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14.12.08

Capitu atirando em elefantes me fez chorar... And it rips through the silence

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Não falarei da microssérie Capitu, a cujo último capítulo assisti na noite de ontem quase em prantos, com os olhos de professor de literatura que sou. Não. Tais olhos poderiam trair-me, como acreditou Bentinho terem-lhe igualmente feito os olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Deixo um pouco de lado, pois, o professor de literatura amante incondicional da obra machadiana, para dar voz ao espectador ávido de imagens e modernidades plasmadas numa telinha da tv. Até porque o texto de Machado sempre me fez dar boas risadas, mesmo os mais sisudos e graves. Já a magistral adaptação de Luiz Fernando Carvalho do romance Dom Casmurro levada ao ar pela Rede Globo esta semana me fez chorar em vários momentos, sobretudo o grand finale. A questão é que tenho tara por imagens. Imagens, com freqüência, têm o poder de me emocionar e, não raro, me comovem. Não as imagens mentais, mas as imagens visuais, as que me atingem direto as retinas, as que estão no enquadramento do meu olhar. E, nesse sentido, o trabalho realizado na microssérie Capitu foi foda!... Tão foda quanto usar a palavra “foda” num texto em que se vai, ainda que indiretamente, falar de Machado... Mas vá lá: a palavra já foi lançada.

Antes de mais nada, quero aqui refutar algumas críticas à micossérie, críticas essas que li em vários fóruns por esse mundão cibernético afora, notadamente na comunidade dedicada a Machado no Orkut. A primeira dessas críticas condena Luiz Fernando Carvalho por ele ter imprimido sua visão pessoal ao romance Dom Casmurro em detrimento do que seria “a visão de Machado”. Juro que nunca li tamanha tolice. Ora, se um diretor (seja ele diretor de uma microssérie, de um filme, de uma peça) não aplicar sua visão pessoal da obra, digam-me por favor o que ele deveria aplicar. E mais: a visão de Machado?! Quem aqui sabe qual foi ela? Talvez (vejam bem que digo “talvez”) só tenha existido uma pessoa no mundo que poderia nos dizer qual foi a visão do Machado. Infelizmente, estamos comemorando neste ano de 2008 o centenário da morte dessa pessoa: ele próprio, Machado de Assis! Outra crítica que se fez à microssérie foi a de que ela estaria detonando com a ambigüidade do texto original, com a dúvida que transpassa a escritura machadiana. Mais uma enorme besteira! Todos os ingredientes dessa ambigüidade e dessa dúvida estão presentes na adaptação televisiva. Como o próprio diretor explicou, ele quis fazer de Capitu “um ensaio sobre a dúvida”; e para tanto usou e abusou de expedientes bastante convincentes: o trabalho de fotografia, os movimentos em cena, a luz e as sombras, o tom operístico, tudo esteve a serviço do processo criativo que procurou, antes de qualquer coisa, evocar uma espécie de improvisação, “como um quadro que está sendo pintado no momento em que a cena acontece”. Todos esses elementos juntos serviram para deixar no espectador aquela mesma incerteza experimentada ao se ler o romance. Além disso, o personagem-narrador esteve presente o tempo todo na adaptação de Luiz Fernando Carvalho: o contraponto entre o que ele narrava e o que era mostrado só fez aumentar essa sensação de dúvida e ambigüidade (talvez até mais que no romance, ouso dizer). E o jogo de câmeras foi magistral: para as cenas que representam o ponto de vista de Dom Casmurro, criou-se uma lente especial de mais ou menos 30 cm de diâmetro, cheia de água, acoplada à frente da câmera “para dar à imagem a textura aquosa como o mar de ressaca dos olhos de Capitu e a aparência de alguém que ora flutua, ora é arrastado pelas águas do tempo – a matéria de Dom Casmurro são apenas suas memórias, suas fantasias”. E uma terceira crítica que muito vi nos tais fóruns foi a que se refere aos elementos de modernidade explícita presentes na microssérie: o rock e as músicas internacionais, os aparelhos de mp3, o celular, o trem da Supervia, o rap de Marcelo D2, entre outras coisas. Particularmente, eu achei tudo isso magnífico. Como falei no início, é com os olhos de espectador ávidos por imagens e inovações visuais que falarei de Capitu. E, nesse sentido, a microssérie cumpriu talvez mais um importante papel: reaproximar os jovens da obra machadiana, desfazer o preconceito que esses jovens têm da obra de Machado, a qual só lêem por obrigação escolar. “O que fiz foi reafirmá-lo em termos de conteúdo e linguagem. A síntese do texto é dele. Agora, é claro que eu espelhei aquelas situações e as lancei para outras relações de imagens, procurando um diálogo com possibilidades simbólicas da modernidade, alçando o texto a outras visibilidades”, conta Carvalho.


Mas, voltando à microssérie e esquecendo as críticas a ela, que prazer imenso experimentei nesses últimos cinco dias! O primeiro capítulo me pegou de jeito. Logo no início, a cena do trem superlotado da Central já foi um baque: os acordes da guitarra de Hendrix e o trem grafitado serpenteando pela noite contemporânea do Rio de Janeiro formaram o cenário perfeito para o encontro do personagem-narrador com o rapaz que ele conhecia de vista e de chapéu e que lhe daria a alcunha que serviria de título para o romance... Ah... “a vida tanto pode ser uma ópera quanto uma viagem de mar... ou uma batalha”...





Logo depois, a CENA!!!! Sim, a CENA… Capitu nos é apresentada no mesmo e exato momento em que nos é apresentada a música que vai ficar em nossos ouvidos por muito e muito tempo. “Elephant Gun” do Beirut ao fundo, enquanto Capitu jovem risca no chão um traço de giz sobre o qual Dom Casmurro caminha trôpego e faceiro. E ali fica a dúvida: caminhará Capitu nas linhas traçadas pelo narrador ou, ao contrário, foi o narrador-personagem que teve seu destino traçado por Capitu? A cena é linda de doer... Letícia Persiles deixa qualquer marmanjo apaixonado! Melhor escolha não poderia haver para representar a jovem Capitu dos “olhos de ressaca, como um força que arrastava para dentro”... Michel Melamed (que interpreta o já velho Dom Casmurro e o Bentinho adulto) dá show de atuação, nessa cena e em todas as outras... Apaixonei-me por ele também...





E então vêm duas cenas também magistrais: a da varanda e a da inscrição. Bentinho jovem oferecendo a hóstia a Capitu, num ritual perfeito de comunhão entre a inocência do rito católico e sensualidade dos passos quase dançados de Capitu. O muro foi transportado para o chão, que virou lousa onde os personagens inscreviam suas impressões a giz, como numa sala de aula... A vida como uma aprendizagem... E Capitu diz: “Meus sonhos são mais bonitos que os seus”... “Eram!”, concorda o velho Dom Casmurro. E Bentinho se dá conta: “Quer dizer então que eu amava Capitu e Capitu me amava?”... Ora, Bentinho, tu não leste a inscrição que ela fez ao esburacar o reboco do muro?! O muro, meu caro Bentinho, o muro falou por vós... E dá-lhe mais “Elephant Gun”!!!!









Mas é, talvez, no segundo capítulo que está a cena mais linda e perfeita de toda a microssérie... A cena do penteado, sem dúvida alguma, vai virar umas daquelas cenas antológicas da teledramaturgia brasileira... Sobre ela nem comentarei nada... Seria quase uma heresia... Capitu é uma esfinge a ser desvendada... Dom Casmurro chora vendo os dois nessa cena... Eu também... E quem não? Ah... “eis aqui um que não fará grande carreira nesse mundo: as emoções o dominam”...





No terceiro capítulo, a cena que chocou o mais conservadores... Escobar é apresentado dançando sobre uma mesa. A música é “Iron Man”, da banda de heavy metal Black Sabbath dos anos 70/80, tocada ao piano. A coreografia foi criticada por alguns por seu gestual efeminado (juro que li um “boiola” nos fóruns de discussão do Orkut!)... A cena é de uma teatralidade impressionantemente bela! Em alguma coisa, lembrou-me uma outra cena do filme Hair, em que o personagem Berger também dança sobre a mesa cantando “I’ve got life”. É o início dessa relação de amizade (alguns teimam em afirmar que era mais que isso) entre Bentinho e Escobar... Bentinho parece inebriado pela figura do amigo que acabara de conhecer, o amigo o seduz à primeira vista, a identificação de almas é imediata... Almas são casas: ora com muitas janelas e portas abertas, cheias de luz; ora, fechadas, cheia de sombras, semelhantes a conventos e prisões...





No quarto capítulo, mais emoção... É a cena do retorno de Bentinho já adulto após ter ido estudar em São Paulo. Aqui um parênteses para falar da brilhante atuação do ator Antonio Karnewale, que faz o agregado José Dias. Foi, ao lado do Melamed, uma das grandes surpresas da microssérie. Deu o tom exato e perfeito ao personagem dos muitos superlativos. Nesta cena, Bentinho retorna e é chamado por todos de Dr. Bento Santiago. D. Glória, tio Cosme, prima Justina e José Dias o paparicam ainda mais... “Eis aí teu filho... Filho, eis aí tua mãe”, diz José Dias. Mas o grande reencontro mesmo ainda estava por vir. Surge na sacada a Capitu também adulta: linda, estonteante!! Maria Fernanda Cândido mais bela que nunca empresta seu corpo e seus olhos à personagem feminina mais famosa de nossa literatura... Chorei mais uma vez...





Bem, foram muitas as cenas que me comoveram nessa adaptação de Dom Casmurro para a televisão. Para ser sincero, quase todas elas. O toque mágico de Luiz Fernando Carvalho foi essencial para que esse sentimento de “já-saudade” que estou experimentando começasse a se prefigurar já ontem no início do último capítulo. Que, aliás, segundo os críticos de plantão, foi o capítulo que mais se aproximou da atmosfera machadiana. Se foi, não sei. Só sei que foi muito lindo! A cena em que Escobar se afoga é outra que vai ficar na memória da televisão brasileira: o movimento de um enorme plástico balançado pelos próprios atores. Pierre Baitelli dá um show de expressão corporal! Logo em seguida, a cena do enterro: o cenário todo branco em contraste com o luto dos personagens... E a lágrima de Capitu diante do morto no caixão... Lágrimas quase de uma viúva, segundo o doentio ciúme de Bentinho. A seqüência de cenas é magnífica e tocante! Mais choro deste que vos escreve...





E então, o grand finale: o retorno de Ezequiel da Europa após a morte de Capitu, que lá foi enterrada durante a longa viagem que fez depois de sua separação de Bentinho. O choque de Bentinho ao ver o filho crescido, acreditando estar vendo seu amigo Escobar diante dele. A cena da morte de Capitu contada pelo filho: o espelho caindo-lhe das mãos (o mesmo da cena do penteado no segundo capítulo), o sorriso estampado-lhe no rosto na hora da morte.





Infelizmente, não há no site da Globo a cena da morte de José Dias. Essa vocês terão que esperar que saia a DVD para conferir. Mas foi belíssima. O último superlativo do agregado foi de machucar corações. Antonio Karnewale merecia o Oscar por ela!

