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24.7.07

Temos todos duas vidas: uma a que sonhamos, outra a que vivemos

Dentre os filmes que tenho baixado da internet graças a minha novíssima, maravilhosa e super velocíssima banda-larga, hoje tirei o dia para rever o filme Quase dois irmãos, de Lúcia Murat, lançado em 2005. E falar sobre esse filme é bastante complicado, pois nele o que mais importa é a história em si... A produção, a fotografia, os atores estão excelentes, mas nada disso é maior do que a questão social apresentada. Como ser justo? Como alcançar justiça social? Eis a grande questão que parece permear toda a discussão a que o filme se propõe. Um sem número de complexidades caracteriza todos os níveis que podem servir de ponto de partida para falar sobre essa magnífica obra do cinema brasileiro: da história contada à montagem, das concepções ideológicas e políticas que afloram no filme ao balanço que nele se faz sobre a esquerda brasileira... Ah, a esquerda no Brasil... tsc tsc tsc tsc











A palavra “quase” que aparece no título é de uma exatidão impressionante (por mais paradoxal que essa minha afirmação possa parecer). Da tentativa de aproximação entre a classe média e os moradores da favela, o que sobra é apenas um planar sobre um imenso abismo. É dessa aproximação de aparência harmoniosa, porém tensa e nunca consolidada, que Lucia Murat vai construir as situações mais emblemáticas entre os personagens de Quase dois irmãos. A história – que basicamente acompanha dois personagens, Miguel e Jorginho, durante os últimos 50 anos – desenrola-se em três períodos distintos: a década de 50, época da infância dos dois; os anos 70 e o regime militar; e a época atual.


Na romântica década de 50, Miguel é filho de um boêmio jornalista branco e de classe média (interpretado por Fernando Eiras) que acompanha as rodas de samba promovidas pelo talentoso – mas nada reconhecido – Seu Jorge (interpretado por Luis Melodia), pai do negro Jorginho, amigo do filho do jornalista. Nos anos 70, os dois garotos reencontram-se na prisão da Ilha Grande. Miguel (Caco Ciocler), agora, é um intelectual de esquerda, preso por participar na luta armada, e Jorginho (Flávio Bauraqui ) é um criminoso comum. Passados 20 anos, Jorginho (agora interpretado por Antônio Pompeo), que continua na cadeia, agora no complexo de Bangu (de onde lidera o Comando Vermelho e o tráfico de drogas) é visitado pelo deputado federal Miguel (então interpretado por Werner Schünemann ) que busca autorização para implantar um projeto social no morro, numa tentativa desesperada de “afastar a juventude do tráfico” e, por tabela, distanciar sua própria filha do namorado, um “gerente” que opera os negócios de Jorginho. Não dá certo. Assim como não havia dado certo a união entre intelectuais e presos comuns 30 anos atrás. A filha de Miguel (a atriz Maria Flor) sobe o morro, mas também percebe a impossibilidade de firmar uma relação amorosa com Deley (Renato de Souza, ator do grupo Nós do Cinema), garoto de 20 e poucos anos que chefia o tráfico a mando de Jorginho.

Filmado sem continuidade temporal, e com uma fotografia lindíssima (um tom de “sépia” para os anos 50, preto e branco para a década de 70, e cores, nos anos 90), Quase dois irmãos é marcado pela maravilhosa trilha sonora de Naná Vasconcelos, entrecortada pela música “Quem me vê sorrindo”, de Cartola.

Muito bem realizado, mas com uma visão um tanto cética sobre a realidade, o filme serve como profunda reflexão sobre a necessidade de derrubarmos os muros e obstáculos para que possamos construir uma nova sociedade. E fica difícil não pensar no filme não só como um balanço político dos últimos anos da história brasileira, mas também como a reflexão um tanto quanto pessoal da própria Lúcia Murat (quase um mea culpa da esquerda), que foi dirigente estudantil, guerrilheira e presa política e que já havia discutido sobre os anos de chumbo da ditadura no seu filme Que bom te ver viva.

O filme tem como eixo central os desencontros entre esses dois mundos, cuja proximidade é ilusória. Ao metaforizar esta “realidade” a partir da dura convivência entre “morro” e o “asfalto”, Lúcia Murat reflete sobre esse gigantesco “quase” que separa os intelectuais e o povo, os negros e os brancos, os presos políticos e os comuns e, acima de tudo, a esquerda e os proletários... Pois é, meus amigos: engana-se quem pensou que alguma vez esquerda e proletariado estiveram juntos!... Marcada, de um lado, pelo ledo engano da experiência da guerrilha tupiniquim e, de outro lado, pelo aburguesamento e reformismo da “esquerda” institucionalizada dos dias de hoje (alguém aí lembrou de um José Dirceu?), essa reflexão da diretora emerge nesse alto grau de ceticismo. Assim, no filme, a gente vê esse “quase” se transformando em sólida e real impossibilidade na figura de um muro que, em dado momento, é levantado para separar os presos de uma mesma galeria da Ilha Grande.


