(...)
“No começo criou Deus o céu e a terra.” Pronto: estava escrito. E, a frase escrita, invadiu-me súbita euforia. Comecei a rir. Ri tanto e tão alto que um dos anciãos – eles estavam na sala ao lado – veio ver o que estava acontecendo. Entrou, sem bater e – merecido castigo – encontrou-me ali, sentada à mesa, cálamo na mão, diante do pergaminho. Consumara-se, aos olhos deles, a abominação: eu estava, mesmo, escrevendo a história que até então pertencera exclusivamente a eles, aos anciãos. Não pôde se conter: soltou um berro de ódio e fugiu correndo.
A mim pouco importava. Tendo dado início à tarefa, eu agora iria em frente. “Deus disse, faça-se a luz, e a luz se fez.” Ótimo, já tínhamos luz – e trevas também, porque não havia luminosidade sem escuridão, sem sombra. (...) Dada a magnitude da tarefa, precisava andar ligeiro. Resumi a criação a seis dias, incluindo um sétimo para repouso, deixando bem claro que naquele caso a pressa não fora inimiga da perfeição. “E viu Deus quanto havia feito, e achou que estava muito bom”. Não quis colocar “ótimo”, ou “excelente”, ou “maravilhoso”, porque afinal mesmo o Todo-Poderoso precisa ser um pouco modesto. Digamos que na escala de zero a dez ele se tenha autoconferido um oito, a imperfeição correndo por conta dos répteis e da feia.
Essa introdução foi fácil. Mas eu previa dificuldades pela frente. Tratava-se da criação do primeiro homem e da primeira mulher. Os anciãos tinham escrito pilhas de pergaminhos a respeito (...). Em termos de homem e mulher, de masculino e feminino, eu simplesmente deixaria o meu instinto falar. Segundo os anciãos, Deus criara o primeiro homem a partir do barro. Eu não tinha nenhuma objeção a essa humilde matéria-prima. Mas por que o homem primeiro, e não a mulher? E por que tinha a mulher sido criada de maneira diferente? A história da costela me parecia tola, para dizer o mínimo, ou talvez até uma afronta, considerando a modéstia dessa peça anatômica.
Decidi corrigir tais equívocos mobilizando para isso as minhas próprias fantasias. Criados, o primeiro homem e a primeira mulher enamoraram-se loucamente um do outro, e aí transformaram o Éden num cenário de arrebatadora paixão. Fodem por toda parte, na grama, na areia, à sombra das árvores, junto dos rios. Fodem sem parar, como se a eternidade precedendo a criação nada mais contivesse que a paixão deles sob forma de energia tremendamente concentrada. O encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang do sexo, muito Big e muito Bang. Todas as posições eram usadas, todas as variantes experimentadas, isso sob o olhar curioso das cabras e dos ornitorrincos e, mais, sob o olhar benévolo de Deus.
Que, na minha versão, não os expulsava do Paraíso; ao contrário, encorajava-os: agora que descobristes o amor, podeis enfrentar a vida como ela é, a vida cheia de som e fúria.
(Moacyr Scliar, A mulher que escreveu a Bíblia.)
Como homenagem ao Dia Internacional da Mulher, quis aqui reproduzir um trecho desse romance do Moacyr Scliar. Uma mulher do nosso tempo submete-se a uma terapia de vidas passadas e descobre que numa encarnação anterior, há três mil anos, foi ela que escreveu a primeira versão da Bíblia. Ela teria sido uma das setecentos esposas de Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. Encantado com essa habilidade inusitada, o soberano a encarrega de escrever a história da humanidade e, em particular, a do povo judeu - tarefa a que uma junta de escribas se dedica há anos sem sucesso. Com uma linguagem que vai do mais elevado e austero discurso bíblico ao palavreado desabusado do mais baixo calão, a anônima redatora conta sua trajetória, desde o tempo em que não passava de uma simples pastora de cabras, filha de um chefe tribal obscuro. Para além de toda sátira e humor irreverente, o que mais chama atenção nesse romance é o profundo humanismo que o percorre do início ao fim. O que vemos - muito mais do que um relato de uma experiência histórica, narrado a partir de um ponto de vista declaradamente feminino, que impõe sua voz, ou seja, seu modo de contar os fatos segundo sua perspectiva - é uma gostosa reescritura da tradição, recontada sob um outro olhar, não restrito a uma elite letrada; sendo, neste caso, privilegiada a postura feminina frente ao discurso (religioso-eurocêntrico, ou seja, do homem branco, cristão e ocidental) que sempre a marginalizou.
“Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O Superhomem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher”
(Gilberto Gil)