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18.10.11

aquele abril




havia nos muros palavras
e nas palavras silêncio
havia na calçada flores
e rostos emoldurados
e deuses e esperanças
enfileirados na noite
de profetas e jornais



havia nos abraços espanto
e nas vigílias dormência
e nos nomes havia
o cheiro perfurante das memórias
feito pedaços de uma xícara
- uma canção inacabada

havia nos dias um outono
e holofotes e manchetes
e um de repente abissal
nas rugas no canto da boca
nas entranhas inconformadas
feito inverno antecipado
feito café frio e amargo
e doce esquecido no prato

havia o ponteiro do relógio
parado fora de hora
e a esquina absurda do medo
e a poeira dos sonhos de avós
e o espetáculo
e o soluço
e a aspirina

havia as batinas e os coturnos
os ternos e as bíblias
e a voz ritmada do pop star
e havia quem dissesse um
quem dissesse doze
ou quase mil
quem os dissesse anjos
feito se lhes antevissem as asas

(Edmilson Borret – 18/10/2011)

24.7.11

Amy Winehouse era o que era... She said 'no, no, no'


Recentemente, lendo a biografia do Lobão, pensei e comentei com uma amiga que no cenário atual da música mundial faltavam mais loucos como o roqueiro brasileiro, havia uma escassez de gênios que vivessem a vida de forma brutal e intensa, que simplesmente cagassem para os paradigmas de uma sociedade escrota. Eu e essa minha amiga chegamos, porém, à conclusão que talvez Amy Winehouse fosse a única remanescente desse seleto grupo de pessoas consideradas loucas, mas expoentes incontestáveis de uma genialidade ímpar. O cenário atual da música (nacional ou internacional) está saturado de uma corja cada vez mais certinha, mais bonitinha e politicamente correta. Alguns até fazem um som de qualidade. Mas a grande maioria... bom, melhor deixar pra lá.


E hoje, 23 de julho de 2011, o mundo inteiro recebeu a notícia da morte dessa última remanescente da loucura criativa. Em meio ao choque pela perda de um talento insubstituível, deparei-me com comentários que iam do torpe ao desumano nas redes sociais e fóruns na internet. Poucas foram as demonstrações de pesar pela perda do potencial artístico; muitas foram as piadinhas, os trocadilhos e os julgamentos morais do tipo “ela fez por merecer”, “isso já era esperado”, “ele teve o fim que pediu”, etc. A maioria desses julgamentos morais era acompanhada de um “coitada”: a compaixão dos moralistas... Coitados, na verdade, são eles – esses moralistas.


O fato é que as pessoas são como elas são. Isso independe do que você pensa delas e de como você gostaria que elas fossem. Sei que há pessoas que adorariam que Amy Winehouse fosse uma pessoa centrada, focada na carreira, sóbria e lúcida o suficiente para fazer shows impecáveis. Mas isso é problema dessas pessoas, não era dela; porque ela simplesmente não era assim e sequer sabia que essas pessoas existem. Amy era como ela era, não como eu ou qualquer outra pessoa gostaria que ela fosse ou como eu ou qualquer outra pessoa ache que ela poderia ter sido. E pronto! Ela era, antes de tudo, uma compositora fantástica e original, uma intérprete do caralho, dona de uma voz incrível e de um estilo marcante e autêntico. Mas ela também era alcoólatra, anoréxica, bulímica, bipolar, desconfortável com o sucesso, insegura, desequilibrada, autodestrutiva e usuária compulsiva de maconha, cocaína, heroína e crack. E pronto!


Assisti ao show que Amy Winehouse fez na Arena HSBC do Rio de Janeiro, em 11 de janeiro deste ano. E foi uma das melhores experiências que já tive.


É fato: Amy não mostrou qualquer domínio de palco. Mas caramba, ela não tinha nem domínio sobre si mesma! Atravessou o ritmo várias vezes, mas isso sempre fez parte do seu estilo de interpretação ao vivo. Errou a entrada de algumas músicas? Sim. Mas isso não destoava em nada de sua personalidade e foi proposital em certos momentos; até porque shows de soul music permitem esse tipo de coisa, o que é sempre uma oportunidade para a banda mostrar sua competência. Sim, ela esqueceu trechos de algumas letras, mas isso não é nada para alguém nas precárias condições físicas e psíquicas dela. Fato é também que o show durou só 1 hora e 20 minutos, mas teve quase 20 músicas... Putz! Bom demais para uma artista que só lançou dois discos – e o show esteve perfeitamente estruturado em início, meio, apresentação da banda, fim e bis. Para mim, foi uma experiência muito especial ver Amy Winehouse ao vivo, pelo tanto que eu admiro seu talento, ainda que com uma parca discografia.


