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23.2.11

Por que digo ao mundo que sou ateu – parte final (por enquanto)

(Autoria da foto: Edmilson Borret - 11/09/2010)


A questão é que muita gente parece desconhecer o que é ser ateu. Como já tentei deixar claro nas postagens anteriores, basicamente, ser ateu é não precisar de um deus nem de deuses para justificar os próprios atos. Não é simplesmente "negar" a existência de deus(es): isso poderia parecer uma simples pirracinha infantil, coisa de adolescente rebelde sem causa. Ser ateu, pelo menos como eu entendo ser ateu de forma consciente, é assumir a responsabilidade de estar vivo e viver conforme a própria consciência, fruto do funcionamento cerebral. E o espanto geral advém justamente daí. Como assumir a responsabilidade por estar vivo????!!!

Nesse sentido, minha maneira de encarar as coisas aproxima-se muito do existencialismo ateu de Sartre. Segundo ele, o homem é livre e responsável por tudo que está à sua volta. Somos inteiramente responsáveis por nosso passado, nosso presente e nosso futuro. Paradoxalmente, Sartre nos propõe a ideia de liberdade como uma pena, por assim dizer: "O homem está condenado a ser livre". Se, como Nietzsche afirmava, já não havia a existência de um deus que pudesse justificar os acontecimentos, a ideia de destino, com Sartre, passa a ser inconcebível, sendo então o homem o único responsável por seus atos e escolhas. Nossas escolhas são direcionadas por aquilo que nos aparenta ser o bem, mais especificamente por um engajamento naquilo que aparenta ser o bem e assim tendo consciência de si mesmo. Em outras palavras, o homem é um ser que "projeta tornar-se deus". Nesse sentido, dentro dessa perspectiva, recorrer a uma suposta ordem divina representa apenas uma incapacidade humana de arcar com as próprias responsabilidades. O existencialismo sartriano confere assim uma importância crucial à responsabilidade individual: cada escolha da nossa vida traz consigo a obrigação de responder por nossos próprios atos, um encargo que torna o homem o único responsável pelas consequências de suas decisões. E cada uma dessas escolhas provoca mudanças que não podem ser desfeitas, de forma a modelar o mundo de acordo com seu projeto pessoal. Assim, perante suas escolhas, o homem não apenas torna-se responsável por si, mas também por toda a humanidade.

Diante disso, proponho uma experiência a todos: tire deus(es) do palco da
existência e veja. Perceba o que sobra. O que sobra? A mesma vida de sempre... contudo muito mais "ameaçadora" pelo fato de exigir a própria tomada de decisões ao invés de depositarem-se tais decisões em alguém ou algo além de "si mesmo". Perceba que não tem mais ninguém observando seus atos além de você mesmo e assim qualquer coisa que você faça estará de acordo apenas com a sua vontade, não a vontade de um ser superior a você. Pense nisso.

A crença em deus antes de ser uma necessidade é o maior dos vícios. Ela expressa imaturidade e a necessidade de um Pai guiando os próprios passos de quem estiver "viciado" em acreditar num "pastor", num condutor. É alienante e altamente prejudicial ao desenvolvimento pleno da potencialidade humana.Visto por essa perspectiva, um ateu só perdeu o vício, como alguém que deixa de fumar, como alguém que deixa de beber, como alguém que deixa de se drogar e entorpecer... (Talvez por isso mesmo, eu não seja tão radical em relação aos teístas – desde que eles não tentem me converter, que fique claro. Pois como tabagista inveterado que sou, sei o que é viver no vício). Um ateísta sabe que ele é o responsável por qualquer atitude que venha a tomar. Daí a opção pela Ética acima de tudo.

Entretanto, há algumas questões para as quais deus e a espiritualidade aparentemente seriam a resposta. Questões essas que, de certa forma, quem se põe a responder pode vir a cair na tentação viciosa de fundamentar-se na crença em deus(es) ou em espíritos a fim de validar as possíveis respostas. Vamos a algumas dessas questões, como numa espécie de FAQ:


1) Como a matéria sem vida cria vida?

A resposta seria: através da vontade de deus? Ou...

