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19.6.11

Novas diretrizes quando a vida é sonho ou As relações de poder na língua


Assisti hoje, pela quarta ou quinta vez, ao excelente filme Tempos de Paz, baseado na peça Novas diretrizes em tempos de paz, de Bosco Brasil. E devo dizer que, a cada vez que assisto a esse filme, choro copiosamente. Mas é de um choro que ainda não sei explicar: é franco, mas não é triste... tampouco é alegre. É choro, simplesmente. Não assisti à encenação do texto do Bosco nos palcos. Só conheço essa versão para o cinema. Direção ótima do Daniel Filho, que, aliás, está incrível também como ator no filme, apesar das poucas cenas. Interpretações impagáveis de Tony Ramos e Dan Stulbach, como Segismundo e Clausewitz, respectivamente: um embate de talentos poucas vezes visto no cinema brasileiro, em quase 70 minutos de diálogos entre os dois somente... Há que se ter fôlego!

Não vou nem falar do monólogo do personagem Clausewitz, porque essa cena talvez seja a mais comentada do filme. Já é umas das cenas antológicas do cinema nacional! Monólogo retirado da peça A vida é sonho, do espanhol Calderón de La Barca. Não à toa, o personagem da peça do espanhol se chama Segismundo também. Se, na peça de Bosco Brasil, Segismundo é um ex-torturador da ditadura de Vargas agora responsável-chefe pela Imigração e pela autorização da entrada de europeus no Brasil do pós-guerra; em A vida é sonho, o personagem é o filho renegado de Basílio, rei da Polônia que ao nascer é trancado em uma torre. Seu único contato com o mundo externo é Clotaldo, seu guardião e fiel servo de seu pai. O Segismundo brasileiro é algoz: prendia e torturava; o espanhol é vítima: sofria a violência da prisão e a tortura de nem sequer ver a luz do sol.

Mas é curioso como Bosco Brasil mantém algo do Segismundo espanhol no brasileiro: este também, embora não estando preso numa caverna, vive num mundo de sombras. Sombras de um passado que o atormenta e do qual ele tenta se libertar. Segundo Platão, o homem vive em um mundo de sonhos, de escuridão, cativo em uma caverna da qual só poderá se libertar ao tender para o bem: somente desse modo, o homem deixará a matéria e fará a ascese até a luz. A influência da concepção platônica na obra de Calderón é evidente já mesmo no título. O personagem Segismundo vive, no princípio, dentro de um cárcere, numa caverna, na qual permanece na mais completa escuridão pelo desconhecimento de si mesmo, e somente quando é capaz de ter conhecimento de quem realmente é, alcança o triunfo da luz. Aos poucos, Clausewitz vai efetuando essa mesma transformação em nosso Segismundo brasileiro. E a transformação se faz completa quando ele consegue fazer o ex-torturador chorar ao recitar o tal monólogo.

Entretanto, o que mais me chama a atenção no texto de Bosco Brasil é a discussão que se faz sobre as relações de poder. Numa primeira leitura, essas relações parecem se estabelecer num plano político óbvio. Um chefe da Imigração no porto do Rio de Janeiro interrogando um imigrante polonês que ele supõe ser um possível nazista querendo abrigo no Brasil após a Segunda Guerra. Em tempos de paz e de anistia para os presos políticos da ditadura de Vargas, dar salvo-conduto a um nazista seria uma temeridade, sobretudo para um ex-torturador com uma ficha corrida mais suja do que pau de galinheiro. Por isso Segismundo achou que, no caso de Clausewitz, um interrogatório mais cuidadoso deveria ser feito. E isso porque, diferentemente dos outros imigrantes, Clausewitz falava um português impecável. A adaptação para o cinema foi bastante feliz ao sublinhar esse fato. No filme de Daniel Filho, causou estranheza aos funcionários da alfândega essa fluência de Clausewitz no nosso idioma. E é justamente aí que se estabelece, a meu ver, uma segunda leitura das relações de poder. A língua! Já na fila da triagem fica clara essa relação de poder. Os outros imigrantes, por não entenderem nada do que os funcionários da alfândega dizem, são mais submissos. Já Clausewitz é mais altivo: ele recita para o funcionário os primeiros versos do poema “Mãos dadas”, de Carlos Drummond de Andrade.

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.


O funcionário da alfândega olha meio desconfiado para Clausewitz e sai preocupado para chamar imediatamente o chefe, Segismundo. A partir daí, o filme segue à risca os mesmos diálogos da peça de Bosco Brasil. O ex-torturador começa o interrogatório do imigrante polonês e quer, a todo custo, saber como um agricultor simples aprendeu a falar o português tão bem.

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor fala mesmo, o Português.

CLAUSEWITZ - Eu falo.

