiser crer que desde aquele momento eu já sabia o que eu viria a ser para sempre: o sujeito que organiza e ordena os sonhos alheios. O que esperam essas pessoas? E eu, o que eu espero? Ah sim... elas chegaram. Elas sempre chegam primeiro, as mulheres. Pelo menos aqui no baile – é importante observar. Sempre a mesma cena. A descida das escadas, elegante, segura. Um desfile até o fundo do salão para verificar no espelho se o exterior está em ordem. Retocada a máscara, a armadura resplandecente, à batalha! Allons les dames de la Patrie! Marchons, marchons! Elas esperam no compasso da música, sempre a mesma... “J’attendrai le jour et la nuit” – berra o toca-discos. Todas esperam. Olhando-se, se comparando talvez. Qual a mais bonita? Se cada uma pudesse adivinhar o interior umas das outras, seriam certamente todas a mesma e uma só. Elas seriam eu. E eu seria elas. Ou talvez eles, que acabam de chegar... os homens. O mesmo ritual: a descida, o desfile. Dá-se início ao espetáculo. As mulheres sentadas às mesas. Os homens ao balcão. Essas posições marcadas como num quadro ou num palco não são absolutamente por acaso. Dessa forma, pode-se observar o que é oferta e o que é demanda nas particularidades de cada um dos lados. Exatamente como um jogo. Um jogo de trocas. Um jogo de encaixe. De um lado, a presa; do outro, o caçador. Sem que se saiba muito bem quem faz qual papel. De qualquer maneira, é preciso se lançar ao jogo. Mas quem começa? Et maintenant que vais-je faire? A gente se pergunta sem esperar uma resposta que seja. De tout ce temps que sera ma vie? De todo esse pouco espaço de tempo que é o baile. De toda essa imensidão de tempo que é minha vida. De tous ces gens qui m’indiffèrent... Toda essa gente que me ignora e que me atrai o olhar ao mesmo tempo. Senhorita, há um bom tempo que a observo. Poderíamos abrir a dança, que tal? Senhoritas, há quase meio século que as observo. Senhores, há quase meio século que rio de vocês. Em todo caso, dansons joue contre joue! Eu já guardei suas fitas vermelhas por ocasião de suas primeiras férias remuneradas. Já lhes servi ein Bier ou einen Wein. Já colhi flores de uma primavera não muito calma, ainda que por todos os lugares se cantasse que tudo aquilo de que precisávamos era o amor – você se lembra, Michelle? Já vi tanta coisa nesse salão que eu não teria por que me desculpar se me colocasse acima de tudo isso, acima de todos vocês. Vocês são os mesmos há muito tempo. Apenas suas músicas e seus passos é que mudaram. Valsa, tango, twist, bebop, biguine, blues, boston, cakewalk, charleston, fox-trot, java, jerk, marcha, mambo, one-step, paso doble, rock, rumba, samba, slow fox, swing, discoteca – já vi todos, já dansei todos. E ainda assim não me sinto de forma alguma velho. Não fui eu que envelheci. Foram os ritmos que mudaram. Foi o deus do tempo que envelheceu. E eu, eu aqui rindo disso tudo. Não fosse assim, vocês não existiriam. Sou eu que lhes forneço o seus exteriores, damas e cavaleiros. As guerras, as ondas, as danças, elas passam. Eu, meu salão, minhas bebidas – seu whisky, senhora – eu continuo. Enquanto vocês desenrolam esse grotesco acasalamento, eu espero. Aliás, como sempre esperei. E esperarei. J’attendrai...

(Edmilson BORRET - num mês qualquer de 1989)












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* Para quem domina a língua francesa, confira AQUI a postagem original desse texto em francês feita em junho de 2007.


Quem quiser saber mais sobre o filme O Baile e sobre o diretor Ettore Scola, basta clicar AQUI.
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