A cena final é com Dom Casmurro congelando os personagens da história à medida que passa por eles, um a um, no galpão do Automóvel Club em que a microssérie foi gravada; isso ao som de “Elephant Gun”, que será, logo em seguida, substituída pela belíssima “Juízo Final” de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, enquanto mais uma vez o trem da Supervia serpenteia pelo Rio de Janeiro contemporâneo... E o velho Dom Casmurro - agora meio Bentinho, meio Capitu, meio D. Glória, meio José Dias (fantástica a incorporação de todos os outros personagens na figura de Dom Casmurro nessa cena final!) - soltando as últimas frases do romance: “A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios”... Chorei baldes...


E aí, cabe a vocês agora me perguntarem o porquê do título desta postagem. Bom, tem a ver com a postagem imediatamente anterior a esta, na qual falo sobre a banda Beirut e seu hit “Elephant Gun”. Não sei vocês, mas toda vez que eu reler agora Dom Casmurro, o farei com essa música na cabeça. Nunca uma música encaixou-se tão bem a uma história como essa ao texto de Machado. Até mesmo a letra da música tem algo de machadiano, tem algo niilista, pungente e cético:

If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight

Far from home, elephant gun
Let's take them down one by one
We'll lay it down, it's not been found, it's not around

Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down

Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down

And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the night

And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the silence, all that is left is all that i hide


(Se eu fosse jovem, eu fugiria desta cidade
Enterraria meus sonhos no subsolo
Como eu, nós bebemos até morrer, nós bebemos essa noite

Longe de casa, arma para elefante
Vamos derrubá-los um a um
Nós os deitaremos, eles não foram encontrados, não estão por aqui

Que comecem as estações - elas rolam como devem
Que comecem as estações - derrube o grande rei

E rasgam o silêncio do nosso acampamento à noite
E rasgam a noite

E rasgam o silêncio do nosso acampamento à noite
E rasgam o silêncio, tudo que é deixado é o que eu escondo)




É isso. A microssérie Capitu teve o mérito de atirar em elefantes. E foram vários os elefantes: desde as críticas mais pesadas à roupagem dada ao texto machadiano por Luiz Fernando Carvalho, passando pelo suposto estranhamento provocado naqueles que se arvoram donos da obra de Machado, até o preconceito que os jovens tinham com relação ao romance Dom Casmurro... Alguns silêncios foram, sem dúvida, rasgados com esse belíssimo trabalho de Luiz Fernando Carvalho.



A propósito: o primeiro elefante a tombar, acredito eu, foi o imbecil do Diogo Mainardi.

10.12.08

Meu vexame de amor por Zach Condon

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Recentemente, por conta das chamadas da Globo para a nova microssérie, Capitu, fui tomado de uma paixão louca por uma voz... Aquela voz e aquela harmonia musical ficaram martelando em meus ouvidos. Fui pesquisar. Descobri Beirut e seu líder, Zach Condon: a paixão só fez se confirmar. A princípio, pensei tratar-se de uma banda folk do leste europeu, tamanha era a influência de sons e instrumentos que compunham o som dos caras, algo com forte característica da música dos ciganos. Logo depois, descobri tratar-se de um garoto, sim um garoto, de 21 anos de idade: a paixão tomou ares de obsessão...

A história de Zach Condon é, no mínimo, sui generis: por volta de seus 15 ou 16 anos de idade, deixa a sua escola em Santa Fé, Novo México (EUA), e parte para a Europa para conhecer novas e diferentes culturas. Durante dois anos convive apaixonadamente com a cultura italiana, francesa e, principalmente, toda a cultura dos Bálcãs, onde conheceu os membros da orquestra de Boban Markovic (a mais influente banda de folk cigano de toda aquela região). Ao regressar aos EUA, edita em 2006 dois EP’s - Lon Gisland e Elephant Gun - e, logo depois, um LP (sim, um LP) que reúne a maioria das canções desses EP’s de estréia - Gulag Orkestar - sob o nome Beirut, banda que conta também com Jeremy Barnes e Heather Trost, entre outros. O som do Beirut é inspirado nas diversas culturas européias que Zach conheceu na sua "digressão" e o registro folk balcânico está bem presente na maioria das suas músicas.

O seu primeiro single, "Elephant Gun" (essa mesma música da chamada da microssérie Capitu e que me encantou antes mesmo de eu saber quem a cantava), rapidamente se tornou um sucesso na comunidade indie mundial e o videoclipe ilustra bem a alma festiva da música, bem como o carisma singular de Zach Condon:



O segundo single, "Postcards From Italy", apaixonou mais pessoas pelo mundo inteiro e globalizou a música do Beirut. O clipe tem algo de nostálgico e retrata memórias da própria vida de Zach:



Os dois vídeos foram dirigidos por Alma Har’El, diretor israelense que, entre outros trabalhos, andou produzindo videoclipes também para Taylor Hawkins, baterista do Foo Fighters; para os Rolling Stones e para a Nikka Costa. Sobre sua parceria com Zach, logo após o lançamento do clipe de "Post cards from Italy", ele disse: "The young Zach Condon will be in my mind for the next few months."

O mais curioso do trabalho do Beirut é observar como um rapaz de apenas 21 anos pode ter tamanha sensibilidade, cantar com a alma, criar arranjos tão belos? Zach Condon gravou o seu primeiro álbum no seu próprio quarto. Intrigante pensar que um moleque tão jovem poderia compor e escrever canções de carga emocional tão forte, como se já tivesse vivido uma vida inteira quando na realidade não tinha ultrapassado sequer um quarto dela. Aí em seguida a gente vem a descobrir que ele nunca tinha pegado em todos aqueles instrumentos antes. Com seu espírito autodidata, Zach juntou tudo e foi tirando os sons que podia, buscando beleza e inspiração de pequenas notas até formar canções. Ou ouvir Gulag Orkestar e os dois EP’s de 2006, toma-se um susto. São tantos instrumentos e harmonias, com uma voz sofrida de quem realmente sente tudo aquilo que canta, que é impossível não se deixar seduzir pela sofisticação e beleza das canções. A atmosfera étnica é tão miscigenada que não tem como ter certeza de onde aquilo tudo poderia ter suas raízes enterradas; só uma ligeira desconfiança de que vinha lá do outro lado da Europa, das ruínas do pós-guerra em algum pequeno país da ex-Iuguslávia ou de ruas vazias de alguma cidade soviética esquecida após a Guerra Fria.

Beirut é algo mágico, que acende e acaricia a sensibilidade, que passeia na alma e expõe a ferida, é diferente e encantador. Em 2007 lançaram mais um EP, Pompeii, com três temas originais. Em agosto de 2007, lançam na internet o seu mais recente LP - The Flying Club Cup, onde Zach se mostra um músico mais maduro, mas não menos fantástico. The Flying Club Cup é o primeiro trabalho do Beirut como uma banda completa. Com produção mais caprichada, o novo disco traz a sonoridade mais para o oeste europeu, mostrando características e traços franceses. A inspiração inicial veio de uma foto que Zach sempre manteve nos estúdios pelos quais passou: a imagem de balões sobrevoando a torre Eiffel. Zach capricha na voz nesse segundo trabalho; chora menos e canta mais. A percursão foi enriquecida, com a ajuda da banda, é claro, e soa menos repetitiva. Pra afrancesar tudo ainda mais, tem o acordeão. É fechar os olhos e a gente parece ouvir o Rio Sena bem do seu lado.

Deixar de ser apenas uma pessoa para se tornar uma banda não levou embora, de maneira alguma, a personalidade do Beirut. A nostalgia e melancolia de Gulag Orkester ainda estão presentes, porém com a sofisticação orquestral de canções como "A Sunday Smile" e "In The Mausoluem". Esta segunda é impressionantemente linda:



A composição dos arranjos de cordas teve ajuda de ninguém menos que Owen Pallet, o homem por trás do Final Fantasy (não o desenho, por favor; falo do projeto canadense de orchestral-pop). Outro destaque do disco é o piano, como nas faixas "Cliquot" e em "Un Dernier Verre (Pour La Route)", onde, com notas graves, carrega a música sob os vocais de Zach. No outro extremo está a simplicidade e despretensão de canções como "Forks and Knives (la Fête)" e "Cherbourg".

Com humores que flutuam entre a tristeza e a saudade, The Flying Club Cup é um álbum intenso e arrebatador. É trilha sonora perfeita para momentos marcantes. E é justamente a terceira faixa, "A Sunday Smile", que nos revela isso. Afinal, um sorriso num domingo, o pior dia de todos, deve ser realmente em razão de algo muito especial, um acontecimento.

3.11.08

Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur...

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Terminado todo o processo eleitoral aqui no Rio, quase mergulhei em profunda depressão. Desconectei do Orkut e do MSN por um tempo e fui fazer outras coisas... Era preciso me afastar um pouco da sujeirada toda que foi essa eleição. Opções: ler um bom livro ou fazer as pazes com o dvd player e pôr em dia a paixão pelo cinema... Optei pela segunda. Lembrei-me que havia pegado emprestado com um amigo o box da 1ª temporada de Roma, excelente séria exibida pela HBO. Assisti a dois ou três episódios antes que o tédio me fustigasse. Belíssimo roteiro que mistura personagens históricos e fictícios, um tratamento magistral das questões políticas e a “cidade eterna” hollywoodianamente reconstituída como provavelmente tenha sido: caótica, imunda, perversa, colorida e atraente como uma metrópole do terceiro mundo. Os produtores da série falharam, talvez, na escolha dos atores que a protagonizam (Kevin McKidd e Ray Stevenson): ambos têm o physique de rôle mais para o “Royal Shakespeare” do que para os dois legionários romanos que encarnam. Kevin McKidd é Lucius Vorenus, o centurião (uma espécie de sargento), um cidadão-modelo da República; Ray Stevenson é o soldado Titus Pullo, fanfarrão e mulherengo, chegado a brigas e confusões. Os dois são citados en passant no livro de Júlio César sobre a guerra da Gália como pilares da disciplina romana: embora se odiando, lutavam sempre juntos. A amizade instável dos dois reflete, sem dúvida, a também dividida e conturbada política daquele período. Aliás, a meu ver, o período mais fascinante de toda a história de Roma: a República encontra-se em seus momentos finais, delineada pela apatia e corrupção dos aristocratas no Senado e a ascensão vertiginosa de César. Um César que, apesar de nobre, cresce defendendo as causas da plebe, mas prepara também o caminho para o poder absoluto que seu sobrinho-neto Octavius consolidará como o primeiro imperador. Uma República de poderio inimaginável, cuja busca a qualquer preço pela conquista de um império acabou destruindo os valores tradicionais de austeridade e sacrifício que a tornaram grande, com o aumento das desigualdades sociais e a política se tornando um jogo corrupto de compra de votos e populismo escancarado. Opa!!! Algo lhe soa familiar, caro leitor?! Não à toa, intitulei esta postagem com um dos versos mais famosos das Sátiras de Horácio: “Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur” (“Por que ris? A anedota fala de ti, só que com outro nome”). Pois é, e lá me vejo eu de volta ao tema que procurava esquecer quando decidi me dedicar ao prazer da arte cinéfila!

