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29.1.11

Por que digo ao mundo que sou ateu – parte I

(Menino, Renato Lucas Pereira de Alencar, um dos cariocas que ajudou no voluntariado em prol da região serrana - Foto: Rafael Moraes - Ag. O Dia)



Lembro-me de uma conversa que travei algum tempo atrás com uma colega de trabalho, uma doçura de senhora chamada D. Beth. Gosto muito de conversar com ela. É uma daquelas senhorinhas que acho que todo mundo gostaria de ter como avó: amável, carinhosa, prestativa, sempre disposta ao diálogo e às novidades não obstante a idade avançada. D. Beth é católica praticante: vai à missa com frequência, comunga e se confessa, cumpre o jejum da quaresma, etc. Mas embora sendo ela uma católica praticante e eu um ateu convicto, mantemos uma relação ótima; conversamos muito sobre muitas coisas. E fui numa dessas conversas que ela me falou: “Você não é ateu. Você não tem nada de ateu. Você se preocupa com as pessoas, está sempre tentando ajudá-las, se comove fácil com as injustiças e as desumanidades: você tem um coração bom demais.” Eu agradeci os elogios, claro; mas contra-argumentei que o fato de sermos ateus não nos torna menos humanos nem humanitários. O “amar ao próximo como a si mesmo” nunca foi mérito apenas dos que se dizem cristãos ou tementes a um deus qualquer. Muito antes do advento da cristandade, a caridade já era uma característica inerente ao ser humano. Todas as civilizações antes da cultura judaico-cristã sempre tiveram valores de grande respeito e caridade pela condição humana. Velhos, doentes, crianças, mulheres; qual cultura alguma vez os deixou de proteger social e juridicamente? Da antiga cultura egípcia aos gregos e romanos, dos celtas aos indígenas sul-americanos do século XVI e às religiões animistas dos negros africanos; enfim, em todas as culturas ditas pagãs de que temos conhecimentos, sempre se valorizaram a preocupação com o próximo e a igualdade entre os homens. Assim sendo, não podemos dizer que a caridade tenha uma origem histórica e cultural definida porque o homem é bom. O homem sempre foi bom. O homem não passou a ser bom com o cristianismo. E isso é algo que precisa ficar bem claro, porque a religião levou a maioria das pessoas a pensar que os cristãos são os que mais contribuem para que a caridade exista (senão os únicos), e que os não-crentes são sempre egoístas, pessoas amargas sem preocupações com a luta e as dores dos menos afortunados.



Pensando nessa questão do não-egoísmo dos teístas (e, sobretudo, dos cristãos), não posso deixar de me reportar à tragédia recente que se abateu sobre os moradores da região serrana do Rio de Janeiro. Não é novidade alguma que em situações de tragédias como essa as pessoas demonstram todo seu potencial para a caridade, para praticar o amor ao próximo. Haja vista a quantidade de doações que foi recolhida, sem falar na mobilização de inúmeros voluntários que ajudaram no resgate das vítimas e na oferta de algum conforto nos abrigos para os quais elas foram levadas. Obviamente que não foram só os teístas que se empenharam na solidariedade durante esse episódio da tragédia na região serrana: muitos ateus, com toda certeza, fizeram sua parte. Como eu disse acima, o homem sempre foi bom... mesmo que, por vezes, ele não tenha muita consciência disso; mesmo que, por vezes, a demonstração dessa bondade necessite ser desencadeada por uma tragédia de tão enormes proporções. Porém (e sempre tem um “porém”) algumas atitudes e reações muito me espantaram durante a tragédia das chuvas. E esse espanto adveio justamente por conta de algumas declarações de teístas cristãos que sobreviveram à tragédia. Foi curioso observar como quase todos eles, em entrevistas aos meios de comunicação, lançavam pérolas do tipo: “Foi deus que livrou a mim a minha família”. Opa! Deus livrou esse sobrevivente e sua família da tragédia mas não livrou outros? Então vamos pensar! Pode ser que esses que não foram poupados fossem ateus, não fossem cristãos... Mas putz! Mais de 800 ateus só na região serrana do Rio de Janeiro??? Não, claro que não: dos que morreram, talvez 1% apenas fosse ateu, ou até menos. Pode ser também que os que morreram fossem pessoas más que mereciam esse castigo divino, como os habitantes de Pompéia subitamente cobertos pelas cinzas e lama do Vesúvio ou como os cananeus de Sodoma e Gomorra. Também não, claríssimo que não: várias crianças morreram e, com certeza, muita gente de boa índole. Como entender então que esse deus tão piedoso tenha poupado a vida a alguns e tenha deixado outros sucumbirem? Não lhes parece também um egoísmo nada caridoso quando um cristão diz “deus livrou a mim e a minha família” durante tragédias como essa?


