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3.3.07

“O diabo na rua, no meio do redemoinho...” Viver é muito perigoso...


“Estou explicando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra os vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe,e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo eu renegava. Muitos momentos."


(João Guimarães Rosa, Grande sertão:veredas)




O que faz desse romance, na minha opinião, o mais fantástico e mais belo de todos os tempos é justamente esse “não querer mais que bem-querer”, esse Deus e o Diabo digladiando no mais recôndito da alma. Além de questionar e refletir sobre seus atos passados, Riobaldo é essa antítese ambulante, esse paradoxo supremo, metáfora máxima do humano: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo...” E suas inquietações são parecidas com as de muitos de nós... com as minhas, pelo menos: a existência ou não do Demônio; a natureza nebulosa das relações entre o Bem e o Mal; o significado do sentimento que experimentou por uma pessoa (“Diadorim era a minha neblina”); o sentido de sua vida como jagunço; a busca de uma explicação para a condição humana...

Apesar de Grande sertão: veredas apresentar uma primorosa reconstituição realista do sertão mineiro e da vida dos jagunços, com passagens verdadeiramente épicas, os tormentos individuais de Riobaldo constituem, no mais das vezes, o questionamento do ser humano onde quer que ele esteja: no sertão de Minas, em Nova Iorque, em Paris, na Sibéria, no raio que o parta enfim. Muitas das interrogações do narrador-personagem não encontram respostas objetivas – a não ser no final do romance, e isso até certo ponto. De maneira que o clima geral da obra é de fascinante ambigüidade. A idéia que norteia a narração de Riobaldo é a fluidez de todas as coisas: “E estou contando não é uma vida de sertanejo, mas a matéria vertente.”

Quando ele afirma que o Diabo existe e não existe, quando diz que gosta de Diadorim e que não gosta, quando louva e repudia a jagunçagem, quando supõe que “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar...”, Riobaldo constrói um universo onde nada é fixo, onde tudo muda e se transforma e onde “as pessoas ainda não foram terminadas”. Não conseguindo entender a totalidade da vida real – pelo menos, a que ele vive e na qual se insere – o protagonista-narrador tenta, de maneira pungente, ordenar o informe, esclarecer o obscuro e colher, nas paisagens hostis e resvaladiças da realidade sertaneja, a essência verdadeira do humano, se é que alguém pode encontrá-la: “A natureza da gente é muito segundas-e-sábado, tem dia e tem noite, versáveis...”

O diabo na rua, no meio do redemoinho, ri e gargalha de nossa condição, de nossos medos, da nossa não-aceitação do que a vida se nos propõe. E quanto mais a gente briga com nossos sentimentos, mais ele zomba de nós. Quem nunca teve seu momento de Riobaldo? Quem nunca se perdeu na neblina de uns olhos? Quem nunca sentiu a angelical presença do diabo nas palavras e gestos sedutores de alguém? Que atire a primeira pedra quem nunca fez seu pacto de morte e vida com o amor!!! Pois o amor, em última instância, nada mais é do que isso: um pacto de morte e vida.... Um eterno recomeçar, um morrer aos pouquinhos para, logo em seguida, renascer...

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Viver - não é - é muito perigoso. Por que ainda não se sabe, porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo".

É sublime o dom da vida e, mesmo quando marcada pela dor dos limites, ela não perde seu valor nem seu sentido e merece ser amada e respeitada simplesmente porque é vida. A vida exige, de cada um de nós, um ato de contínua e inacabada coragem e as razões de viver sustentam essa capacidade de luta, sem a qual a vida perde seu verdadeiro sentido.


Você que me lê (e eu sei que você me lê, não negue), você também era a minha neblina...

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