O resultado dessa eleição no Rio deixou claro uma coisa: nosso novo alcaide é uma bosta! Mas uma bosta que deve ter feito a lição de casa direitinho e, como filho bem nascido que foi, deve ter bebido nos manuais de História numerosos exemplos a seguir: entre eles, sem dúvida alguma, o César romano que aparece na série da HBO (não à toa, seu mentor e criador nos tempos atuais também se chama César!). E aqui uma curiosidade da campanha eleitoral do nosso próximo alcaide: além da corrupção e compra de votos, do populismo escancarado ("Upa pra lá e pra cá... Vigi, que coisa mais linda!"), soube ele tocar demagogicamente num ponto caro para o eleitorado menos informado – a educação! Prometeu mover céus e terra para que nossas crianças tivessem uma educação de qualidade... Bom, até aí nada de surpreendente! Uma das primeiras obrigações de todo governante, imediatamente depois de assegurada a segurança da sociedade (segurança entendida em todos os sentidos: profissional, econômica, social, etc.), seria ocupar-se do bem-estar da geração seguinte. E a educação é, indubitavelmente, o principal pilar desse bem-estar. Entretanto, quando se pensa em discutir o binômio “educação-instrução para a vida”, parece-me que toda preocupação acaba recaindo não raro sobre dois campos do saber: linguagem (aí compreendido, sobretudo, o aspecto formal do ensino da língua materna) e tecnologia (aí compreendidas a Ciência e a Matemática). No momento histórico que vivemos, marcado por desafios cada vez mais complexos no campo da medicina e por ameaças cada vez mais presentes por conta de conflitos e guerras, seria até perdoável essa ênfase em campos que parecem prometer um maior avanço da humanidade. O grande problema, porém, dessa maneira de se pensar a “instrução” me parece ser a subjugação da História a um segundo plano nas escolas e na sociedade em geral. A História é talvez uma das disciplinas mais controversas exatamente por causa de sua natureza mesma: difere da Matemática por estar recheada de argumentos discutíveis em vez de provas concretas; mas difere também da Ciência justamente por apresentar fatos contra os quais nenhuma quantidade de experiências pode provar qualquer coisa conclusiva. A História convida a uma releitura constante. A História é talvez, de todas as disciplinas, aquela em que o maior número de idéias opostas podem harmonizar-se e serem aceitas como legítimas. Até mesmo o estudo das religiões é um produto da maleabilidade histórica, faz parte do reino da História. E essa maleabilidade histórica se traduz de várias maneiras: ninguém pode discutir, por exemplo, que o Império Romano caiu; há dúzias de teorias sobre por que caiu, quando caiu, e como caiu, e a maioria destas teorias é legítima porque não se excluem umas às outras. Eis por que entendo que a História seja a disciplina mais importante na instrução escolar. Precisamente porque não é algo tão concreto quanto a Matemática ou a Ciência; porque não exige a memorização de equações nem tem uma desconexão com a emoção humana: é o percurso da humanidade desde lá do seu início, o relato de tudo que experimentamos desde nossos primeiros passos sobre a Terra; mostra de quão longe viemos em nossa compreensão coletiva do que é a vida e de como estabelecemos o valor das coisas. Mas, sobretudo, nos ensina onde erramos no passado e como podemos evitar tais erros no presente e no futuro. A instrução que relega a História ao segundo plano encontra-se, irremediavelmente, em total desconexão com o futuro e seus avanços; tornando a sociedade vítima de falhas econômicas e sociais... E o que é mais triste: perplexa diante de tais falhas e ignorante de suas causas!
O não conhecimento da História permite que loucos a manipulem a seu bel-prazer. As religiões todas estão, talvez, entre os maiores deturpadores da História por não tentarem compreendê-la em suas múltiplas possibilidades; mas por tentarem fazê-la caber no espectro estreito de seu sistema e de seus dogmas. Não só a religião padece desse mal que é o desprezo pela História, entretanto: a política, quando lhe convém, consegue ser igualmente perniciosa. Nunca haverá nenhum substituto para o conhecimento histórico (nem mesmo o filosófico e o literário, creio eu), e a ausência deste conhecimento significará campo fértil para a desonestidade e a corrupção; o que fará da humanidade uma sucessão de gerações de palhaços ignorantes que vêem o mundo através de suas próprias vidraças embaçadas, pensando tratar-se da realidade... Sem o conhecimento da História, estaremos fadados a viver na Matrix!

A mesma Matrix que parece ter cegado boa parte do eleitorado carioca no último pleito... Atribuir ao adversário a intenção de deitar por terra “valores cristãos e morais” já seria suficiente para deixar boquiaberta qualquer pessoa razoavelmente informada e capaz de juntar dois mais dois. Mas o mais chocante é que alguém possa ter concebido, em pleno 2008, uma campanha baseada na demonização de seu adversário: o discurso é tão vazio de racionalidade quanto a pregação do racismo, da guerra santa ou do nacionalismo do século XIX. O mesmo apelo à irracionalidade aparece no esforço para semear a rivalidade e o ódio entre regiões de uma cidade já tão dividida, como se esta eleição fosse uma disputa entre o Rio menos desenvolvido e Rio orgiástico da zona sul. O recado efetivo do próximo alcaide, ao acusar a elite zona sul de odiar os desprotegidos do subúrbio, não foi contra um grupo concreto e identificável por suas ações. Até por que ele mesmo, nascido e criado na zona sul, apelou para o populismo do César romano e se arvorou o defensor dos pobres, dos fracos e dos oprimidos: até na lama entrou em defesa de seu povo... Só faltou criar uma biografia onde aparecesse acordando cedo, pegando ônibus lotado com a marmitinha embaixo do braço. Ou seja: criou, no seio dessa elite que ele mesmo condenou, um subgrupo que poderíamos chamar de “a elite boazinha e abnegada”. Mas quem seria essa elite podre e preconceituosa? Em que ela se diferenciaria daquela que trabalha, que acorda cedo e que é boazinha, segundo a ressalva do nosso futuro alcaide? Mais uma vez a História nos mostra que os pregadores do racismo, por exemplo, nunca deixaram de reconhecer a existência de negros bonzinhos e respeitosos. Mas a mensagem eficiente deles sempre foi a do ódio racial, a do apelo à irracionalidade e aos sentimentos mais perigosos... Muito perigoso todo e qualquer discurso que prega o separatismo, ainda que se façam ressalvas canalhas!

Diante do que foi esse pleito na cidade do Rio de Janeiro, resta-nos a perplexidade diante do estado de coisas: os loucos não seríamos nós, atentos aos descalabros de toda a História, que olhamos a cena política carioca e apontamos o estado de manicômio em que ela se encontra? Alguém até poderia inquirir: “Por que se incomodar com os loucos? Deixemos os loucos com sua loucura!”. Ora, se a questão fosse assim tão simples, não haveria problema algum. O problema é que os loucos querem se tornar governantes (e aqui no Rio tornaram-se de fato); e, a partir do poder, querem moldar os homens à sua loucura: a isso chamamos de engenharia social. Às vezes dá uma vontade enorme de colocarmos entre nós e o manicômio chamado Rio uma distância segura e higiênica. Mas seria covardia abandonar o barco agora e deixá-lo nas mãos de timoneiros inescrupulosos. Resta-nos a nós continuarmos aqui denunciando periodicamente que o estado de loucura está aumentando e funcionarmos como sentinelas atentos e prontos para, a qualquer momento, medir a vazão do leito de um “rio” que corre o risco de passar por uma enchente. Pois enchente, todos sabemos, não poupa ninguém.

Nunca perdendo de vista a importância dos ensinamentos da História para o esclarecimento das gerações, cabe aqui lembrar Tomás Antônio Gonzaga e suas Cartas chilenas, que narram as desordens do governo de Fanfarrão Minésio, general do Chile, e em cuja “Dedicatória aos Grandes de Portugal” lemos:

Dois são os meios porque nos instruímos: um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da imitação; outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento. Ambos estes meios são eficazes: esta a razão porque os teatros, instituídos para a instrução dos cidadãos, umas vezes nos representam a um herói cheio de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro, coberto de horrorosos vícios.

Entendo que V. Exas se desejarão instruir por um e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro, têm V. Exas os louváveis exemplos de seus ilustres progenitores. Para se instruírem pelo segundo, era necessário que eu fosse descobrir o Fanfarrão Minésio, em um reino estranho!


E no “Prólogo” da obra, Tomás Antônio Gonzaga dá o mesmo recado:

Um D. Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um governador despótico.

(...)

Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo...


Sem medo algum de me acusarem de sensacionalista, ouso prever que o futuro do Rio de Janeiro será de sombras e assombros e, como tal, não deixará de haver assombrações. Além das Sátiras de Horácio lembradas no título desta postagem, cabe aqui outra citação latina: a de Cícero, em De Senectute, que diz que “pares cum paribus facillime congregantur” (“os iguais com os iguais facilmente se juntam”). Somos espectadores de uma alquimia partidária estranha de indivíduos que hoje sorriem entre si, mas que amanhã se devoram. Só a História dirá se estou certo. Essa mesma História da República do César romano. Essa mesma História tão pouco cogitada na instrução escolar. Essa mesma História que nos ensina tal como Horácio: Mutato nomine, de te fabula narratur... Ninguém estará livre de ser cobrado pela cumplicidade que advém da ignorância da História, ainda que esta cumplicidade tenha a forma de um mísero voto, um voto como aqueles que elegeram Hitler.

9.8.08

Se a preguiça é um dos 7 pecados, eu quero mais é queimar no inferno... Ave, Macunaíma!




Essa coisa do mundo lá fora anda me dando uma preguiça danada... Ou talvez seja eu que, no fundo, nunca tive muito talento para as coisas do mundo lá fora. Ou, decididamente, i’m not the man i used to be...

Até mesmo escrever aqui neste blog é algo para o qual tenho tido cada vez menos saco... As postagens têm se tornado cada vez mais raras, como raros têm se tornado meus cabelos, minhas ereções e minhas idas a um puteiro... Muito chato esse negócio de escrever bonitinho, avisar aos amigos (“Postei lá, você viu?”), aguardar um ou outro comentário inteligente ou delicado e gentil por pura educação... Enquanto isso, tem uma galera por aí fazendo dinheiro a rodo (Bruninha Surfistinha, cadê você, minha linda?) e eu aqui querendo salvar a humanidade com belas palavras que toquem ao coração e à alma dos ímpios. O Marco Aurélio Góis dos Santos, em seu Jesus, me chicoteia!, é que parece ter razão. Segundo ele, uma das várias divisões possíveis da população mundial seria a que se observa entre os que têm dinheiro e os que sabem escrever. “São dois grupos bem distintos, e desconheço qualquer intersecção entre eles (“E o Paulo Coelho?”, alguém dirá, o que só serve para reforçar minha tese). Vez por outra o primeiro grupo precisa dos serviços do segundo. Para isso, mostram-se dispostos a abrir mão de uma ínfima parcela de seu rico dinheirinho em troca de meia dúzia de frases mais ou menos bem alinhadas.”