Não foi pela imprensa, mas por ela mesma, através de suas músicas, de suas letras, que eu soube que ela era autodestrutiva, vulgar, descontrolada, triste, difícil, encrenqueira. Portanto, quando me encantei por Amy, ela já era desse jeito. Para mim, a única surpresa do show foi o fato de ela ter vindo. E já que ela veio, tudo mais era previsível. Eu estava ali para viver uma experiência improvável e há muito tempo desejada. Fui sem ilusões e, portanto, voltei sem decepções. E não fui o único a sair de lá plenamente satisfeito, a julgar pela calorosa reação de grande parte da plateia. Amy nunca enganou ninguém, nem conseguiria se quisesse. Quem saiu daquele show decepcionado provavelmente entrou lá iludido ou desinformado.


Para mim foi um enorme prazer ver de perto aquela figura caricata e autêntica, talentosa e frágil, digna de admiração e pena. Ela deixou o palco várias vezes, bebia repetidamente um líquido qualquer de uma xícara, líquido esse que decididamente não era chá nem café. No meio do show, Amy ausentou-se de cena por longos minutos, tanto que seu backing vocal Zalon teve que cantar duas canções que ele havia gravado para um álbum solo, como forma de ocupar o palco. Depois disso, ela voltou, mas seus pés e o chão já não falavam a mesma língua, tão zonza que estava. Mas a partir desse momento, parafraseando Chico, ela jamais cantou tão lindo assim os hits “Rehab”, “Valerie” e “You know I’m no good”. A banda (incrível também, diga-se de passagem) foi apresentada em longa exibição de seus ótimos talentos individuais. E o bis fechou o espetáculo com “Love is a losing game” e “Me and Mr. Jones”. Mais do que isso seria impossível. Da mesma forma que seria impossível Bono não interagir com a plateia, Madonna não desafinar, Britney não usar playback e Jagger não requebrar. Era Amy Winehouse toda ali, ora bolas! Todo mundo sabia disso. Ou, pelo menos, deveria.


E assim Amy Winehouse foi em sua curta vida. Era ela toda ali!! Todo mundo que “ouvia” suas músicas sabia disso... Ou, pelo menos, deveria.


Mensagem válida para moralistas de plantão, normalistas, manicures, mães zelosas e demais pessoas de bem.



“They tried to make me go to rehab
But I said 'no, no, no'
Yes, I've been black, but when I come back
You'll know-know-know
I ain't got the time
And if my daddy thinks I'm fine
He's tried to make me go to rehab
But I won't go-go-go”





19.6.11

Novas diretrizes quando a vida é sonho ou As relações de poder na língua


Assisti hoje, pela quarta ou quinta vez, ao excelente filme Tempos de Paz, baseado na peça Novas diretrizes em tempos de paz, de Bosco Brasil. E devo dizer que, a cada vez que assisto a esse filme, choro copiosamente. Mas é de um choro que ainda não sei explicar: é franco, mas não é triste... tampouco é alegre. É choro, simplesmente. Não assisti à encenação do texto do Bosco nos palcos. Só conheço essa versão para o cinema. Direção ótima do Daniel Filho, que, aliás, está incrível também como ator no filme, apesar das poucas cenas. Interpretações impagáveis de Tony Ramos e Dan Stulbach, como Segismundo e Clausewitz, respectivamente: um embate de talentos poucas vezes visto no cinema brasileiro, em quase 70 minutos de diálogos entre os dois somente... Há que se ter fôlego!