Mas aí vêm os teólogos de plantão e os defensores da crença para dizer que deus tem seus desígnios e seus planos. Ora, ora... eu até tento (juro que tento) respeitar as crenças das pessoas, mas justificar a sobrevivência de alguns e a morte de tanto outros como desígnios de deus, como uma etapa de um plano divino maior!!!! Forte demais pra minha cabeça, na boa... Como podem os teístas afirmar isso? E pior, como podem vangloriar-se os sobreviventes por terem escapado segundo a vontade desse mesmo deus? Nem nas explicações mais estapafúrdias dos dispensensacionalistas poderíamos encontrar respostas para tantas vidas ceifadas assim de uma só vez. O quê??!! Um arrebatamento de 800 almas só ali na região serrana, é isso?? Que desígnios são esses, que plano é esse? Que deus tão bom é esse que “livra a mim e a minha família” mas não livra o vizinho e a família dele? Por essa lógica estúpida, esse seria um deus que escolhe, que seleciona, segundo seus desígnios e seu plano maravilhoso. Ora bolas! Seleção por seleção, prefiro acreditar naquela natural proposta por Darwin. Prefiro acreditar que uns respiram melhor e por mais tempo debaixo d’água ou soterrados na lama. Prefiro acreditar que uns têm uma maior resistência (natural ou adaptada) para suportar mais tempo sob escombros. Prefiro acreditar que uns tiveram aquele insigth, aquele instinto de sobrevivência que é marca do reino animal ao qual pertencemos, e se retiraram milésimos de segundos antes do barranco desmoronar, da pedra rolar, da onda gigante passar ou da casa cair... um milésimo de segundo pode fazer uma diferença e tanto: a diferença entre permanecer vivo e sucumbir!


Prefiro acreditar na seleção natural a acreditar na seleção desse deus dos desígnios e dos planos. Pelo menos, na seleção natural, estou livre de cabrestos, de convenções estúpidas e de temores. Pelo menos, na seleção natural, não entro em conluio com um deus impeodoso que gosta de brincar de batalha naval ou um jogo de tabuleiro qualquer e aponto meu dedo para qual dos meus semelhantes deve morrer ou não. Pelo menos, na seleção natural, não sou obrigado a viver toda uma vida de privações de prazeres e de joelhos dobrados para, num momento qualquer, ser arrancado a essa vida sem nenhuma explicação, como o vizinho e sua família. Não preciso ter vínculos com nenhuma realidade supra-humana, estou livre para decidir por mim mesmo, sem medo de estar indo contra ou esperando estar a favor de algum tipo de supra-consciência à qual se deva obediência cega. Posso reduzir minha crenças a um número limitado delas, focadas no “aqui e agora”. Posso me saber ligado aos meus semelhantes não por algum tipo de poder sobrenatural, mas simplesmente pelo fato de APENAS ser um ser humano convivendo entre os demais seres humanos e de acordo com as leis humanas e naturais.


