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6.12.06

“Viver é um direito, não uma obrigação”



Ausente.
Assim estive quase toda esta terça-feira no MSN. Ausente para o mundo. Ausente para os amigos. Ausente como o corpo de Ramón Sampedro.. Daquela abertura da janela, o mundo todo se descortina a Ramón Sampedro. Logo na primeira cena do filme somos colocados no lugar de Ramón, diante dessa janela e dos desejos, sonhos e impossibilidades que surgem. A mesma imagem será recorrente durante todo o filme como uma metáfora: uma fronteira a se transpor para alçar belíssimos vôos em sonhos. Vôos esses aos quais Ramón nos conduz e que são sua única possibilidade de deslocamento. A câmera é o seu olhar, e também o nosso. É um jogo com o dentro e o fora, o colocar-se no lugar do outro e depois ser seu observador. Um embate entre vida e movimento versus morte e paralisia. Um duelo de opostos que nos comove e nos envolve, seja pela sensibilidade no tratamento do tema da eutanásia, seja pela fotografia ou pela trilha sonora, aliás belíssima.
Elogios ao filme Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar, não serão jamais um exagero. É, sem dúvida, o melhor filme a que já assisti nos últimos tempos. E isso por conta de uma conversa com minha amiga Miriam dia desses no MSN que me exortou a ver o filme. A obra recebeu 14 Prêmios Goya, dois prêmios no European Film Awards, um Grande Prêmio do Júri e um Volpi Cup de melhor ator para Javier Bardem, que interpreta Ramón Sampedro. E a lista de premiações não acaba aí: recebeu um Oscar, um Globo de Ouro e um Independet Spirit Award, todos os três na categoria de melhor filme estrangeiro.
Mar adentro conta a história verídica de Ramón Sampedro, um espanhol que ficou tetraplégico após um mergulho, e viveu 29 anos após o acidente sendo cuidado por seus familiares e lutando pelo direito de “morrer dignamente”, como ele mesmo dizia. Seu caso foi levado aos tribunais para conseguir a legalidade da eutanásia, mas o pedido foi negado. Na carta de Ramón destinada aos juízes, aparece a idéia que se repetirá vezes no filme: “viver é um direito, não uma obrigação”. Assim, Ramón coloca em cheque a regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja e acusa “a hipocrisia do Estado laico diante da moral religiosa”.
O debate com a igreja sobre eutanásia aparece no filme na figura de um padre, também tetraplégico, que resolve visitar Ramón. Como a escada para o segundo andar, aonde se encontra o protagonista, é muito estreita, e não permite que passe a cadeira de rodas do padre, os dois comunicam-se via um seminarista, que corre de um lado a outro dando recados com uma expressão nervosa, ansiosa e confusa, como se estivesse a ponto de mergulhar numa profunda crise existencial e religiosa. Até que o padre e Ramón passam a conversar aos berros e sem mediação: de um lado, o padre fala da importância de manter a vida; do outro lado, Ramón denuncia que a Igreja Católica não tem moral para falar de respeito à vida depois da Inquisição.
O personagem de oposição direta ao padre é a advogada Julia, que quer cuidar do caso de Ramón. De um lado, o padre - pelo seu estado físico e representando a Igreja - parece ter legitimidade para tentar dissuadir o protagonista da idéia de eutanásia. Por outro lado, a advogada Julia - portadora de uma doença degenerativa hereditária (Cadasil) que se caracteriza por acidentes vasculares recorrentes que conduzem à invalidez e demência - procura trazer a discussão e a legitimação do caso para o plano racional, individual e não dogmático. Ao mesmo tempo, Julia também é o canal entre o espectador e as poesias, as viagens e toda a vida de Ramón antes do acidente. Juntos eles escrevem um livro, fumam o mesmo cigarro, trocam um beijo, afetos, impossibilidades, desejos, frustrações e a morte como finalidade.
É assim que o filme consegue trazer à tona os vários nós da questão. Momentos de tensão, de debate, momentos de ternura e da impossibilidade do contato físico, a dor da família de Ramón, mas também a do próprio Ramón. Quando finalmente Ramón consegue encontrar, na figura da personagem Rosa (um vizinha do povoado), “alguém que realmente o ame e o ajude a morrer”, ele faz uma espécie de testamento em que deixa clara sua idéia da vida como obrigação, nos levando a refletir sobre as questões de poder que permeiam a vida e a morte: “Senhores Juízes, negar a propriedade privada de nosso próprio ser é a maior das mentiras culturais. Para uma cultura que legitima a propriedade privada das coisas - entre elas, a terra e a água – é uma aberração negar a mais privada de todas, nossa pátria e nosso reino pessoal: nosso corpo, vida e consciência – nosso Universo”.
Ausente, caros leitores. Ausente estive durante quase todo o dia. Ausente e paralisado. Paralisado como Ramón Sampedro. Vislumbrando pela minha janela as muitas possibilidades do "lá fora". Paralisado de medo de mim mesmo. Paralisado pela beleza do filme. Paralisado de inveja de Ramón Sampedro. Paralisado pela minha própria covardia... Quem sabe um dia, quem sabe...




“Mar adentro, mar adentro,
e na leveza do fundo onde se realizam os sonhos
se juntam duas vontades para realizar um desejo.
Teu olhar e meu olhar como um eco, repetindo, sem palavras:
Mais adentro, mais adentro
Até mais, além de tudo, pelo sangue e pelos ossos.
Mas eu acordo sempre e sempre quero estar morto
para continuar com a minha boca enredada em teus cabelos.”
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