Tá... Mas vamos parar de blá-blá-blá e vamos ao que interessa (se é que algo ainda interessa nessa merda toda aqui). Até porque já estou com a bunda achatada de ficar tanto tempo aqui nesta cadeira e, para um fumante-velho-sedentário-moleirão como eu, muito tempo sentado é risco de hemorróidas na certa (e até o fim da vida, não quero mais ter que encarar o dedo médio, que de médio não tem nada, daquele meu proctologista safado, tarado, de riso sádico). Como não tenho nada mais picante ou contundente sobre que falar, falarei da minha semana, essa aí que acabou. Semaninha boa de retorno às aulas, os anjinhos voltam todos de baterias recarregadas. Aposto como dedicaram boa parte desse recesso escolar imaginando maneiras novas de infernizar a vida dos babacas dos professores e funcionários do colégio... E eles se esmeram cada vez mais; é impressionante a criatividade que esses “mulekes” têm: Bin Laden e os integrantes das FARCs ficariam de queixo caído... Mas eles são uns amores. Eu os adoro. Como, entretanto, nenhuma bomba foi deflagrada na unidade escolar, nenhuma cadeira ou carteira voou em sala de aula, nenhum “peido alemão” foi jogado sorrateiramente no pátio durante o recreio, nenhuma mãe de aluno enfurecida veio arrumar barraco na Secretaria; então não tenho muita coisa a falar aqui sobre esta minha semaninha no colégio... Ah sim, a não ser que alguns de nós, professores e funcionários, passamos uma semana mais felizes que pinto no lixo, por conta de uma grana extra que o pilantra do César Maia resolveu finalmente nos pagar após quase um ano de promessas... Sabem como é, né? Proximidade das eleições, o caras também se esmeram... Mas os alunos continuam sendo mais adoráveis...

E, por falar em eleições, meu grande amigo Altair ficou puto dentro das calças essa semana porque o Supremo decidiu que o candidato processado por suspeita de irregularidade, mesmo ainda sem culpa provada, não ficará impedido de concorrer no certame eleitoral. Mas o cidadão comum não pode fazer concurso quando tem processo na justiça, mesmo que a sentença não tenha sido ainda transitada em julgado. Realaxa, Alta, isso são coisas do nosso impávido colosso deitado em berço esplêndido!

Teve também a abertura dos jogos olímpicos lá na China, né? Porra! Aqueles amarelos comedores de broto de bambu deram show! Chorei baldes com o espetáculo. Comenta-se por aí que tenha sido talvez a melhor abertura de olimpíadas de todos os tempos. Também pudera, né? Se os carinhas lá errassem um milímetro que fosse na coreografia ensaiada, seria porrada na certa. Povo incentivado é outro papo... Aliás, muito estranho o povo chinês... Não sei por que, mas não me convence muito aquele risinho feliz e cordial deles...

Essa semana também, em uma conversa com meu grande amigo Wendell pelo MSN, ele me fez uma pergunta altamente desconcertante: queria saber se eu acreditava em paixão. Não a paixão por um time, por uma causa ou por uma atividade; mas aquela paixão das novelas e filmes açucarados que dizem existir entre homem e mulher. E aqui devo explicar por que a pergunta me foi desconcertante (e olha que ele me fez uma outra pergunta, que não revelarei aqui, que para a maioria das pessoas poderia ser considerada bem mais desconcertante). Desconcertou-me a pergunta nem tanto pela pergunta em si, mas mais pelo momento que estou vivendo. A questão é que cheguei aos 41 faz pouco mais de 2 semanas... Ok, ok.. 4.1 turbinado e total-flex, mas ainda assim 4.1... E isso assusta. A vidinha da gente parece incansável e maravilhosa aos 20 ou 30 anos. Ok, admito: até é mesmo. O foda é que 10 ou 20 anos depois já não parece tão maravilhosa assim, muito menos incansável. Há uns 10 ou 20 anos antes, eu juro que achava que estava na melhor fase da minha vida. Podia saltar montes, virar cambalhota, plantar bananeira, chupar meu próprio pau, dizer “foda-se” para tudo e para todos, notar coisas diferentes em mim, em minha aparência e em meu pensamento. Aos quarenta, todo homem se defronta com a fatalidade da sua decadência. Ele sabe o que ele vê: estou velho! E veja que não estou falando: "estou ficando velho", mas "estou velho". E isso é um fato e pronto. A patuléia do senso comum insiste em dizer que com a "maturação" (para mim, “decadência”) o homem se torna mais sedutor e mais exigente. Ah, vai cagar no mato! Sedutor como? Se os cabelos rarefazem ou embranquecem, se os dentes amarelam, se a barriga cresce, se a pele enruga nos cantos, se o pinto começa a ter crises existenciais, se a simples menção de se pintar ou fazer um aplique nas madeixas começa a parecer algo tão risível. Sedutor é o caralho! Decididamente, isso é uma concepção Global de homem-adulto. O homem, a partir dos 40, é um espectador mal disfarçado da vida. Está treinando para seu papel futuro: segurar as bolsas das moças, olhar as meninas pulando, olhar casais trepando no apê em frente pela desconfortável fresta estreita do basculante, se amontoar na “night” junto com os outros bêbados adultos e sentir-se um vira-lata diante do frango de padaria (gosto muito dessa comparação... foda-se se não é inédita pra você)... enfim, fazer tudo o que já fazia quando moço mas que podia dechavar comendo uma ou outra namoradinha esporádica num puta semi-árido de punheta e suplício sexual. Mas tudo bem: como já deixei claro numa postagem anterior aqui mesmo neste blog, a velhice tem lá seus encantos.

O que acontece, entretanto, para nós homens, é que a natureza dá ao macho a falsa ilusão de ter aproveitado sexualmente bem sua juventude para, logo depois, ter o prazer de puxar-lhe o tapete e revelar o inverso para seu pobre brio alquebrado: eis o crepúsculo do macho (diferente daquele de que fala o Gabeira). Já as mulheres são outro papo: elas sempre aproveitaram mais! Mesmo as feias e barangas tiveram uma vida sexual mais honrada (“honrada” no sentido de proveitosa) e o pobre macho seguiu esses anos todos se achando o rei da cocada preta. Elas já chuparam, deram o cu, gozaram algumas vezes e outras não (claro!), transaram na água, na praia, no elevador, no chão do escritório, em sanitário público, com outras mulheres, com borboletas vibratórias, com vibradores, com pillots, bonecas, com uma ou mais amigas, com dois ou mais homens, com equipamentos variados, sozinhas (já falei isso), na igreja, na danceteria animada, na zona, enfim em qualquer cafofo digno ou indigno do planeta. E depois ainda se fala em inveja do pênis!!!! A inveja do pênis é uma falácia de psicanalistas homens... O que existe, no duro (sem trocadilhos), é a inveja da buceta. Mas esse sentimento homem nenhum confessa. E o homem que ler isso aqui vai se emputecer comigo (aposto meu fiofó), mas se tiver coragem vai ver que é a mais pura verdade... Elas vivem suas vidas. Aparentemente desvinculadas do sexo. Aparentemente!! E transam o quanto podem na hora que bem quiserem. E nós, pobres machos, somos só afortunados se estamos na hora certa, no lugar certo e com a disposição necessária pra meter na gorduchinha (ou na magricela, se for o caso).

Bem, muita gente mais letrada que eu (e pseudo-letrada também), gente de discurso psicanalítico, gente analisada, de papo-cabeça, diz tudo isso aí que eu disse; mas não do modo como eu disse... É que sou meio “gauche” mesmo, entende?...

É por isso, Wendell, que sua pergunta me foi desconcertante. É como eu disse lá em cima: essa coisa do mundo lá fora anda me dando uma preguiça danada... E aos 4.1, ando realmente meio sem saco para pensar nessas coisas...

Bom, mas, depois de amanhã, começa uma nova semana... Quem sabe, meu amigo, quem sabe?


Ok. Postagem feita, blog atualizado, posso voltar a navegar pelos sites de putaria.

5.5.08

Hier encore...

Sabe aqueles momentos em que a gente fica assim achando que a vida passou, está passando, e a gente andou desperdiçando o melhor de nossos dias? Tipo ficou na janela vendo a banda passar... Pois é, aí a gente pega algumas fotografias antigas do tempo da facul, uma música até bonita (mas bem cafoninha) e faz um vídeo para o Youtube... And that's all, folks!
Só isso, nada mais que isso o motivo desta postagem...


Andorinha lá fora está dizendo: — "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passei a vida à toa, à toa...

(Manuel Bandeira)





Ah sim... se alguém se interessar em baixar o vídeo, é só clicar aqui.

3.5.08

Perdoem a cara amarrada, perdoem a falta de abraço...


Perdoem por tantos perigos... Aos meus possíveis filhos, aos nossos filhos todos, só resta a minha cara de tacho, a minha inoperância e incompetência em apontar caminhos... Mais do que o buraco na camada de ozônio ou o degelo da calota polar, mais do que o desmatamento da Amazônia ou o terremoto em São Paulo, mais do que o sacrifício dos joãos e isabellas ou o sadismo de pais encarcerando filhas em porões, mais do que tudo, me assusta o rumo da nossa História. Já disse Maiakóvski que "nestes últimos vinte anos nada de novo há no rugir das tempestades" e que "o mar da história é agitado", mas então refutaria Pompeu dizendo que "navegar é preciso" (e nem ouso completar o restante da frase do general romano).

E o que eu mais tenho tentado fazer nesses últimos tempos é navegar, mas falta a angulação apropriada à minha quilha ou a envergadura correta às minhas velas talvez... Só sei que por vezes fico à deriva... mesmo que eu mande, em garrafas, mensagens por todo o mar... Olho assustado para o extrato da minha conta bancária e percebo que estou sendo assaltado da forma mais sórdida e, paradoxalmente, mais institucionalizada possível. E não há nada que eu possa fazer quanto a isso: o dinheiro é meu, o salário é meu, como também é minha a inadimplência, como também é deles o amparo da lei... Dura lex, sed lex... Sou obrigado a concordar com meu velho e falecido pai que dizia que quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro. E o que me assusta é perceber que não sou o único a ter essa compreensão das coisas. Mas parece que essa compreensão coletiva e nada são a mesma coisa.

O principal movimento que se observa nesses últimos anos (pelo menos até onde minha memória consegue retroceder), e que seria o responsável por este estado de coisas, foi um desmerecimento do mais humano (e, portanto, sagrado) fator de produção, o trabalho, pelo seu rival e expropriador, o capital. Mais propriamente o capital financeiro, especulativo, pouco produtivo. Sempre se acreditou que o fruto do trabalho seria a via principal para se chegar a uma desejada e melhor distribuição de renda. Contrariamente ao esperado, nos dias de hoje, a renda do fator trabalho situa-se no patamar mais baixo da história, na composição das rendas nacionais. E vejam bem que nem vou considerar aqui os milhões de desempregados pelo mundo afora.

Estou tentando ao máximo evitar o lugar comum, mas não tem jeito: o neoliberalismo veio mesmo para foder com tudo! Enquanto isso, os yankees continuam a ser a força hegemônica mundial, a despeito da miséria que se vê pelas ruas de suas grandes cidades, a violência que daí advém e os constantes atos terroristas de que são vítimas os cidadãos americanos, civis e militares, em sua própria terra e em todas as partes do mundo. É... o neoliberalismo veio mesmo para foder com tudo!

Fico aqui pensando que George Orwell nunca poderia imaginar que sua fictícia economia planificada e policiada seria substituída, no século XXI, por outra de regime democrático distorcido, usado para oprimir os povos e levá-los à estagnação através da expropriação dos frutos de seu trabalho. Se bem que, no fundo, acho que era mais ou menos isso o que Orwell denunciava. E se não me engano também, essa apropriação indébita tinha um nome; se me lembro bem era conhecida por "mais valia".

Alardeando os mais nobres motivos e as melhores intenções (e eles nem vão para o inferno por conta das boas intenções, porque para eles "l'enfer c'est les autres"), o império hegemônico passou a dominar econômica e militarmente todo o mundo que lhe interessa. Até mesmo a democracia, a guerra ao terrorismo, a defesa do meio ambiente, o combate ao narcotráfico, todos esses "santos nomes" são usados em vão para justificar o status quo. Mas deus é americano e, além de tudo, é astro de Hollywood! E isso explica e justifica tudo...

