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5.2.07

Perto do coração selvagem de Clarice




Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.
(Clarice LISPECTOR. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)



Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é, sem dúvida, um dos livros mais fantásticos que já li. A história de Lóri (Loreley, a sereia germânica que seduzia os navegantes do Reno; a sereia de Campos a quem Ulisses resiste, fechando-se a seus encantos, até que eles mesmos se tornem encantados) nos encanta justamente pelo fato de tudo estar por acontecer. Absolutamente nada é imediato, o conhecimento da personagem se constrói lentamente, como se a natureza estivesse acumulando a seiva da vida, mas sem perder o sentido de sua precariedade. A narrativa parece mostrar o próprio mistério da experiência. E daí talvez advenha o estranhamento da estrutura e da linguagem do romance: ignoramos o início, desconhecemos o fim. A narrativa parte de uma vírgula inicial e original, vírgula essa que tem a forma do nosso ancestral espermatozóide, também original. Vírgula essa que parece sinalizar uma continuação de um não sei quê de desconhecido que apenas aumenta o sentido de precariedade. Enquanto os dois pontos finais fazem dessa narrativa algo extremamente incômodo, isto é, acentuam nosso desconhecimento do fim. Talvez porque Lóri e Ulisses sejam pessoas tão comuns - professora primária, professor universitário - de suas vidas só temos poucas indicações, quadros pintados meio a distância, momentos já vividos. Vidas comuns, mas vividas com intensidade, com o prazer e dor de seres jogados num mundo, onde a felicidade é quase sempre uma ficção. Um encontro, um amor, um caso. Tudo muito humano, "demasiado humano".
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é um livro inclassificável e é impossível qualquer tentativa de comparação. Ao término da leitura, lembrei-me um pouco de A náusea, de Sartre: os dois são livros que falam da angústia do nada, a construção do sujeito pela construção do amor. Mas Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é diferente. A narrativa, apesar de linear, não tem início, meio e fim, porque só tem meio. Como um meio-termo.

Era uma noite muito bonita: parecia com o mundo. O espaço escuro estava todo estrelado, o céu em eterna muda vigília. E a terra embaixo com suas montanhas e seus mares.
Lóri estava triste. Não era uma tristeza difícil. Era mais como uma tristeza de saudade. Ela estava só. Com a eternidade à sua frente e atrás dela. O humano é só.
(Clarice LISPECTOR. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)


O que acontece na verdade com Lóri é que - por algum motivo que nem ela mesma sabe qual - ela tinha, por medo, cortado a dor de sua vida. Só com Ulisses viria aprender que não se podia cortar a dor, senão se sofreria o tempo todo.
Ao contrário dos niilistas que buscavam a verdade, mas não podiam suportar o aparecimento dessa verdade, Lóri constata e aceita a verdade da existência. Reconhece que todo prazer que desconsiderar a dor ou ignorá-la, graças à aparente e passageira plenitude da felicidade, é necessariamente um prazer falsificado. Ou a gente vive essa dor ou corre o risco de viver como a narrativa do romance: sem início e sem fim, só meio. Meio-termo...


Meio-termo

Ah! Como eu tenho me enganado
Como tenho me matado
Por ter demais confiado
Nas evidências do amor

Como tenho andado certo
Como tenho andado errado
Por seu carinho inseguro
Por meu caminho deserto

Como tenho me encontrado
Como tenho descoberto
A sombra leve da morte
Passando sempre por perto
E o sentimento mais breve
Rola no ar e descreve

A eterna cicatriz
mais uma vez
Mais de uma vez
Quase que fui feliz

A barra do amor é que é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo


(Lourenço Baeta / Cacaso)





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