SEGISMUNDO - Já esteve no Brasil antes?

CLAUSEWITZ - Nunca antes.

SEGISMUNDO- Sei. E o senhor aprendeu como, o Português?

CLAUSEWITZ - Estudei sozinho. Depois de tudo que eu passei... tudo que eu passei na Guerra... estudar uma língua tão estranha foi bom para mim, me fez esquecer... Eu sou grato ao “x”. Gastei muito tempo estudando os valores do “x” no Português. Como é que vocês usam de tantas maneiras uma letrinha à toa?! Estudando o “x” eu às vezes quase esquecia da Guerra... Quase esquecia da maldade. (TEMPO) Claro, um funcionário do consulado do seu país em Manchester me emprestou alguns livros. Ele também repetiu “não” muitas vezes. Agora eu falo: “não”.

SEGISMUNDO - Era a obrigação dele.

CLAUSEWITZ - Repetir o “não””?

SEGISMUNDO - Não se pode dar visto de entrada ao primeiro que aparece.

CLAUSEWITZ - Ah... Estava falando da pronúncia. “Não”. É difícil dizer: “não”. Essas “nasais” da sua língua...

SEGISMUNDO - Nazistas, o senhor disse?

CLAUSEWITZ - Por favor! Nasais! Nasais... Não. Mão. Verão.

SEGISMUNDO - Então. O senhor aprendeu com esse funcionário do consulado.

CLAUSEWITZ - Eu já tinha estudado um pouco no seminário. Por causa do meu professor de Latim. O Professor Cracowiack... (TEMPO) Docta ignorantia. O senhor já ouviu isso, não?

SEGISMUNDO - Não. O que é?

CLAUSEWITZ - Latim.

(...)

SEGISMUNDO - (TEMPO) Então o senhor aprendeu português no seminário...

CLAUSEWITZ - Não. Latim... Com o professor Cracowiack , como eu disse. (TEMPO) Interessante. Nunca soube como o professor Cracowiack foi acabar dando aula no seminário. (TEMPO) O professor Cracowiack amava as línguas neolatinas. (TEMPO) Professor Cracowiack falava dezessete línguas! (TEMPO) Ele tinha o exemplar de uma revista com poesia brasileira moderna. (SE ANIMA) O senhor já ouviu falar do senhor Carlos Drummond de Andrade?

SEGISMUNDO - É o sujeito forte do ministro da Educação e da Saúde. Eu sei que escreve num jornal. Parece que é escritor. E o senhor, é escritor?

CLAUSEWITZ - Não, sou agricultor.

SEGISMUNDO - E aprendeu sozinho o português... Não é todo dia que chega um estrangeiro aqui, falando Português.

CLAUSEWITZ - É bom estar no Brasil.

SEGISMUNDO - Deve ser. (TEMPO) Escute, o senhor chegou num dia um pouco agitado. Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei ainda estamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o armistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Estamos esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não chegam: continua o mesmo. Se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor precisa de um salvo-conduto. O senhor quer ficar no país, não é?

CLAUSEWITZ - Eu quero.

SEGISMUNDO - Sei. Então nós temos que esclarecer algumas dúvidas a seu respeito. Se isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro, e seguir viagem.

Que audácia desse imigrantezinho de merda falar português assim tão bem! Não pode! Se alguém quer vir pedir abrigo no país, tem que mostrar mais humildade, oras! O chefe da Imigração tinha que mostrar quem estava no poder ali. E a forma mais de contundente de ele exercer o poder sobre os imigrantes era justamente o domínio da língua que ele tinha e eles não.

E é essa relação de poder que eu gostaria de destacar no texto de Bosco Brasil: quem tem o domínio da língua é rei. Uma discussão que se faz bastante atual em tempos de controvérsias sobre certo ou errado, sobre adequado e inadequado no que tange à diversidade lingüística no Brasil. Falar “bem”, falar “correto” conferiria um certo status na visão dos detratores da pluralidade lingüística. Volto a discussão da postagem anterior para mostrar que, da mesma forma que Clausewitz, o falante do português precisa saber falar “bem” para ter seu salvo-conduto, para poder transitar livremente. Na peça/filme, o imigrante teve que convencer a autoridade estabelecida para obter o salvo-conduto:

SEGISMUNDO - Está bem. Ainda temos uns dez minutos antes do seu navio zarpar. Eu já estou atrasado, mesmo. (PARA SI) Tanto faz se eu encontrar um daqueles na rua... (TEMPO) Vamos fazer um trato. O senhor tem esses dez minutos para me fazer chorar.

CLAUSEWITZ - Fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO - Isso. Me conte suas histórias da Guerra. Se eu não chorar no próximos dez minutos por causa das suas lembranças, o senhor embarca no navio. Se eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu.