Décadas de recessão e atraso para a maioria da população mundial e enriquecimento deslumbrante de uma minoria enriquecida pelo modelo "democrático", capitalista e liberal que vem dominando o planeta. Sem contar as mazelas sociais que daí advêm! Mas tudo bem: as esperanças não morreram por completo se compararmos esse período relativamente pequeno (algumas décadas) com o milênio que a humanidade perdeu, sob o obscurantismo religioso (terá ele realmente terminado junto com a Idade Média?!).

O historiador Eric Hobsbawn ainda acreditava, nos estertores da morte, na salvação da humanidade. Em seu testamento intelectual, ele acreditava piamente que a sobrevivência da espécie humana dependeria de sua vontade coletiva e que ela, a humanidade, seria capaz de transpor os inevitáveis acidentes de percurso. Juro que invejo os homens e mulheres, meus irmãos, que um dia farão valer a visão do velho historiador. Mais uma vez cito Maiakóvski que também dizia: "O século XXX vencerá!" Oxalá!

O que resta a mim (um sujeito intelectualmente pessimista, mas otimista nas atitudes) é admitir a possibilidade de reversão de minhas próprias expectativas funestas e clamar aos meus possíveis filhos: "E quando colherem os frutos, digam o gosto pra mim"... e esperar que esses sejam mais doces. Porque hoje, até onde minha mão alcança no pomar, o que tenho recolhido é de um gosto muito amargo. Espero que meus possíveis filhos e possíveis netos saboreiem coisa melhor.

1.5.08

A náusea

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
(Ana C. César)



Madrugadas de compaixão infinda
por todos os homens
Na manhã seguinte,
enjôos de puta velha
sonrisal e boca seca pelo dia afora

Espio da janela
e o que ouço é o hino berrado
do vizinho evangélico -
(o dedo em riste de deus não me apavora mais!)
ou a andorinha de Bandeira
cantando a vida à toa à toa
Cerro a cortina entre os dedos
e um presságio de grito
entre os dentes

Melhor mesmo é voltar a dormir
e ancorar na alma a ânsia de vômito:
a tarde vem de passifloras...

O intragável irritante do sentimento
é a ausência de meio-termo:
ou é um caldo ralo
ou é um angu de caroço.

(Edmilson BORRET )

23.4.08

“Abraça a tua loucura antes que seja tarde demais”



Triângulo das águas é o título do livro, três contos maravilhosos o compõem. Dos três, tenho uma inexplicável predileção pelo segundo: “O marinheiro”... Uma obra fantástica de Caio Fernando Abreu!!! Não à toa, o título do conto remete ao drama estático homônimo de Fernando Pessoa. Aliás, a própria epígrafe é um excerto da obra pessoana:

Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele consola... Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro, numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se colorem... Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, de qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?


A presença de tal epígrafe cria imagens que irão prenunciar toda a narrativa do conto. Fernando Pessoa, de certa forma, vai ajudar na atmosfera que mescla ilusão e realidade no conto. Ao citar esse trecho do poema dramático de Pessoa, Caio Fernando Abreu nos leva a fazer indagações sobre o valor da existência, sobre as dúvidas e medos que surgem durante a noite em que três mulheres velam um corpo. Esses questionamentos todos parecem voltar-se para os limites entre real e imaginário e para o restinho de esperança que normalmente acompanha o “amanhecer” das pessoas que têm a coragem de assumir e percorrer suas limitações. Escrito no início do século, O marinheiro deveria ser a obra que introduziria o Teatro Estático de Fernando Pessoa. No entanto, o autor faleceu sem ver realizado o seu intento. O Teatro Estático, considerado por muitos como um anti-teatro, não sobreviveu e O marinheiro ficou relegado à condição de poema dramático. Três mulheres velam uma morta. Enquanto esperam o dia amanhecer, idealizam a figura de um marinheiro. Quem seria a morta? As próprias veladoras? E quem seriam elas? Seriam três ou somente uma, repartida em várias personalidades? E o Marinheiro? Seria memória, sonho ou realidade? Seria homem ou Deus? O poema de Pessoa trata do absurdo da condição humana; das dúvidas que todos nós temos. "Sabemos nós de qualquer coisa? Há alguma razão para as coisas serem o que são?" Estas e outras perguntas estão eternamente sem respostas. Sem tempo ou lugar definido, o texto pessoano explora uma situação estática. É a história de um ser que por cuidado, acomodação ou medo, passou pela vida sem tê-la vivido. Esperou por um destino que não aconteceu, que nunca se realizou e agora está frente a frente com seus medos e desejos. Suas vidas presentes, passadas e futuras se misturam, se fundem e confundem. O marinheiro é um exercício de liberdade da mente, de libertação das crenças que nos foram impostas. É um texto que deve ser lido como uma busca pela liberdade, pelo direito de cada pessoa poder viver sua própria vida. O poema de Pessoa parece caminhar para lugar nenhum, para a não-ação, para onde nada nunca acontece e tudo é sempre a mesma coisa. Segue-se então uma busca desesperada das personagens por um sentido para as suas existências, o que, em si, é a própria essência de toda a obra pessoana.
No conto de Caio Fernando Abreu, entretanto, as três irmãs são substituídas, ou melhor, condensadas num único personagem. O protagonista do conto, no entanto, embora do sexo masculino, tem a feminilidade das irmãs do poema pessoano: assemelha-se muito, assim como elas, à figura de Penélope – a esposa de Ulisses. Exatamente como uma Penélope, o protagonista enclausura-se à espera de seu navegante, de seu marinheiro, fechando para as outras possibilidades amorosas; ambos entregando-se, inclusive, aos trabalhos manuais como forma de escapar ao mundo. O protagonista do conto de Caio Fernando Abreu passa o tempo inteiro fechado em casa, sem a noção exata do tempo, remoendo memórias e perseguido por imagens que o angustiam. Antes da chegada do Marinheiro, é freqüente a presença de vários símbolos que remetem a noções de proteção, de isolamento, de vazio e de trevas. O protagonista encontra-se em seu espaço muito particular, seu microcosmo, que é a sua casa. Casa essa que é descrita como “um pequeno sobrado com poucas vidraças, numa ruazinha toda feita de sobrados pequenos apertados entre outros sobrados pequenos, portanto, não há muitas vidraças, já que os dois lados estão inteiramente comprimidos entre duas outras casas”. Esse cenário, aliás, é mais eloqüente do que os personagens. A casa parece manipular seu habitante. É como se o protagonista não passasse de uma marionete dentro daqueles espaços claustrofóbicos e apertados demais para suas angústias. E é justamente nesse sentido, que o protagonista do conto de Caio Fernando Abreu, se assemelha às irmãs do poema de Pessoa e à figura de Penélope: a sua feminilidade se verifica justamente no que diz respeito ao enclausuramento e à espera do outro. Roland Barthes, em seu Fragmentos de um discurso amoroso, diz o seguinte sobre a ausência:

“... só há ausência do outro: é o outro que parte, sou eu que fico. O outro vive em eterno estado de partida, de viagem; ele é, por vocação, migrador, quanto a mim, que amo, sou por vocação inversa, sedentário, imóvel, disponível, à espera, fincado no lugar, não resgatado como um embrulho num canto qualquer da estação. A ausência amorosa só tem um sentido, e só pode ser dita a partir de quem fica – e não de quem parte: eu, sempre presente, só se constitui diante de você, sempre ausente. Dizer a ausência é, de início, estabelecer que o sujeito e o outro não podem trocar de lugar...
(...)
Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o Homem é conquistador (navega e aborda). É a Mulher que dá forma à ausência: ela tece e ela canta; (...) De onde resulta que todo Homem que fala a ausência do outro, feminino se declara: esse Homem que espera e sofre, está milagrosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado.”


O protagonista do conto, então, entrega-se definitivamente ao seu lado “feminizado”. Como Penélope a tecer seu eterno tapete, entrega-se aos trabalhos manuais como forma de evitar as memórias e as insurgências de sua mente:

“Descobri faz algum tempo que as mãos se opõem à cabeça, e quando você movimenta aquelas, esta pode parar. Não sei se é uma grande descoberta, talvez não, mas de qualquer forma gosto quando a cabeça pára o maior tempo possível, caso contrário enche-se de temores, suspeitas, desejos, memórias e todas essas inutilidades que as cabeças guardam para deixar vir à tona quando as mãos estão desocupadas. Ocupo-as então, fazendo coisas que depois disponho pelos cantos.”


Esses “temores, suspeitas, desejos, memórias” percebem-se na dificuldade de o protagonista lidar não apenas com seus interiores, mas também com os interiores da casa. No andar superior, há dois quartos: um do protagonista; o outro, um espaço completamente vazio. Ele tem dificuldades de penetrar neste segundo quarto, preferindo deixá-lo inabitado. O quarto se encontra assim desde a partida de um alguém especial na vida do protagonista, que levou consigo boa parte da sua energia e da sua força vital, deixando-o naquela vida feita de ausências. Esse vazio, que reflete seu interior, é também o da falta de disfarces, uma amostra das reais rachaduras, do desgaste que o protagonista sofreu:

“Eu poderia pensar que a partir de então conseguiria entrar naquele quarto, vedar as rachaduras das paredes, pintar meticulosamente os vidros, enchê-los de trapos e papéis e palha e cascas e flores secas, como as outras peças da casa, acabando com seu deserto. Me ocorre, essa é outra coisa que poderia dizer de mim mesmo, quisesse ser preciso – além de cinza e longo -, tenho um quarto vazio por dentro. Pensando nisso, poderia quem sabe me sentir mais inteiro, como se à medida que fosse me apropriando de cada peça da casa, uma por uma, como quem finca uma bandeira em território novo, me tornasse também dono de novos territórios de mim mesmo. Mas não sei se saberia o que fazer com essa inteireza, possivelmente não me sentiria mais feliz com isso. Então para quê?”


O quarto configura-se, assim, na representação da perda de si mesmo, resultante da perda do outro; da perda de seus ideais, de sua energia interior. Em sua nudez, o quarto revela-se infinito, mas infinito enquanto perda, não enquanto infinito que permitisse uma liberdade. A memória dessa perda e a sensação de incompletude reforçam as inquietações do protagonista, a angústia que ele sente diante das imagens que surgem de sua mente:

“Eu não queria mais ter esperanças, essa coisa gentil. Isso que chamo de minha vida, ou o que restava dela, e não deveria ser muito porque o passeio dos dedos pelo rosto revela os sulcos cada vez mais fundos, estava creio que deliberadamente reduzido àquele subir e descer escadas, mexer nas tintas, recortar papéis, pintar vidraças, enfiar contas, caminhar às vezes pelas ruas esvaziadas de gentes tarde da noite. Eu tinha escolhido assim, num remoto dia qualquer em que deixei de acreditar, não lembraria quando, e isso era para sempre – tanto quanto pode ser para sempre o que por estar vivo tem um coração que bate mas, imprevisto e fatal, um dia deixará de bater. Por não querer mais depositar esperanças em nada que pudesse vir de fora, já que de dentro nada mais viria, estava certo, além dessas imagens assustadoras da memória...”


