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28.2.07

Sexualidade e repressão

EROS E PSIQUE

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)



Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

(Fernando Pessoa)



(Eros e Psique - Rodin)


O Mito

Existiu uma filha de reis, chamada
Psique, que era belíssima, ao ponto de despertar a inveja da própria deusa do amor, Vênus. Enciumada, Vênus ordena a seu filho Eros que vá até Psique, disfarçado, e a faça apaixonar-se pelo homem mais horrendo e vil da terra, como desforra contra a beleza provocadora de Psique.
Quando Eros encontra Psique para cumprir a vingança, em obediência a sua mãe Vênus, descontrola-se diante da beleza da moça e, descontrolado, espetando-se nas próprias flechas, apaixona-se perdidamente por Psique. Os oráculos transmitem ao rei, pai de Pisque, a orientação de que ela deveria ser levada a um penhasco para viver dentro de um castelo à espera de um esposo. Eros aproveitava-se e à noite, disfarçado, passa a visitá-la para amarem-se, pedindo a Psique que não tentasse conhecê-lo, evitasse vê-lo ou saber seu nome, porque somente assim a relação se tornaria eterna.

As irmãs de Psique, invejosas, convenceram-na que tal amor desconhecido seria na verdade um monstro disfarçado, uma serpente, que a mataria em determinado momento. A ingênua Psique, acreditando, preparou-se com um punhal, para na próxima noite cortar a cabeça de seu amante, o incógnito Eros. Após amarem-se, como de costume, ela decidiu matá-lo enquanto ele dormia. Mas, quando, ao pegar uma lamparina e iluminar a figura para melhor atacá-lo, viu o rosto dele e descobriu que seu objeto de amor era o próprio deus do amor, lindo e jovem, e nada de monstro, segundo a invenção das irmãs. Eros despertou, por ter-lhe caído uma gota de óleo quente da lamparina e viu-se descoberto. Sentindo-se traído em sua confiança, partiu imediatamente em vôo, encerrando a relação com Psique.

Psique, desamparada, tenta o suicídio e decide afogar-se, mas é salva pelo deus
Pan. Este a aconselha a procurar uma cura para seu problema no próprio amor. Psique - que nada sabia sobre o plano de Vênus, a mãe de Eros - foi ao encontro dela, confiante, pedir apoio. A deusa mandou torturá-la de variadas formas, mas ao fim cedeu e decidiu entregar-lhe o filho caso cumprisse quatro tarefas:
1- Separar num dia uma montanha de sementes;
2 - Pegar a lã dourada dos carneiros do deus Sol;
3 - Pegar água de uma fonte guardada por dragões; e
4 - Descer ao mundo dos mortos e pegar a caixa com a beleza da morte e entregá-la a Vênus.

Todas as tarefas foram realizadas, com apoio de muitas forças sobrenaturais, de deuses aliados e compadecidos, mas ao encontrar-se na posse da caixinha que continha a beleza da morte, Psique não resistiu à curiosidade e cometeu a imprudência de abri-la. Nesse instante uma nuvem a faz cair em sono mortal. Enquanto isso tudo acontecia, Eros recupera-se de sua ferida e vai à procura de Psique, encontrando-a desfalecida. Com uma de suas flechas do amor, Eros desperta Psique. Casam-se, com a ajuda de Júpiter, e chegam a ter uma filha chamada
Volúpia.



Há alguns anos, usei este poema do Pessoa e o mito grego para trabalhar com os alunos do Núcleo de Adolescentes Multiplicadores. Queria, com isso, introduzir a questão da sexualidade na puberdade, o despertar da psiquê para as coisas do desejo e do sexo.
O desejo, desiludido com a traição da alma por, não confiando plenamente nele e tão somente nele, ter preferido dar ouvidos ao que os outros (a sociedade) diziam contra ele, resolve dela se afastar. E aí começa toda essa busca interminável, essa luta perpétua entre, por um lado, atender seu apelo e entregar-se ao desejo e, por outro lado, comportar-se como toda alma supostamente deveria, de acordo com o que se exige de sua pretensa castidade. Até o momento que os dois – desejo e alma – descobrem que um não pode viver sem outro, que ambos se complementam, que são um só... para além de toda e qualquer moralidade.
Eis o caráter repressivo que permeia o mito de Eros e Psique (sobretudo quando pensamos na "moralidade cristã", que tão calhordamente se apoderou do mito): dois seres, enclausurados num cubículo e em suas vestes, sem rosto, enlaçados pelas convenções. Encontro sem contato (as bocas não se beijam, beijam trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob os panos que cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da sociedade inteira, vigiando e controlando o pobre casal (o muro a ser vencido).
O que ocorre, porém, é que Eros e Psique não são dois entes separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são um só e mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). No poema de Fernando Pessoa, percebemos isso claramente quando o príncipe destemido busca a princesa encantada para descobrir que ele era ela. Esse desejo de indivisão e de fusão perpétua (quase sempre impossível), o laço que une desejo e alma em terno e profundo abraço (o "processo divino que faz existir a estrada"), é a sexualidade humana, perpetuamente reprimida. E só nos livraremos dessa repressão no momento em que entendermos que quando o desejo nos bate à porta da alma, esta não deve nunca lhe ficar indiferente, temer-lhe suas intenções ou delas desconfiar, sob pena de ficarmos eternamente pela metade...

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