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7.3.07

A mulher nos reinventando... "Vamos de Deus mesmo"

Eu precisava refazer aquela história, o que significava voltar no tempo séculos e milênios, precipitar-me no redemoinho cósmico que me levaria... Para onde? Merda, eu não sabia, e aquilo estava me levando, e com uma rapidez assombrosa, a um estado de loucura, mas não loucura comum, loucura existencial, coisa muito séria, coisa para filósofo, não para mocinha feia. O que fazer? Vamos de Deus mesmo, pensei, em desespero, e aquilo me deu enorme alívio. (...) Eu ia de Deus. Por que Deus e não Deusa? Por que Jeová e não Astarté, a divindade que os outros povos da região veneravam? Por que barba e não face lisa, com no máximo alguns sinais ou talvez até muitos sinais? Por uma simples e definitiva razão: eu não podia começar o grande livro criando caso, ainda mais com meu patrocinador. Salomão falava em Deus, os velhos falavam em Deus, meu pai falava em Deus. Deus!, bradavam as rochas da montanha. Deus!, gritavam os pássaros, os canoros e os mudos. Deus, portanto. Na minha cabeça, Deus seria apenas a energia geradora, não uma figura antropomórfica a reinar sobre a criação. Que Salomão e outros o imaginassem como homem, a mim não importava.
(...)
“No começo criou Deus o céu e a terra.” Pronto: estava escrito. E, a frase escrita, invadiu-me súbita euforia. Comecei a rir. Ri tanto e tão alto que um dos anciãos – eles estavam na sala ao lado – veio ver o que estava acontecendo. Entrou, sem bater e – merecido castigo – encontrou-me ali, sentada à mesa, cálamo na mão, diante do pergaminho. Consumara-se, aos olhos deles, a abominação: eu estava, mesmo, escrevendo a história que até então pertencera exclusivamente a eles, aos anciãos. Não pôde se conter: soltou um berro de ódio e fugiu correndo.
A mim pouco importava. Tendo dado início à tarefa, eu agora iria em frente. “Deus disse, faça-se a luz, e a luz se fez.” Ótimo, já tínhamos luz – e trevas também, porque não havia luminosidade sem escuridão, sem sombra. (...) Dada a magnitude da tarefa, precisava andar ligeiro. Resumi a criação a seis dias, incluindo um sétimo para repouso, deixando bem claro que naquele caso a pressa não fora inimiga da perfeição. “E viu Deus quanto havia feito, e achou que estava muito bom”. Não quis colocar “ótimo”, ou “excelente”, ou “maravilhoso”, porque afinal mesmo o Todo-Poderoso precisa ser um pouco modesto. Digamos que na escala de zero a dez ele se tenha autoconferido um oito, a imperfeição correndo por conta dos répteis e da feia.
Essa introdução foi fácil. Mas eu previa dificuldades pela frente. Tratava-se da criação do primeiro homem e da primeira mulher. Os anciãos tinham escrito pilhas de pergaminhos a respeito (...). Em termos de homem e mulher, de masculino e feminino, eu simplesmente deixaria o meu instinto falar. Segundo os anciãos, Deus criara o primeiro homem a partir do barro. Eu não tinha nenhuma objeção a essa humilde matéria-prima. Mas por que o homem primeiro, e não a mulher? E por que tinha a mulher sido criada de maneira diferente? A história da costela me parecia tola, para dizer o mínimo, ou talvez até uma afronta, considerando a modéstia dessa peça anatômica.
Decidi corrigir tais equívocos mobilizando para isso as minhas próprias fantasias. Criados, o primeiro homem e a primeira mulher enamoraram-se loucamente um do outro, e aí transformaram o Éden num cenário de arrebatadora paixão. Fodem por toda parte, na grama, na areia, à sombra das árvores, junto dos rios. Fodem sem parar, como se a eternidade precedendo a criação nada mais contivesse que a paixão deles sob forma de energia tremendamente concentrada. O encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang do sexo, muito Big e muito Bang. Todas as posições eram usadas, todas as variantes experimentadas, isso sob o olhar curioso das cabras e dos ornitorrincos e, mais, sob o olhar benévolo de Deus.
Que, na minha versão, não os expulsava do Paraíso; ao contrário, encorajava-os: agora que descobristes o amor, podeis enfrentar a vida como ela é, a vida cheia de som e fúria.

(Moacyr Scliar, A mulher que escreveu a Bíblia.)



Como homenagem ao Dia Internacional da Mulher, quis aqui reproduzir um trecho desse romance do Moacyr Scliar. Uma mulher do nosso tempo submete-se a uma terapia de vidas passadas e descobre que numa encarnação anterior, há três mil anos, foi ela que escreveu a primeira versão da Bíblia. Ela teria sido uma das setecentos esposas de Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. Encantado com essa habilidade inusitada, o soberano a encarrega de escrever a história da humanidade e, em particular, a do povo judeu - tarefa a que uma junta de escribas se dedica há anos sem sucesso. Com uma linguagem que vai do mais elevado e austero discurso bíblico ao palavreado desabusado do mais baixo calão, a anônima redatora conta sua trajetória, desde o tempo em que não passava de uma simples pastora de cabras, filha de um chefe tribal obscuro. Para além de toda sátira e humor irreverente, o que mais chama atenção nesse romance é o profundo humanismo que o percorre do início ao fim. O que vemos - muito mais do que um relato de uma experiência histórica, narrado a partir de um ponto de vista declaradamente feminino, que impõe sua voz, ou seja, seu modo de contar os fatos segundo sua perspectiva - é uma gostosa reescritura da tradição, recontada sob um outro olhar, não restrito a uma elite letrada; sendo, neste caso, privilegiada a postura feminina frente ao discurso (religioso-eurocêntrico, ou seja, do homem branco, cristão e ocidental) que sempre a marginalizou.



“Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe
O Superhomem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher”


(Gilberto Gil)

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