Um segredo? Qualquer porção de matéria que contenha os ingredientes necessários ao desenvolvimento de organismos simples, ganha vida no decorrer do tempo sob as condições propícias ao desenvolvimento de tal vida. O universo parece ser apto ao desenvolvimento de vida. A matéria parece ser apta a desenvolver seres conscientes em algum ponto da jornada evolutiva... Mas e aí? Acrescentar um ingrediente em algo não faz desse ingrediente uma necessidade. A menos que se prove que SEM tal ingrediente a vida não se forma, coisa que parece que está prestes a ser comprovada. Ou seja, estamos prestes a comprovar que bastam os ingredientes e as condições necessárias ao surgimento da vida para que ela simplesmente ecloda, apareça. Mas isso é prova da existência de deus ou apenas uma das várias qualidades da matéria que ainda não conhecemos totalmente?

2) Como se dá a percepção extrassensorial?

A espiritualidade parece ter a resposta mas...

Somos animais como todos os demais. Temos sentidos que ainda não conhecemos. Alguns animais têm sentidos mais apurados que outros, percebem variações sutis na atmosfera, vibrações sutis na forma de sons inaudíveis mas que podem ser sentidos pelas partes moles ou ocas do organismo. Nós percebemos estes sons inaudíveis, percebemos o campo magnético da Terra, percebemos de que forma está tudo interligado na teia da vida... Mas isso é prova de que deus existe, ou apenas uma das condições de se estar vivo e imerso num sistema fechado onde tudo co-participa e é co-dependente? A suposta "ligação" entre as pessoas a quilômetros de distância pode ser simplesmente fruto de algum sentimento que as une e isto sim deveria ser estudado, a forma como o amor faz romper barreiras entre o eu e o outro. Mas o amor é prova da existência de deus? Ou é algo imanente da própria vida? O que é o amor para que possa ser confundido com um algo mais além de nós mesmos?


3) Como a matéria sem propósito criou o propósito e a ordem?

Mas, quem vê tal ordem? Quem vê tal propósito senão nós mesmos? O universo é um caos que nós percebemos ser ordenado. A inteligência é capaz de ver tal ordem. Mas isso é prova de que deus existe? Ou a necessidade de ver tal ordem nasce justamente da necessidade de compreender o caos? Ver padrões e paradigmas indica que algo está sendo compreendido; nosso cérebro funciona assim: ele seleciona partes desconexas e as agrupa conforme as semelhanças encontradas entre elas. Onde está deus na ordem que NÒS mesmos emprestamos ao universo?



4) E a reencarnação... como se explica sem a existência de espíritos e deus(es)?

Você sabe como o cérebro funciona? Eu não sei. Nem os cientistas sabem completamente. Mas estão pesquisando ao invés de atribuirem as qualidades desse órgão à existência de um deus ou de uma consciência migratória. Sabe-se hoje em dia que tudo o que experimentamos nasce do equilíbrio físico-químico das reações que desencadeiam os pulsos elétricos a serem transmitidos em cadeia pelos neurônios dentro do cérebro. Ampute-se uma parte disso, lesione-se alguma região lá dentro da cabeça de um indivíduo e a personalidade diferenciada por algum ou outro atributo já não existe mais...



Assim, só para concluir, ser ateu não é negar a maravilha, o grandioso, o magnífico. É simplesmente não precisar de explicações com base na fé cega para algo que carregamos com nós mesmos... Tire deus agora e o que sobra? O universo, toda a maravilha e beleza que nós experimentamos a partir de nossa inteligência e nossa capacidade de vermos padrões e ordenação. Não há palavras para se descrever o fato de sermos partes disso tudo e termos inteligência para perceber a grandiosidade e a infinidade contida em cada porção mínima de matéria. Quem já leu sobre a física de partículas, sobre mecânica quântica já faz uma idéia. A maravilha não para no átomo, ela adentra ainda mais esse mundo diminuto estendendo-se para além dos limites de nossa compreensão. Para que deus e tudo o que nos condicionamos a acreditar que ele represente para nós? Já não basta estarmos vivos e experimentando o mundo? Para que um regente supremo de nossos atos além de nós mesmos? E se tudo é imensamente maior do que percebemos, para que cedermos a uma certeza que é a fé na existência de deus?


Percebem onde quero chegar? Ser ateu é ater-se ao presente e simplesmente vivê-lo. É estar ancorado no meio do nada que se faz tudo quando é observado e vivenciado a partir da inteligência seja ela humana ou animal, seja ela inerente à matéria ou não, não importa.



Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

(CAEIRO, Alberto. O guardador de rebanhos)

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