Vivendo conforme as regras da seleção natural, eu não espero nenhuma recompensa por meus atos senão aquelas que os outros seres humanos possam me oferecer... se eu assim merecer. Posso cortar todos os excessos e enxergar a vida pela perspectiva humana, sem a necessidade de deificá-la ou deificar o que quer que seja. É claro que, vivendo conforme as regras da seleção natural, eu posso ter fé. Fé em mim mesmo e nos meus semelhantes. Mas não uma fé que me cega, pelo contrário. Uma fé que me faz abrir os olhos para o que está acontecendo a fim de que se tomem as medidas necessárias, sem acreditar numa outra justiça maior do que aquela que possa ser levada a cabo por mim mesmo ou pelos desígnios humanos. Medidas necessárias essas que não foram tomadas pelos governantes que sempre fecham os olhos para a pobreza dos que os elegem, pelos agentes gananciosos da especulação imobiliária que implantam mansões e jacuzzis onde deveria haver vegetação nativa e também, por que não, pelos mais desprovidos que insistem em morar em áreas de risco mesmo sabendo que são áreas de risco.


Ao sobrevivente que se regozijou em cadeia nacional na tevê por deus ter livrado a ele a sua família eu digo: não foram os desígnios divinos mas sim os desígnios humanos os responsáveis por toda essa tragédia. Não venha me dizer que você e sua família foram escolhidos por deus para sobreviver e mais de 800 pessoas foram escolhidas para morrer, senão eu vou dizer que esse seu deus é um crápula, um tirano, um sanguinário. Essas outras mais de 800 pessoas rezaram e acreditaram tanto quanto você. O que faz de você e sua família melhores que elas? Que egoísmo absurdo é esse que leva os teístas a acreditarem que eles possam ser poupados por seu deus e outros não numa situação de tragédia? Cadê a caridade cristã nesse tipo de pensamento? Ah sim... o plano divino.


Eu também, como aliás todo ser humano, tenho cá comigo os meus planos de vida. Planos mais imediatos, planos para o futuro. Mas em nenhum desses meus planos está incluído o sacrifício de mais de 800 vidas de uma só vez... É que meus planos são bem modestos, sabe?

6.1.11

Ano novo, vida nova... Será mesmo?


(Autoria da foto: Edmilson Borret - 31/12/2010)


Não querendo ser chato, mas já sendo... alguém já parou pra pensar no seu real sentido dessa frasezinha tão clichê? Eu diria que ela reflete uma atitude nada incentivadora, uma visão nada heróica (ou estóica, como queiram) da vida, visão essa inventada e disseminada por algum sujeito insatisfeito com o que foi sua vidinha no ano que passou.

Por que será que todo ano falamos a mesma porra? Que no próximo ano a vida recomeçará, que tudo será diferente, que isso e aquilo e blá blá blá... Por que insistimos em repetir o maldito slogan “Ano novo, vida nova”? Parece piada, né? Mas é como se nossas vidas fossem regidas por cronômetros de 12 meses, que serão zerados ao final de dezembro. Coloca-se janeiro como o mês oficial das mudanças, da renovação e de todas as esperanças... But, what a surprise!!!...continuamos todos, absolutamente todos, com a mesma vidinha que, por conta de nossos desejos insanos e ilógicos, deveria ter acabado no ano anterior.

Mas o fato é que não existe nem uma, nem umazinha razão cientificamente lógica para toda essa pré-disposição emocional que move os corações e mentes dessas pessoas. Porque, se assim o fosse, toda a civilização estaria embarcando nesse espírito de renovação. Mas sabemos que isso só acontece aqui no Ocidente. O restante do mundo não está nem aí para a queima de fogos na Time Square, na Avenida Paulista ou em Copacabana. Esse fato, na verdade, só mexe com a sociedade ocidental de matriz cristã (Américas, Europa, partes da Oceania, etc.). Outras regiões do mundo, apesar de toda a globalização, apesar de toda a influência da colonização anglo-ibérica, possuem diferentes matrizes de contagem do tempo, levando-as a terem comemorações distintas da nossa. Enfim, enquanto estamos entre Natal e Ano Novo, outras regiões estão nos seus dias mais ordinários. Ou seja: nenhuma mudança astral ou exotérica ocorre no mundo por conta da mudança no calendário. Nenhuma lua, nenhum sol, nenhuma estrela no céu vai fazer a vida de ninguém tomar um novo rumo a partir de 1º de janeiro...