Não vou nem falar do monólogo do personagem Clausewitz, porque essa cena talvez seja a mais comentada do filme. Já é umas das cenas antológicas do cinema nacional! Monólogo retirado da peça A vida é sonho, do espanhol Calderón de La Barca. Não à toa, o personagem da peça do espanhol se chama Segismundo também. Se, na peça de Bosco Brasil, Segismundo é um ex-torturador da ditadura de Vargas agora responsável-chefe pela Imigração e pela autorização da entrada de europeus no Brasil do pós-guerra; em A vida é sonho, o personagem é o filho renegado de Basílio, rei da Polônia que ao nascer é trancado em uma torre. Seu único contato com o mundo externo é Clotaldo, seu guardião e fiel servo de seu pai. O Segismundo brasileiro é algoz: prendia e torturava; o espanhol é vítima: sofria a violência da prisão e a tortura de nem sequer ver a luz do sol.

Mas é curioso como Bosco Brasil mantém algo do Segismundo espanhol no brasileiro: este também, embora não estando preso numa caverna, vive num mundo de sombras. Sombras de um passado que o atormenta e do qual ele tenta se libertar. Segundo Platão, o homem vive em um mundo de sonhos, de escuridão, cativo em uma caverna da qual só poderá se libertar ao tender para o bem: somente desse modo, o homem deixará a matéria e fará a ascese até a luz. A influência da concepção platônica na obra de Calderón é evidente já mesmo no título. O personagem Segismundo vive, no princípio, dentro de um cárcere, numa caverna, na qual permanece na mais completa escuridão pelo desconhecimento de si mesmo, e somente quando é capaz de ter conhecimento de quem realmente é, alcança o triunfo da luz. Aos poucos, Clausewitz vai efetuando essa mesma transformação em nosso Segismundo brasileiro. E a transformação se faz completa quando ele consegue fazer o ex-torturador chorar ao recitar o tal monólogo.

Entretanto, o que mais me chama a atenção no texto de Bosco Brasil é a discussão que se faz sobre as relações de poder. Numa primeira leitura, essas relações parecem se estabelecer num plano político óbvio. Um chefe da Imigração no porto do Rio de Janeiro interrogando um imigrante polonês que ele supõe ser um possível nazista querendo abrigo no Brasil após a Segunda Guerra. Em tempos de paz e de anistia para os presos políticos da ditadura de Vargas, dar salvo-conduto a um nazista seria uma temeridade, sobretudo para um ex-torturador com uma ficha corrida mais suja do que pau de galinheiro. Por isso Segismundo achou que, no caso de Clausewitz, um interrogatório mais cuidadoso deveria ser feito. E isso porque, diferentemente dos outros imigrantes, Clausewitz falava um português impecável. A adaptação para o cinema foi bastante feliz ao sublinhar esse fato. No filme de Daniel Filho, causou estranheza aos funcionários da alfândega essa fluência de Clausewitz no nosso idioma. E é justamente aí que se estabelece, a meu ver, uma segunda leitura das relações de poder. A língua! Já na fila da triagem fica clara essa relação de poder. Os outros imigrantes, por não entenderem nada do que os funcionários da alfândega dizem, são mais submissos. Já Clausewitz é mais altivo: ele recita para o funcionário os primeiros versos do poema “Mãos dadas”, de Carlos Drummond de Andrade.

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.


O funcionário da alfândega olha meio desconfiado para Clausewitz e sai preocupado para chamar imediatamente o chefe, Segismundo. A partir daí, o filme segue à risca os mesmos diálogos da peça de Bosco Brasil. O ex-torturador começa o interrogatório do imigrante polonês e quer, a todo custo, saber como um agricultor simples aprendeu a falar o português tão bem.

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor fala mesmo, o Português.

CLAUSEWITZ - Eu falo.

SEGISMUNDO - Já esteve no Brasil antes?

CLAUSEWITZ - Nunca antes.

SEGISMUNDO- Sei. E o senhor aprendeu como, o Português?

CLAUSEWITZ - Estudei sozinho. Depois de tudo que eu passei... tudo que eu passei na Guerra... estudar uma língua tão estranha foi bom para mim, me fez esquecer... Eu sou grato ao “x”. Gastei muito tempo estudando os valores do “x” no Português. Como é que vocês usam de tantas maneiras uma letrinha à toa?! Estudando o “x” eu às vezes quase esquecia da Guerra... Quase esquecia da maldade. (TEMPO) Claro, um funcionário do consulado do seu país em Manchester me emprestou alguns livros. Ele também repetiu “não” muitas vezes. Agora eu falo: “não”.

SEGISMUNDO - Era a obrigação dele.

CLAUSEWITZ - Repetir o “não””?