Não é novidade para ninguém que o atual nível de organização do tráfico, em grupos como o Comando Vermelho, é atribuído à convivência entre presos políticos e comuns. Lúcia Murat, entretanto, faz um recorte no tempo e esmiúça o exato momento em que, em menor número em relação aos presos comuns que povoam o presídio, os presos políticos já não conseguem mais impor suas regras. E, se vendo ameaçados, exigem a separação. Regras essas, aliás, que se caracterizam por três leis que merecem destaque pelo conteúdo moralista que têm: “Aqui não tem pederastia (!?), aqui não se fuma maconha, aqui não se rouba”.

Homofobia, preconceito e moralismos à parte, o tal muro é erguido em meio a uma enorme polêmica que mostra as diferenças ideológicas entre as facções políticas de esquerda da época. A discussão sobre a possibilidade ou não de aproximar o “povo” das posturas revolucionárias tem, em um militante supostamente trotskista (mostrado de forma um tanto caricata), um dos poucos defensores da busca de uma solução para a questão. Aliás, é ainda através de metáforas – com o gato desse militante (que tem o sugestivo nome de Trotsky) – que também é cruelmente mostrado o tratamento que facções da própria esquerda dão aos seus adversários (matam o gato do coitado!). O filme trata, a cada seqüência, do choque de classes. Quando Miguel tenta persuadir outros presos comuns a seguirem as tais “regras do coletivo”, quando ele passa a impor medidas goela abaixo, os amigos de Jorginho obviamente não admitem e armam a insurreição contra a ordem vigente. E aí é simbólico quando a situação foge ao controle e o muro é erguido. Jorginho fala para Miguel: “Agora, sim... branco de um lado, negro do outro.... rico de um lado e pobre do outro”.

E é assim que os desencontros dos dois amigos de infância dentro da prisão, depois metaforizados mais uma vez nas grades que os separam na cadeia, já em 2004, prenunciam a tragédia para a qual o filme deslancha. Uma tragédia que, na visão da cética Lúcia Murat, é quase que inevitável. Tragédia moderna e urbana que marca os dois lados do muro, mas particularmente o “sonho” perdido da esquerda, representado por um verso de Fernando Pessoa que pontua todo o filme: “Temos todos duas vidas: uma a que sonhamos, outra a que vivemos”.

Embora fruto das experiências da diretora e de sua avaliação sobre o momento atual (ah, a esquerda no Brasil... tsc tsc tsc tsc), essa visão, infelizmente, parece ser a que impera, quando nos damos conta da impossibilidade de se erguerem pontes entre os mundos que o capitalismo cruelmente separou.

Como bem observou o escritor Paulo Lins – co-roteirista de Quase dois irmãos – “a gente só se encontra na arte”. Talvez a manifestação artística seja o único elo cultural possível e efetivo entre esses dois mundos. A única ponte possível sobre o abismo. O morro cria, a classe média assimila e agradece: o samba, o rap, o funk, o carnaval. Quase dois irmãos começa justamente com o compositor Luis Melodia, aqui no seu primeiro papel como ator, interpretando o pai de Jorginho, a entoar um samba, e dois moleques dançando na rua. “A música no filme tem um papel fundamental. É o ponto de encontro entre os dois mundos”.

E o filme é magnífico justamente nisso. Enquanto outros filmes brasileiros se esforçam para mostrar a violência como uma forma de chocar o público (não vá esperando um banho de sangue e tiroteios à la Cidade de Deus e Carandiru), Lúcia Murat trabalha brilhantemente com um roteiro em que o problema é visto como um todo: mostrando o seu início, ou seja, a violência de ontem e procurando, em 50 anos de história do Brasil, entender a raiz da violência de hoje, enfrentada nas grandes cidades.

O filme critica certa visão ideológica da esquerda brasileira dos anos 70 e nos mostra como ela não soube entender as camadas mais baixas da população. Esquerda esta que, sempre frente a uma dificuldade, cercou-se de proteção, colocando-se à parte do resto da sociedade. Entretanto, apesar da dura crítica à burguesia e à classe média, o enredo, em momento algum, é maniqueísta, personificando os personagens em mocinhos e bandidos. E aí reside a grandiosidade do filme. Questiona, instiga, mas não traz soluções. É assim o filme de Lúcia Murat: abre uma série de críticas e não nos ajuda a resolver os problemas – mas é esse mesmo o seu propósito. Talvez o grande mérito do filme foi o de ter dado uma aula de sociologia, abordando a relação entre a classe média branca e os negros favelados, sem ser chato em momento algum. O painel sociológico criado por Lucia Murat é pungente, é uma porrada no estômago. Obviamente, como qualquer avaliação abrangente, é passível de críticas. No entanto, os seus acertos são muito, muito maiores.

Belíssimo filme! O bonequinho Ed aqui aplaude de pé...


Assistam aqui ao trailer do filme.

Download aqui da linda canção do filme, com Luiz Melodia e Naná Vasconcelos.
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