A inquietude do protagonista torna-se tanto maior quanto mais evidente é sua preocupação em sufocar seus gritos. Pensar e olhar não são as únicas ações ausentes no seu universo. Ele vive num mundo de silêncios, onde todos os ruídos foram eliminados, inclusive o som das palavras:

“Foi justamente para não gritar – acabo sempre fazendo coisas para não gritar, como contar esta história -, já que o grito faria ruído e o ruído abalaria os vizinhos, esses mesmos que entram e saem, e com isso, se soubessem de mim que sou cinza e longo, e possivelmente sabem, pois deve ser justamente essa a silhueta que vêem através das vidraças, que tenho um quarto vazio, isso não descobririam, desde que jamais entrarão em minha casa, saberiam também que dou gritos em horas inesperadas.”


É interessante observar que esse “contar esta história” a que o protagonista se refere é uma espécie de renascimento proporcionado por algo que mudou essa rotina de solidão e ausência:

“Contar é desemaranhar aos poucos, como quem retira um feto de entre as vísceras e placentas, lavando-o depois do sangue, das secreções, para que se torne preciso, definido, inconfundível como uma pequena pessoa. O que conto agora é uma pequena pessoa, tentando nascer.”


E justamente nesse ponto percebemos os sinais de mudança e regeneração na alma do protagonista. Desde as primeiras palavras do conto, ficamos sabendo que ele está relatando um encontro ocorrido num sábado qualquer de um mês de novembro. Esse encontro poderia assemelhar-se aos outros encontros que ele teve, com aqueles que se foram, que o abandonaram e que ele chama de os antigos. Esse novo encontro, no entanto, é o motivo do conto, o Marinheiro que chega para efetuar a mudança necessária no protagonista. Esse encontro diferencia-se por ocorrer em novembro, enquanto todos os demais foram em agosto. Agosto, além de carregar todo um sentido negativo para a maioria das pessoas, é também o mês que fecha o inverno no hemisfério sul. Um período marcado pelo frio, pela chuva, pela dificuldade de deslocamento, pelas noites longas, próprias para a clausura, o isolamento e a estagnação. Já o mês de novembro, além de estar inserido na primavera – período de renascimento, segundo quase todas as mitologias – é também o mês do Escorpião no Zodíaco, que é regido por Plutão, associado com a oitava casa zodiacal. O signo de Escorpião está intimamente relacionado com as forças das profundezas, com energias submersas que impulsionam os processos de destruição, enquanto condição necessária à regeneração. A morte ligada a esse signo está associada ao renascer, pois permite o surgimento de uma nova existência, sem as marcas e as lembranças ruins da anterior. E é nesse sentido que o personagem do Marinheiro funciona no conto. Ele resgata o protagonista para novos amores, para novas experiências:

“Talvez num novo outro, o outro antigo voltará.
Foi assim que me veio – cobra, ave – na tarde de novembro. Mas ao invés dessas imagens ou de outras, que também vêm às vezes, o que chegou junto com as palavras claras como se ditadas por alguém visível, tangível, solto dentro de casa, foi um cheiro a princípio sem nome. Um cheiro grosso, nem bom nem mau, um cheiro vivo de coisa em constante movimento, um cheiro vivo de coisa grande viva cheia de miúdas infinidades de outras coisas também vivas dentro dela. Custei a reconhecê-lo, há muito tempo não o vejo, e é mais difícil talvez identificar um cheiro ou um gosto de algo distante do que uma imagem.
(...)
Era um cheiro de mar, reconheci por fim.
Talvez num novo outro, o outro antigo voltará. Junto com as palavras claras vinha um cheiro vivo de mar. Parado ali no chão, eu sentia que dentro de mim alguma coisa nova estava nascendo. Ou pressagiava o que viria também de fora e seria completo, pois são completas as coisas quando acontecem depois de anunciadas por dentro, criando um estado capaz de receber o que virá de fora. Como um telegrama, um telefonema, um aviso qualquer previamente anunciando a chegada, para que se possa arrumar a casa, tirar a poeira dos cantos, preparar a cama, trocar lençóis, limpar pratos, poltronas, recebendo o hóspede ao mesmo tempo desejado e inevitável.
(...)
O cheiro de mar era tão intenso que pensei em abrir a janela para que o ar circulasse melhor (...). Foi quando levei as mãos à parte de baixo da guilhotina para erguê-la, que eu o vi dobrando a esquina para aproximar-se da casa.
(...)
As mãos nos bolsos, vestido de branco, o marinheiro dobrava lentamente a esquina da rua, como se não se importasse com a chuva.
(...)
O cheiro de mar tornou-se mais forte quando ouvi as primeiras batidas. Contraí os olhos feridos pelo ar subitamente mais salgado. Com as duas mãos espalmadas contra o vidro, eu estava suspenso entre algo que começava a fechar-se e algo que terminava de abrir-se. As batidas continuavam. Eu precisava fazer alguma coisa, talvez descer as escadas, abrir a porta, deixar que entrasse. Ao fazer qualquer uma dessas coisas teria de aceitar que algo se fechara, e abrir a porta para que o marinheiro entrasse seria também permitir que esse outro algo terminasse de abrir-se, me levando para um caminho imprevisto.
(...)
Quase cego pelo verde do mar, pelo cristal branco da areia, pelo azul do céu que acabara de ver, pela transparência do ar, estendi a mão, dei a volta na chave e abri a porta.

– Abraça tua loucura antes que seja tarde demais - ele disse, e seus olhos tinham a cor do mar.”


Vontade dá de transcrever o conto todo, de tão belo que ele é. Mas, além de ser impossível por conta de sua extensão, isso não seria justo com os leitores deste blog. Melhor seria (e isso, mais do que uma dica ou um conselho, é uma exortação) dedicar-se à leitura não só desse conto, mas também dos outros dois que compõem o livro Triângulo das águas. Esse conto, em particular, muito me toca. Vejo-me nele todo vez que o releio. Aliás, Caio Fernando Abreu sempre me tocou muito profundamente. Ele é um “biógrafo da emoção”, como ele mesmo se definiu um dia em entrevista. Tenho uma inveja doida da sua escritura. Queria eu escrever como ele escrevia, queria eu dominar a palavra como ele dominava, queria eu ter a compreensão da vida como ele a tinha, construir personagens densos como ele sabia construir. Apaixonei-me por Caio Fernando Abreu à primeira leitura, ainda adolescente com Morangos mofados. Depois viriam O ovo apunhalado, Triângulo das águas, Os dragões não conhecem o paraíso e Onde andará Dulce Veiga? Falta-me muita coisa dele ainda por ler. Seus contos, romances, crônicas e novelas encantam sempre – ele que foi considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea". Nascido em Santiago, Rio Grande do Sul, em 12 de setembro de 1948, cursou Letras e Artes Cênicas na UFRS, mas abandonou ambos para escrever para revistas de entretenimento, como Nova, Manchete, Veja e Pop. Em 1968, foi perseguido pelo DOPS, e acabou se refugiando no sítio da escritora Hilda Hilst, em Campinas. No início dos anos 70, exilou-se por um ano na Europa, passando por países como Inglaterra, Suécia, França, Países Baixos e Espanha. Em 1983, mudou-se de Porto Alegre para o Rio de Janeiro e, em 1985, para São Paulo. Voltou à França em 1994 mas retornou ao Brasil no mesmo ano, ao descobrir-se portador do vírus HIV. Em setembro desse ano, retornou a Porto Alegre, onde voltou a viver com seus pais. Passou a cuidar de roseiras e girassóis, encontrando um sentido mais delicado para a vida. Foi internado no Hospital Menino Deus, onde faleceu no dia 25 de fevereiro de 1996.

Encerro esta longa postagem (talvez uma das mais longas deste blog) fazendo aqui minha homenagem tanto ao Pessoa quanto ao Caio. Também eu fiz minha releitura d’O marinheiro. Obviamente que, nem de longe, pode ser comparada à obra desses dois grandes escritores. Mas, guardadas as devidas proporções, assemelha-se ao conto do Caio no que este apresenta de possível esperança no final. A figura do marinheiro parece traduzir esse convite à navegação, à transcendência dos limites, à busca do conhecimento e da evolução. Em quase todas as obras literárias em que há a figura do marinheiro, ou a ele se faz referência, parece haver a necessidade de se romperem totalmente os limites do plano circundante, de um universo escuro, isolado e vazio. Segundo o grande mitologista Junito Brandão, “fazer-se ao mar a fim de saber mais do que se sabe é um delicado eufemismo para traduzir a morte”. Mas morte entendida no sentido de um novo ciclo que se inicia; um tempo de desfazer-se das amarras, da escuridão e das falsas proteções.




O MARINHEIRO

Os medos do mundo são tantos.
Esperar. Retornar. Descansar.
As horas passando...
a água passando...
as gentes passando...

Escorrego entre os corpos...
Conheço essas pessoas...
Não vejo suas caras
nomes
famílias.
Não vejo as bocas. Emudeceram.
Digo que do outro lado
a vida nos espera.

Estejamos vivos para ela!

Fugir daqui. Fugir pro mar.
Ganhar o mundo.
Navios em cruzeiro
um pássaro cantando
um jogo de futebol
um discurso empolgado
um par de coxas
uma garrafa de vinho
pão e aurora surgindo
um ar de sedução e gozo
no pasto verde
na grama verde.
Nada temos senão esse lugar comum!...

A vida berra louca
pelos quatro cantos
e nos pede um beijo
(um beijo, uma carícia,
um golpe de amor...
ainda é o maior consolo do homem).

(Edmilson BORRET)

30.3.08

Vídeo-poema para a Mi

Um presentinho de aniversário para essa minha grande amiga..




Essa Mulher
a Miriam Assunção


Que me venha essa mulher irmã
nos seus sortilégios incestuosos
de impenetrável castidade pagã
eu menino dos olhos curiosos

Que me venha essa mulher amiga
em seus véus de nudez invisível
de entendimento claro que intriga
eu poeta do verbo raro e risível

Que me venha essa mulher fada
em encantos de bruxa nos dedos
de sorte em vôo de ave lançada
eu mortal de muitos arremedos

Que me venha essa mulher inteira
em suas várias caras e quases
de perícia esbelta e certeira
eu homem de certezas fugazes

Ela tem a magia de um rito druída
Ela tem o colo da casta madona
a flor da pele de Almodóvar assumida
o instante eterno das mulheres da zona

Ela tem o erotismo barroco dos anjos
tem o silêncio esclarecedor dos sábios
de scarlets, gildas e barbarellas os arranjos
de clarices, hildas e anaïs os alfarrábios

(Edmilson BORRET)






Parabéns, Mi! Tudo de bom!

22.3.08

Razão e sensibilidade

.