SEGISMUNDO - Não se pode dar visto de entrada ao primeiro que aparece.

CLAUSEWITZ - Ah... Estava falando da pronúncia. “Não”. É difícil dizer: “não”. Essas “nasais” da sua língua...

SEGISMUNDO - Nazistas, o senhor disse?

CLAUSEWITZ - Por favor! Nasais! Nasais... Não. Mão. Verão.

SEGISMUNDO - Então. O senhor aprendeu com esse funcionário do consulado.

CLAUSEWITZ - Eu já tinha estudado um pouco no seminário. Por causa do meu professor de Latim. O Professor Cracowiack... (TEMPO) Docta ignorantia. O senhor já ouviu isso, não?

SEGISMUNDO - Não. O que é?

CLAUSEWITZ - Latim.

(...)

SEGISMUNDO - (TEMPO) Então o senhor aprendeu português no seminário...

CLAUSEWITZ - Não. Latim... Com o professor Cracowiack , como eu disse. (TEMPO) Interessante. Nunca soube como o professor Cracowiack foi acabar dando aula no seminário. (TEMPO) O professor Cracowiack amava as línguas neolatinas. (TEMPO) Professor Cracowiack falava dezessete línguas! (TEMPO) Ele tinha o exemplar de uma revista com poesia brasileira moderna. (SE ANIMA) O senhor já ouviu falar do senhor Carlos Drummond de Andrade?

SEGISMUNDO - É o sujeito forte do ministro da Educação e da Saúde. Eu sei que escreve num jornal. Parece que é escritor. E o senhor, é escritor?

CLAUSEWITZ - Não, sou agricultor.

SEGISMUNDO - E aprendeu sozinho o português... Não é todo dia que chega um estrangeiro aqui, falando Português.

CLAUSEWITZ - É bom estar no Brasil.

SEGISMUNDO - Deve ser. (TEMPO) Escute, o senhor chegou num dia um pouco agitado. Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei ainda estamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o armistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Estamos esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não chegam: continua o mesmo. Se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor precisa de um salvo-conduto. O senhor quer ficar no país, não é?

CLAUSEWITZ - Eu quero.

SEGISMUNDO - Sei. Então nós temos que esclarecer algumas dúvidas a seu respeito. Se isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro, e seguir viagem.

Que audácia desse imigrantezinho de merda falar português assim tão bem! Não pode! Se alguém quer vir pedir abrigo no país, tem que mostrar mais humildade, oras! O chefe da Imigração tinha que mostrar quem estava no poder ali. E a forma mais de contundente de ele exercer o poder sobre os imigrantes era justamente o domínio da língua que ele tinha e eles não.

E é essa relação de poder que eu gostaria de destacar no texto de Bosco Brasil: quem tem o domínio da língua é rei. Uma discussão que se faz bastante atual em tempos de controvérsias sobre certo ou errado, sobre adequado e inadequado no que tange à diversidade lingüística no Brasil. Falar “bem”, falar “correto” conferiria um certo status na visão dos detratores da pluralidade lingüística. Volto a discussão da postagem anterior para mostrar que, da mesma forma que Clausewitz, o falante do português precisa saber falar “bem” para ter seu salvo-conduto, para poder transitar livremente. Na peça/filme, o imigrante teve que convencer a autoridade estabelecida para obter o salvo-conduto:

SEGISMUNDO - Está bem. Ainda temos uns dez minutos antes do seu navio zarpar. Eu já estou atrasado, mesmo. (PARA SI) Tanto faz se eu encontrar um daqueles na rua... (TEMPO) Vamos fazer um trato. O senhor tem esses dez minutos para me fazer chorar.

CLAUSEWITZ - Fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO - Isso. Me conte suas histórias da Guerra. Se eu não chorar no próximos dez minutos por causa das suas lembranças, o senhor embarca no navio. Se eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu.

CLAUSEWITZ - Isto está no regulamento?

SEGISMUNDO - Para o senhor, agora, eu sou o regulamento.

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O senhor chora, eu fico no Brasil?

SEGISMUNDO - Fica.