Assim, entre dezembro e janeiro, todos os anos no Ocidente, comemora-se o Natal, festa do nascimento de Jesus Cristo (ponto de partida da contagem dos anos), e o Ano Novo: início de mais um ciclo em nosso calendário, contado a partir de 1º de janeiro. Mas é só isso, gente: início de mais um ciclo no calendário... nada a mais que isso!!! O calendário cristão é solar, tem 365 dias (ou 366) ou doze meses. Seguimos o calendário gregoriano, usado desde o século XVI, mas há também o calendário Juliano (usado na Igreja Ortodoxa).

Já no judaísmo, por exemplo, o primeiro mês do calendário chama-se Nissan (equivale, no calendário gregoriano, a 30 dias entre março e abril), mas o Ano Novo judaico começa em Tirshei (entre setembro e outubro). Os judeus iniciaram a contagem do seu calendário em 7 de outubro do ano 3760 a.C que, segundo eles, é o dia da Criação do mundo. Portando, eles estão no ano 5770. Caraca! Os caras estão adiantados pra cacete!!!!! rsrs

No islamismo, por outro lado, seu calendário (que é lunar) começa com a Hégira, a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 622 d.C. O ano começa no 1º de MuHarram. Como existem diferenças de dias entre os anos lunares e solares, as datas de início do ano islâmico, com relação ao calendário gregoriano, sofrem diversas mudanças. Em 2010, o 1º MuHarram foi em 7 de dezembro. Já em 2011, será em 26 de novembro. O calendário chinês, curiosamente, é lunissolar: tem 354 dias. Mas, a cada oito anos, são acrescentados mais 90 dias ao ano, para que haja sincronia entre o ano solar e o lunar. Enquanto estamos em 2011, os chineses já estão no ano 4708. Outro povo que está disparado na nossa frente... rsrs

O Japão usava um calendário lunissolar, mas, a partir de desdobramentos da Revolução Meiji, em 1873, resolveu adotar o calendário gregoriano também. O calendário hindu, apesar de coincidir com o gregoriano na contagem de dias e de anos bissextos, é contado a partir de 79 d.C. No entanto, na Índia, há uma enorme confusão, pois existem mais de 30 calendários regionais.

Ou seja... o ano que se inicia pode até ser novo para a ocidentalidade, verdade! Mas nossa vida é a mesma! O mundo, como um todo, é o mesmo! Ou alguém duvida que na primeira segunda-feira, logo após o período festivo, voltemos todos para nossas mesmas rotinas, nossos mesmos escritórios, nossos mesmos empregos? O fato é que continuamos com o mesmo carro, a mesma casa (ou o mesmo lote sob o viaduto), os mesmos amigos. Mantemos as mesmas manias, a mesma personalidade, os mesmos problemas... Só ficamos mais velhos, aliás como toda a humanidade. Então só me cabe perguntar: onde, cacete, está a tal da vida nova????

Mas vejam bem... Não é que eu seja contra o fato de as pessoas terem esperanças. Pelo contrário, acho até louvável. Esperança traz o sonho de um futuro melhor, dá forças para seguir em frente. Isso é fato! O que coloco em xeque não é a presença dela, mas sua ausência. A esperança não deveria ser incensada somente à meia-noite do dia 31 de dezembro, e sim nos acompanhar em todos os dias do ano. Sou a favor das mudanças. Acho que elas são necessárias sempre quando algo não está no seu devido lugar, mas elas não devem, necessariamente, ocorrer após os fogos de Copacabana ou depois que as sete ondas passarem sob nossos pés. E sim quando as oportunidades surgirem, seja em janeiro, em março, em agosto ou em novembro.

Tenham esperanças! Efetuem mudanças em suas vidas sempre que acharem necessário! Mantenham seus sonhos; nunca se desfaçam deles! Mas façam isso sempre que puder. O dia primeiro do ano é só mais um dia após o outro. Janeiro é só mais um mês. Nossa vida é um ciclo de atos nossos... não de anos, não de meses. Pois, como já disse Drummond... Para ganhar um Ano Novo / que mereça este nome, / você, meu caro, tem de merecê-lo...”



RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

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