A religião de uma era é o entretenimento literário da seguinte.
Ralph Waldo Emerson



Pois é. Parecia que eu iria falar do belíssimo filme dirigido por Ang Lee com a Emma Thompson, a Kate Winslet e o Hugh Grant no elenco, né? Mas não. Esta é uma postagem que se faz necessária em feriados "santos" como este. Estou de saquinho cheio, quase arrebentando, com os efusivos votos de feliz páscoa, os coelhinhos, as mensagens religiosas e todas as outras babaquices que lotam minha caixa de e-mail e minha página de recados no Orkut. E como se não bastassem toda essa dedicação e essa "lembrança comovente" por parte dos amigos, ainda tenho que aturar a programação de quase todas as emissoras de tv que parecem só mostrar a triste e pungente história do tal judeuzinho de cabelos compridos e sedosos, barba milimetricamente bem aparada e olhos azuis... Películas antigas e gastas (ou remakes destas) que a cada semana santa voltam a encher as telinhas mundo afora... Porra! Quem me conhece sabe que sou ateu. E que não acredito nessa baboseira toda de semana santa, paixão de Cristo, Páscoa e o escambal. Quem, no Orkut, já recebeu scrap meu desejando feliz Natal? O máximo que envio, e quando envio, são votos de boas festas... Caramba! Dêem-se, ao menos, ao trabalho de ir ver no meu perfil do Orkut o que está lá no espaço destinado a religião: "ATEU"!!!!!!!!
E me revolta mais ainda quando o sujeito no dia de hoje vem à minha casa, na sacrossantidade do meu lar (pois é, o reduto de um ateu também é sacrossanto, ok?), e me diz que eu tenho que aceitar a verdade e abrir meu coração para o salvador... Ah, vai pra porra! Salvador pras nêgas dele! Se as minhas irmãs, que são as pessoas que mais adoro nesse mundo (uma é católica fervorosa; outra, evangélica sem lá muita convicção), sabendo da minha não-crença no deus dela, me respeitam e não me enchem o saco; por que razão haveria eu de ser indulgente com alguém que me conhece há tão pouco tempo e com o qual não tenho lá a obrigação de sê-lo? Quer saber? Pensando bem, eu até que fui bem bonzinho e não enfiei o dedo na ferida do sujeito (aquela ferida que ele inconscientemente parece querer curar na busca religiosa) e não rodei até sangrar... Mas deixa pra lá, que eu também não estou aqui para querer ser a palmatória de ninguém. Cada um que se descubra sozinho e por sua própria conta...
Mas que eu passei o restante do dia irritado por conta desse episódio, ah passei... Da próxima vez, enfio e rodo!

E então, caros leitores deste blog revoltadinho, hoje resolvi fazer aqui meu manifesto ateu. Àqueles que não quiserem perder meia hora de seu precioso tempo, aconselho abandonar a leitura aqui e ir navegar por páginas mais leves e menos contundentes. Até porque a leitura será longa. Resolvi, descaradamente, reproduzir na íntegra o prefácio à edição de bolso do livro Deus: um delírio, de Richard Dawkins. Esse prefácio diz tudo o que eu gostaria de dizer no meu manifesto ateu.


Prefácio à edição de bolso

Deus, um delírio
, na edição em capa dura, foi amplamente considerado o best-seller-surpresa de 2006. Foi muito bem recebido pela grande maioria dos leitores que enviaram suas avaliações pessoais para a Amazon (cerca de mil no momento em que escrevo). A aprovação foi menos impressionante nas resenhas publicadas pela imprensa. Um cínico poderia atribuir esse fato ao reflexo pouco criativo dos editores das resenhas: se o livro tem "Deus" no título, mande para um devoto convicto. Seria, porém, cinismo demais. Várias resenhas desfavoráveis começavam com a frase que, há muito tempo, aprendi ser um péssimo sinal: "Sou ateu, MAS...". Como Dan Dennett ressaltou em Quebrando o encanto, um número desconcertantemente grande de intelectuais "acredita na crença", embora não tenham eles mesmos a crença religiosa. Esses fiéis de segunda mão são freqüentemente mais zelosos que os originais, o zelo inflado pela tolerância simpática: "Ora, não tenho a mesma fé que você, mas respeito-a e me solidarizo com ela".
"Sou ateu, MAS..." A continuação é quase sempre inútil, niilista ou - pior - coberta por uma negatividade exultante. Note, aliás, a diferença em relação a outro gênero favorito: "Eu era ateu, mas...". Esse é um dos truques mais velhos no livro, adotado por apologistas da religião desde C. S. Lewis até hoje. Serve para dar logo de cara uma sensação de credibilidade, e é incrível como funciona tantas vezes. Fique de olho.
Escrevi um artigo para o site RichardDawkins.net chamado "Sou ateu, MAS...", e tirei dele a lista a seguir de pontos críticos ou negativos das resenhas da edição em capa dura. O mesmo site, dirigido pelo inspirado Josh Timonen, atraiu um número enorme de colaboradores que desentrenharam todas essas críticas, mas em tons menos comedidos e mais diretos que o meu, ou que o dos meus colegas filósofos A. C. Grayling, Daniel Dennett, Paul Kurtz e outros que o fizeram através da mídia impressa.

1) NÃO SE PODE CRITICAR A RELIGIÃO SEM UMA ANÁLISE DETALHADA DE LIVROS ERUDITOS DE TEOLOGIA.

Best-seller-surpresa? Se eu tivesse me embrenhado, como um crítico intelectual gostaria, nas diferenças epistemológicas entre Aquino e Duns Scotus; se tivesse feito jus a Erígina na questão da subjetividade, a Rahner na da graça ou a Moltmann na da esperança (como ele esperou em vão que eu fizesse), meu livro teria sido mais que um best-seller-surpresa: teria sido um best-seller milagroso. Mas a questão não é essa. Diferentemente de Stephen Hawking (que seguiu o conselho de que cada fórmula que ele publicase reduziria as vendas pela metade), eu de bom grado abriria mão do status de best-seller caso houvesse a mais remota esperança de que Duns Scotus fosse iluminar minha questão central, se Deus existe ou não. A enorme maioria dos textos teológicos simplesmente assume que ele existe, e parte daí. Para os meus propósitos, preciso levar em conta apenas os teólogos que considerem a sério a possibilidade de que Deus não existe e argumentem por sua existência. Acho que isso o capítulo 3 faz, com - espero - bom humor e abrangência suficientes.
Em termos de bom humor, não tenho como superar a esplêndida "Resposta do cortesão", publicada por P. Z. Myers em seu blog Pharyngula.

Analisei as insolentes acusações do sr. Dawkins, exasperado com sua falta de seriedade acadêmica. Aparentemente, ele não leu os discursos detalhados do conde Roderigo de Sevilha sobre o couro singular e exótico das botas do imperador, nem dedica um segundo sequer à obra-prima de Bellini, Sobre a luminescência do chapéu de plumas do imperador. Temos escolas inteiras dedicadas a escrever tratados eruditos sobre a beleza dos trajes do imperador, e todos os grandes jornais têm uma seção dedicada à moda imperial; [...] Dawkins ignora com arrgância todas essas ponderações filosóficas profundas e acusa cruelmente o imperador de nudez. [...] Enquanto Dawkins não for treinado nas lojas de Paris e Milão, enquanto não aprender a disntinguir um babado de uma pantalona, devemos todos fingir que ele não se manifestou contra o gosto do imperador. Sua educação em biologia pode lhe dar a capacidade de reconhecer genitálias balançantes quando vir uma, mas não o ensinou a apreciar adequadamente os Tecidos Imaginários.

Ampliando o argumento, a maioria de nós desqualifica sem problemas as fadas, a astrologia e o Monstro de Espaguete Voador¹, sem precisar afundar em livros de teologia pastafariana, e assim por diante.

A próxima crítica é parente desta: a grande crítica do "testa-de-ferro".

2) VOCÊ SEMPRE ATACA O QUE HÁ DE PIOR NA RELIGIÃO E IGNORA O QUE HÁ DE MELHOR.

"Você persegue oportunistas grosseiros e incendiários como Ted Haggard, Jerry Falwell e Pat Robertson, em vez de teólogos sofisticados como Tillich ou Bonhoeffer, que ensinam o tipo de religião em qu acredito."
Se o predomínio fosse dessa espécie sutil e amena de religião, o mundo sem dúvida seria um lugar melhor, e eu teria escrito outro livro. A melancólica verdade é que esse tipo de religião decente e contido é numericamente irrelevante. Para a imensa maioria de fiés no mundo todo, a religião parece-se muito com o que se ouve de gente como Robertson, Falwell ou Haggard, Osama bin Laden ou o aiatolá Khomeini. Não se trata de testas-de-ferro; são todos influentes demais e todo mundo hoje em dia tem de lidar com eles.

3) SOU ATEU, MAS QUERO ME DISSOCIAR DE SUA LINGUAGEM ESTRIDENTE, DESTEMPERADA E INTOLERANTE.

Na verdade, quando se analisa a linguagem de Deus, um delírio, ela é menos destemperada ou estridente do que a que achamos muito normal - quando ouvimos analistas políticos, por exemplo, ou críticos de teatro, arte ou literatura. Minha linguagem só soa contundente e destemperada por causa da estranha convenção, quase universalmente aceita (veja a citação de Douglas Adams nas páginas 45 e 46), de que a fé religiosa é dona de um privilégio único: estar além e acima de qualquer crítica.
Em 1915, o parlamentar britãnico Horatio Bottomley recomendou que, depois da guerra, "se por acaso num restaurante você descobrir que está sendo servido por um garçom alemão, jogue a sopa na cara suja dele; se você se vir sentado ao lado de um secretário alemão, vire o tinteiro na cabeça suja dele". Isso, sim, é estridente e intolerante (e, eu teria pensado, ridículo e ineficaz como retórica mesmo naquela época). Compare a frase com a que abre o capítulo 2, que é o trecho citado com mais freqüência como "estridente". Não cabe a mim dizer se fui bem-sucedido, mas minha intenção estava mais próxima da de um golpe duro, mas bem-humorado, do que da polêmica histérica. Nas leituras em público de Deus, um delírio, esse é exatamente o trecho que garantidamente produz uma boa risada², e é por isso que minha mulher e eu sempre o usamos como abertura para quebrar o gelo com uma nova platéia. Se eu pudesse me aventurar a sugerir por que o humor funciona, acho que diria que é o desencontro incongruente entre um assunto que poderia ter sido expresso de forma estridente ou vulgar e a expressão real, numa lista compridíssima de latinismos ou pseudo-academicismos, ("filicida", "megalomaníaco", "pestilento"). Meu modelo aqui foi um dos escritores mais engraçados do século XX, e ninguém chamaria Evelyn Waugh de histérico ou estridente (até entreguei o jogo ao mencionar seu nome na anedota que vem logo depois, na página 55).
Críticos de literatura ou de teatro podem ser zombeteiramente negativos e ganhar elogios pela contundência sagaz da resenha. Mas nas críticas à religião até a clareza deixa de ser virtude para sor como hostilidade. Um político pode atacar sem dó um adversário no plenário do Parlamento e receber apalusos por sua combatividade. Mas basta um crítico sóbrio e justificado da religião usar o que em outros contextos seria apenas um tom direto para a sociedade polida balançar a cabeça em desaprovação; até a sociedade polida laica, e especialmente aquela parte da sociedade laica que adora anunciar: "Sou ateu, MAS...".

4) VOCÊ SÓ ESTÁ PREGANDO PARA OS JÁ CONVERTIDOS. DE QUE ADIANTA?