CLAUSEWITZ - Isto está no regulamento?

SEGISMUNDO - Para o senhor, agora, eu sou o regulamento.

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O senhor chora, eu fico no Brasil?

SEGISMUNDO - Fica.

No Brasil das desigualdades, o falante que não domina o padrão culto do português estará condenado ao porão, sob o dedo inquisitório de algum gramático de plantão. Mais do que o dedo inquisitório... a palmatória mesmo! Ou isso, ou desistir da cidadania. Para se tornar sujeito, o falante terá que se submeter à tortura das regras. Desaprender o português para aprender o Português. Nessa relação de poder, o falante deve deixar para trás tudo o que ele aprendeu sobre a beleza da língua em nome da norma. Minha preocupação é que, ao ser forçado a falar o Português que lhe é exigido, o falante se decepcione com sua própria língua-mãe. Que ele experimente, assim como o personagem Clausewitz, uma decepção profunda com a língua das possibilidades do “x”, ao ter que seguir regras e normas, ao ter que obedecer ordens do poder estabelecido.

CLAUSEWITZ - Eu estou... estou espantado.

SEGISMUNDO - Espantado? Mas o senhor veio da guerra!

CLAUSEWITZ - Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essa coisas pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim o Português era um latim falado por bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa gente tivesse dentes, como poderiam ter perdido tantas consoantes?

SEGISMUNDO - Também arrancávamos os dentes do sujeito, é claro.

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Eu que achava que o Português era uma língua falada pôr gente com dotes de análise e síntese.

O navio apita mais uma vez. Tempo.

CLAUSEWITZ - O que o sujeito fez para o senhor?

SEGISMUNDO - Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me mandavam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a idade. Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas eu servia. Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu sempre fiz tudo o que me mandaram fazer.

CLAUSEWITZ - (IRRITADO) Por que vocês fazem tudo que mandam?

SEGISMUNDO - “Vocês”?...

CLAUSEWITZ - Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram odiar o idioma alemão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha do Fausto.

SEGISMUNDO - Quem? Do que o senhor está falando?

CLAUSEWITZ - De teatro!

SEGISMUNDO - Eu tinha entendido que o senhor agora era um agricultor.

CLAUSEWITZ - Eu sou um agricultor! Mas eu sou um agricultor no Brasil. Eu tenho que falar a língua que se fala aqui! E o senhor está me fazendo odiar o Português!

O navio apita. Segismundo olha o relógio.

SEGISMUNDO - No Brasil nós falamos português...

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Meu professor de latim dizia que o Português era uma língua falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor nunca recebeu uma ordem em Português. Por isso teve essa idéia.

Clausewitz, quando cita o famoso monólogo da peça de Calderón de La Barca, reivindica a liberdade que lhe foi negada, assim como foi negada a Segismundo de A vida é sonho; a mesma liberdade que parece ser negada àqueles que não dominam a variante culta do Português em nosso momento atual. Com seu monólogo, Clausewitz conseguiu arrancar lágrimas de Segismundo, pois este acreditou, naquele momento, tratar-se da experiência de vida do imigrante polonês. E assim ele obteve seu livre-conduto. Acredito que ainda está longe o tempo em que o falante do Português que não optar pelo registro culto conseguirá convencer os donos do poder a lhe darem passagem. Como professor de Língua Portuguesa que sou, no entanto, vou fazendo minha parte. “Não serei o poeta de um mundo caduco”, não estabelecerei essa relação de poder com os alunos ao normatizar que eles só podem se expressar segundo o que reza a Gramática da autoridade, ao desconsiderar os seus falares, os seus regionalismos, as suas experiências. Se me colocarei na mira dos detratores do falar adequado? Acredito que sim. Se essa minha prática pedagógica vai surtir algum efeito? Sinceramente não sei. Não quero provar nada para ninguém. Só quero fazer o que acho mais justo. Quero provar para mim mesmo que posso, ao menos, amenizar essas relações de poder advindas da experiência lingüística. Para isso me formei professor. Assim como Clausewitz – que na verdade não era agricultor, e sim ator – nunca quis provar nada para Segismundo; apenas quis provar para si mesmo que num mundo de violência e guerra ainda era possível exercer seu ofício de ator.

SEGISMUNDO - O que o senhor acha que provou para mim?

CLAUSEWITZ - Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim mesmo. Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu sou ator. Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no mundo depois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer. Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta fazer. Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém precisa saber como se faz esse mingau...

SEGISMUNDO - Saia da minha sala, o senhor, o teatro e o mingau.

Para mim também me basta fazer. Se meus alunos estiverem aptos a se expressar a ponto de conseguir ensinar a alguém como se faz um mingau, para mim já vai estar de bom tamanho. Pouco me importa se a receita do mingau foi passada no registro culto ou não da língua...




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