No Brasil das desigualdades, o falante que não domina o padrão culto do português estará condenado ao porão, sob o dedo inquisitório de algum gramático de plantão. Mais do que o dedo inquisitório... a palmatória mesmo! Ou isso, ou desistir da cidadania. Para se tornar sujeito, o falante terá que se submeter à tortura das regras. Desaprender o português para aprender o Português. Nessa relação de poder, o falante deve deixar para trás tudo o que ele aprendeu sobre a beleza da língua em nome da norma. Minha preocupação é que, ao ser forçado a falar o Português que lhe é exigido, o falante se decepcione com sua própria língua-mãe. Que ele experimente, assim como o personagem Clausewitz, uma decepção profunda com a língua das possibilidades do “x”, ao ter que seguir regras e normas, ao ter que obedecer ordens do poder estabelecido.

CLAUSEWITZ - Eu estou... estou espantado.

SEGISMUNDO - Espantado? Mas o senhor veio da guerra!

CLAUSEWITZ - Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essa coisas pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim o Português era um latim falado por bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa gente tivesse dentes, como poderiam ter perdido tantas consoantes?

SEGISMUNDO - Também arrancávamos os dentes do sujeito, é claro.

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Eu que achava que o Português era uma língua falada pôr gente com dotes de análise e síntese.

O navio apita mais uma vez. Tempo.

CLAUSEWITZ - O que o sujeito fez para o senhor?

SEGISMUNDO - Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me mandavam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a idade. Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas eu servia. Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu sempre fiz tudo o que me mandaram fazer.

CLAUSEWITZ - (IRRITADO) Por que vocês fazem tudo que mandam?

SEGISMUNDO - “Vocês”?...

CLAUSEWITZ - Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram odiar o idioma alemão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha do Fausto.

SEGISMUNDO - Quem? Do que o senhor está falando?

CLAUSEWITZ - De teatro!

SEGISMUNDO - Eu tinha entendido que o senhor agora era um agricultor.

CLAUSEWITZ - Eu sou um agricultor! Mas eu sou um agricultor no Brasil. Eu tenho que falar a língua que se fala aqui! E o senhor está me fazendo odiar o Português!

O navio apita. Segismundo olha o relógio.

SEGISMUNDO - No Brasil nós falamos português...

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Meu professor de latim dizia que o Português era uma língua falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor nunca recebeu uma ordem em Português. Por isso teve essa idéia.

Clausewitz, quando cita o famoso monólogo da peça de Calderón de La Barca, reivindica a liberdade que lhe foi negada, assim como foi negada a Segismundo de A vida é sonho; a mesma liberdade que parece ser negada àqueles que não dominam a variante culta do Português em nosso momento atual. Com seu monólogo, Clausewitz conseguiu arrancar lágrimas de Segismundo, pois este acreditou, naquele momento, tratar-se da experiência de vida do imigrante polonês. E assim ele obteve seu livre-conduto. Acredito que ainda está longe o tempo em que o falante do Português que não optar pelo registro culto conseguirá convencer os donos do poder a lhe darem passagem. Como professor de Língua Portuguesa que sou, no entanto, vou fazendo minha parte. “Não serei o poeta de um mundo caduco”, não estabelecerei essa relação de poder com os alunos ao normatizar que eles só podem se expressar segundo o que reza a Gramática da autoridade, ao desconsiderar os seus falares, os seus regionalismos, as suas experiências. Se me colocarei na mira dos detratores do falar adequado? Acredito que sim. Se essa minha prática pedagógica vai surtir algum efeito? Sinceramente não sei. Não quero provar nada para ninguém. Só quero fazer o que acho mais justo. Quero provar para mim mesmo que posso, ao menos, amenizar essas relações de poder advindas da experiência lingüística. Para isso me formei professor. Assim como Clausewitz – que na verdade não era agricultor, e sim ator – nunca quis provar nada para Segismundo; apenas quis provar para si mesmo que num mundo de violência e guerra ainda era possível exercer seu ofício de ator.

SEGISMUNDO - O que o senhor acha que provou para mim?

CLAUSEWITZ - Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim mesmo. Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu sou ator. Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no mundo depois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer. Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta fazer. Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém precisa saber como se faz esse mingau...

SEGISMUNDO - Saia da minha sala, o senhor, o teatro e o mingau.

Para mim também me basta fazer. Se meus alunos estiverem aptos a se expressar a ponto de conseguir ensinar a alguém como se faz um mingau, para mim já vai estar de bom tamanho. Pouco me importa se a receita do mingau foi passada no registro culto ou não da língua...




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