O "Cantinho dos Convertidos" no RichardDawkins.net já invalida a mentira, mas mesmo que a levássemos a sério há boas respostas. Uma é que o coro dos descrentes é bem maior do que muita gente imagina, sobretudo nos Estados Unidos. Mas, de novo sobretudo nos Estados Unidos, é em grande parte um coro "no armário", e precisa desesperadamete de incentivo para sair dele. A julgar pelos agradecimentos que recebi em toda turnê americana do lançamento do livro, o incentivo dado por pessoas como Sam Harris, Dan Dennett, Christopher Hitchens e por mim é bastante apreciado.
Uma razão mais sutil para pregar aos já convertidos é a necessidade de conscientização. Quando as feministas nos conscientizaram sobre os pronomes sexistas, elas estariam pregando só aos já convertidos no que se referia a questões mais significativas dos direitos das mulheres e dos males da discriminação. Mas aquele coro decente e liberal ainda precisava ser conscientizado sobre a linguagem do dia-a-dia. Por mais atualizados que estivéssemos nas questões políticas relativas aos direitos e à discriminação, ainda assim adotávamos inconscientemente convenções que faziam metade da raça humana sentir-se excluída.
Há outras convenções lingüísticas que precisam seguir o mesmo caminho dos pronomes sexistas, e o coro ateísta não é exceção. Todos nós precisamos ser conscientizados. Tanto ateus como teístas observam inconscientemente a convenção da sociedade de que devemos ser especialmente polidos e respeitadores em relação à fé. E nunca me canso de chamar a atenção para a aceitação tácita, por parte da sociedade, da rotulação de crianças pequenas com as opiniões de seus pais³. Os ateus precisam se conscientizar da anomalia: a opinião religiosa é o tipo de opinião dos pais que - por consenso quase universal - pode ser colada em crianças que, na verdade, são pequenas demais para saber qual é a sua opinião. Não existe criança cristã: só filhos de pais cristãos. Use todas as oportunidades para marcar essa posição.

5) VOCÊ É TÃO FUNDAMENTALISTA QUANTO AQUELES QUE CRITICA.

Não é, por favor, fácil demais confundir uma paixão capaz de mudar de opinião com fundamentalismo, coisa que nunca farei. Cristãos fundamentalistas são apaixonadamente contra a evolução, e eu sou apaixonadamente a favor dela. Paixão por paixão, estamos no mesmo nível. E isso, para algumas pessoas, significa que somos igualmente fundamentalistas. Mas, parafraseando um aforismo cuja fonte eu não saberia precisar, quando dois pontos de vista contrários são manifestados com a mesma força, a verdade não está necessariamente no meio dos dois. É possível que um dos lados esteja simplesmente errado. E isso justifica a paixão do outro lado.
Os fundamentalistas sabem no que acreditam e sabem que nada vai mudar isso. A citação de Kurt Wise na página 366 diz tudo: "[...] se todas as evidências do universo se voltarem contra o criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, mas continuarei sendo criacionista, porque é isso que a palavra de Deus parece indicar. Essa é minha posição". A diferença entre esse tipo de compromisso apaixonado com os fundamentos bíblicos e o compromisso igualmente apaixonado de um verdadeiro cientista com as evidências é tão grande que é impossível exagerá-la. O fundamentalista Kurt Wise declara que todas as evidências do universo não o fariam mudar de opinião. O verdadeiro cientista, por mais apaixonadamente que "acredite" na evolução, sabe exatamente o que é necessário para fazê-lo mudar de opinião: evidências. Como disse J. B. S. Haldane, quando questionado sobre que tipo de evidências poderia contradizer a evlução: "Fósseis de coelho no Pré-cambriano". Cunho aqui minha própria versão contrária ao manifesto de Kurt Wise: "Se todas as evidências do universo se voltarem a favor do criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, e mudarei de opinião imediatamente. Na atual situação, porém, todas as evidências disponíveis (e há uma quantidade enorme delas) sustentam a evolução. É por esse motivo, e apenas por esse motivo, que defendo a evolução com uma paixão comparável à paixão daqueles que a atacam. Minha paixão baseia-se nas evidências. A deles, que ignora as evidências, é verdadeiramente fundamentalista".

6) SOU ATEU, MAS A RELIGIÃO VAI PERSISTIR. CONFORME-SE.

"Você quer se livrar da religião? Boa sorte! Você acha que vai conseguir se ver livre da religião? Em que planeta você vive? A religião faz parte dele. Esqueça isso!"
Eu agüentaria qualquer um deses argumentos, se eles fossem ditos num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação. Pelo contrário. O tom de voz é às vezes até alegrinho. Não acho que se trate de masoquismo. O mais provável é que possamos de novo classificar o fenômeno como a "crença na crença". Essa gente pode não ser religiosa, mas adora a idéia de que os outros sejam. O que me leva à categoria final das minhas réplicas.

7) SOU ATEU, MAS AS PESSOAS PRECISAM DA RELIGIÃO.

"O que você vai colocar no lugar dela? Como vai consolar quem perde um ente querido? Como vai suprir a carência?"
Quanta condescendência! "Você e eu, é claro, somos inteligentes e cultos demais para precisar de religião. Mas as pessoas comuns, a patuléia, o proletariado orwelliano, os semi-idiotas deltas e ípsilons huxleanos, eles precisam da religião". Isso me faz lembrar de uma ocasião em que estava dando uma palestra numa conferência sobre a compreensão pública da ciência, e investi brevemente contra "baixar o nível". Na sessão de perguntas e respostas no final, uma pessoa da platéia ficou de pé e sugeriu que "baixar o nível" poderia ser necessário para "trazer as minorias e as mulheres para a ciência". Seu tom de voz mostrava que ela realmente acreditava que estava sendo liberal e progressista. Só fico imaginando o que as mulheres e as "minorias" da platéia acharam.
Voltando à necessidade de consolo da humanidade, ela existe, é claro, mas não há alguma infantilidade na crença de que o universo nos deve um consolo, como de direito? A afirmação de Isaac Asimov sobre a infantilidade da pseudociência é igualmente aplicável à religião: "Vasculhe cada exemplar da pseudociência e você encontrará um cobertorzinho de estimação, um dedo para chupar, uma saia para segurar". É impressionante, além do mais, a quantidade de gente que não consegue entender que "X é um consolo" não significa que "X é uma verdade".
Uma crítica análoga a essa trata da necessidade de um "propósito" na vida. Citando um crítico canadense:

Os ateus podem estar certos sobre Deus. Vai saber. Mas, com Deus ou sem Deus, fica claro que há algo na alma humana que demanda a crença de que a vida tem um objetivo que transcende o plano material. Era de imaginar que um empiricista do tipo mais-racional-que-vós como Dawkins reconhecesse esse aspecto imutável da natureza humana [...] Será que Dawkins acha mesmo que este mundo seria um lugar mais humano se todos nós procurássemos a verdade e o consolo em Deus, um delírio e não na Bíblia?

Na verdade sim, já que você mencionou "humano", sim, acho, mas devo repetir, mais uma vez, que o potencial de consolo de uma crença não eleva seu valor de verdade. É claro que não posso negar a necessidade de consolo emocional, e não tenho como defender que a visão de mundo adotada neste livro ofereça um consolo mais que apenas moderado para, por exemplo, quem perdeu um ente querido. Mas, se o consolo que a religião parece oferecer se fundamenta na premissa neurologicamente implausibilíssima de que sobrevivemos à morte de nosso cérebro, você está mesmo disposto a defendê-lo? De qualquer maneira, acho que nunca encontrei ninguém que não concorde que, nas cerimônias fúnebres, as partes não religiosas (homenagens, poemas ou músicas favoritas do falecido) são mais tocantes que as orações.
Depois de ler Deus, um delírio, o dr. David Ashton, um médico britânico, escreveu-me contando da morte inesperada, no Natal de 2006, de seu adorado filho Luke, de dezessete anos. Pouco antes, os dois haviam conversado elogiando a entidade sem fins lucrativos que estou montando para incentivar a razão e a ciência. No enterro de Luke, na ilha de Man, seu pai sugeriu à congregação que, se alguém quisesse fazer algum tipo de cntribuição em memória do filho, deveria enviá-la a minha fundação, como Luke gostaria. Os trinta cheques recebidos somaram mais de 2 mil libras, incluindo mais de seiscentas libras arrecadadas num pub local. O garoto era obviamente muito querido. Quando li o livreto da cerimônia fúnebre,chorei literalmente, embora não conhecesse Luke, e pedi permissão para reproduzi-lo no RichardDawkins.net. Um gaitista solitário tocou o lamento local "Ellen Vallin". Dois amigos fizeram discursos de homenagem, e o dr. Ashton recitou o belo poema "Fern Hill" ["Monte das samabaias"] ("Era eu jovem e tranqüilo, debaixo das macieiras" - que evoca tão dolorosamente a juventude perdida). E então, e tenho de respirar fundo para contar, ele leu as primeiras linhas de meu Desvendando o arco-íris, linhas que havia tempos eu tinha separado para o meu próprio enterro.

Nós vamos morrer, e isso nos torna afortunados. A maioria das pessoas nunca vai morrer, porque nunca vai nascer. As pessoas potenciais que poderiam estar no meu lugar, mas que jamais verão a luz do dia, são mais numerosas que os grãos de areia da Arábia. Certamente esses fantasmas não nascidos incluem poetas maiores que Keats, cientistas maiores que Newton. Sabemos disso porque o conjunto das pessoas possíveis permitidas pelo nosso DNA excede em muito o conjunto de pessoas reais. Apesar dessas probabilidades assombrosas, somos eu e você, com toda a nossa banalidade, que estamos aqui...

Nós, uns poucos privilegiados que ganharam na loteria do nascimento, contrariando todas as probabilidades, como nos atrevemos a choramingar por causa do retorno inevitável àquele estado anterior, do qual a enorme maioria jamais saiu?
É óbvio que há exceções, mas suspeito que para muitas pessoas o principal motivo de se agarrarem à religião não seja o fato de ela oferecer consolo, e sim o de elas terem sido iludidas por nosso sistema educacional e não se darem conta de que podem não acreditar. Decerto é assim para a maioria das pessoas que são criacionistas. Simplesmente não ensinaram direito a elas a impressionante alternativa de Darwin. É provável que o mesmo aconteça com o mito depreciativo de que as pessoas "precisam" da religião. Numa conferência recente, em 2006, um antropólogo (e exemplar perfeito do tipo eu-sou-ateu-mas) citou a resposta de Golda Meir quando questionada se acreditava em Deus: "Acredito no povo judaico, e o povo judaico acredita em Deus". Nosso antropólogo usou sua própria versão: "Acredito nas pessoas, e as pessoas acreditam em Deus". Prefiro dizer que acredito nas pessoas, e as pessoas, quando incentivadas a pensar por si sós sobre toda a informação disponível hoje em dia, com muita freqüência acabam não acreditando em Deus, e vivem uma vida realizada - uma vida livre de verdade.

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1 - Flying Spaghetti Monster: deus de uma religião fictícia criada em 2005 nos Estados Unidos, para satirizar a proposta de inclusão do design inteligente no currículo das escolas públicas de Kansas. Seus "adeptos" são chamados de pastafarianos (pasta [massa em inglês] + rastafarianos). (N. T.)

2- "O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento por sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo. Aqueles que são acostumados desde a infância ao jeitão dele podem ficar dessensibilizados com o terror que sentem" (DAWKINS. Deus: um delírio. São Paulo: Compahia das Letras, 2007. p. 55)

3- No livro, Dawkins faz um apelo apaixonado contra a doutrinação de crianças em qualquer religião. Para ele, o simples fato de dizermos "criança católica" ou "criança judia" é uma forma de abuso infantil, comparável até ao abuso sexual, tão absurdo como falar de "criança neoliberal".




Portanto, senhores, poupem-me de suas crenças! Esqueçam-me nas datas religiosas! Não me enviem quaisquer tipos de mensagens, scraps ou apresentação de slides de cunho religioso! Respeitem minha razão e minha sensibilidade!


Um ótimo final de semana a todos!
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