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4.12.06

Sobre Chico, sobre Inteligência e sobre cabeças cortadas




A propósito de Holofernes e cabeças cortadas (eita que esse temazinho está recorrente aqui, hein!), acordei hoje com músicas do Chico a me bombardear a memória auditiva.

Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo

Pois é... É isso aí, justamente isso aí. Quero perder sua cabeça ou minha cabeça perder seu juízo. Uma Judith que me salve, please!... E sabe por quê? Porque me dei conta da sua burrice. Quero amar (e ser amado, obviamente) alguém à altura da minha inteligência. Chega de amores burros!!! Alguém que nem ao menos sabe se ler não irá nunca conseguir me ler. Alguém que confunde inteligência com a mediocridade imbecilizante e imbecilizada da juventude e seus deslumbramentos... oh, céus! Mas cada um tem o que merece ou, pior, o que lhe é permitido entender. Eu sou muito melhor. E eu sei disso. E isso me basta. Não está entendendo não, meu bem? Mas isso não me surpreende. Você é de uma burrice atroz. Não entende nada, nunca entendeu nada. E eu sempre fui meio grego pra você mesmo... hehehe... E o Chico continua a ribombar na minha cabeça:

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões

Vai. Fuja sim. Vai aprofundar a sua tolice e ignorância em braços desprovidos de inteligência e estofo. No fundo sei que minha intelectualidade sempre te assustou. Você mesmo disse uma vez que minhas complexas explicações te davam nos nervos. Fazer o quê? Não vou disfarçar minha inteligência para compensar e satisfazer a sua burrice... ah, isso é que não. Se você quer a superficialidade das coisas, que faça bom proveito. Realmente você não me merece. Eu sou muito pra você. E quando eu olho assim pra você e vejo a burrice estampada nas suas palavras e nas suas expectativas, me dá uma pena danada. Me dá vontade de não te ver. E o Chico continua a me falar:

Vou correndo, vou-me embora
Faço um bota-fora
Pega um lenço agita e chora
Cumpre o seu dever
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara, cara a cara
Com o que não quer ver

E eu não quero ver a mediocridade que você se tornou. Sim, mereço mais, muito mais. Amores burros nunca mais!!! Que essa história de olhos bonitos, olhar sedutor, corpinho bonito e o cacete a quatro, tudo isso pode ser bom pra você: pra mim não é não. Eu preciso de mais. Eu quero muito mais. E dá-lhe mais Chico:

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais

Liga não, meu bem. A culpa nem foi tão sua. Eu é que me perdi em meio as suas doces palavras e não vi o tamanho da sua pequenez. Você vê beleza e inteligência onde não há, e espera que eu veja alguma beleza e inteligência em você? Ai, pobre alma perdida e burra! Eu vou é cantar mais Chico pra você:

Apesar de você
amanhã há de ser
outro dia

~~~~~~~~~~

Tinha cá pra mim
Que agora sim
Eu vivia enfim o grande amor
Mentira
(...)
Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor



Beijos inteligentes e cultos pra você, criatura pobre de espírito!

De Judiths e Liliths, luas negras, eine andere femme fatale... tudo nome de guerra... valei-me, seu Almada! - Parte II


Explicando o post anterior... porque professor sou, e essa majestade ao menos não me fizeram perder ainda...


(Judith Beheading Holofernes - Caravaggio)


As leituras que são feitas do romance Nome de guerra, de Almada Negreiros, voltam-se sobretudo para o personagem Antunes e para questões que lhes são pertinentes, como a conquista da autonomia pessoal em confronto com a sociedade e a questão da relação amorosa e seus desdobramentos; ou também a situação do romance no estilo literário em questão, a saber: o Neo-realismo, a ficção dos presencistas e as questões de identidade/diferença em relação aos seus contemporâneos.
Mesmo que não negando essas questões, por que não deslocar a leitura e centralizar em Judite (o personagem feminino) o nosso olhar? E, com esse deslocamento, procurar o avesso do nome de guerra, Judite? Quem se esconde por trás dele? Que fantasmas da sociedade portuguesa e ocidental estão ocultos no avesso do nome?
O que Almada Negreiros faz em Nome de guerra é brincar com nomes, brincar no nome, nomear - hábito de quem lida com o hermetismo, o secreto - porque o nome traz, quando não o lírico, o drama do nome, o épico do nome, o mito do nome ou o nome que se quer. Nessa leitura de Almada vou procurar saber, no dizer do nome, o desconhecido; no avesso do nome, o provável.
Nome de guerra. O título destaca Judite, ou melhor, o avesso. Daí não centralizarmos em Antunes a nossa leitura. Por que razão Almada teria destacado logo no título a personagem e o seu avesso? Que fantasmas, que mitos perpassavam o seu tempo e escrita?
Uma Judite que não se chama assim. “Era uma vez uma rapariga chamada Judite. Mas o seu nome verdadeiro não era Judite. Só às vezes, em ocasiões muito íntimas, é que ela esteve quase para dizer tudo:
- Eu não me chamo Judite. Mas não digas nada a ninguém. O meu nome verdadeiro é...
E calou-se.
Judite é um nome a quem a Bíblia faz cortar a cabeça de Holofernes.”
E é o narrador quem primeiro nos dá indicação dos possíveis conteúdos míticos de um nome ou nomes que se ocultam atrás do Nome de guerra. A Judite bíblica venceu para os habitantes de Betúlia uma guerra que se travou apenas no acampamento de Holofernes, o qual fora enviado por Nabucodonosor, rei dos assírios, para castigar aqueles países do ocidente que se recusaram a tomar parte na sua campanha contra Medéia. Segundo o Livro de Judite, o sumo sacerdote de Betúlia (cidade próxima a Jerusalém) manda os habitantes ocuparem os desfiladeiros, enquanto Aquior chamava a atenção de Holofernes sobre a proteção divina de que gozavam os judeus, ouvindo em contrapartida a réplica de Holofernes que se gabava da divindade de Nabucodosor. Aquior é expulso do acampamento assírio e os habitantes de Betúlia, cercados e com suas provisões de água bloqueadas, entram em desespero. Ozias, o governante da cidade, decide que, depois de cinco dias, se não houver nenhuma intervenção divina, vai se render e entregar a cidade a Holofernes. Neste momento intervém Judite, sugerindo que, ao invés da rendição, ela vá ao encontro de Holofernes, a quem oferecerá seus préstimos. Depois de muitas orações, Judite vai ao encontro do general e se apresenta como sua cúmplice. Elogiada e aceita, Judite fica no acampamento, degolando o general no quarto dia, quando ele se encontrava embriagado pelo vinho. Na manhã do quinto dia, os habitantes de Betúlia atacam, encorajados pelo feito de Judite, e vencem os inimigos. Judite então é levada em triunfo pelo sumo sacerdote a Jerusalém, onde é homenageada, testemunhando até idade avançada a tranqüilidade dos habitantes de Betúlia. A relação entre as Judite é distante, as semelhantes são poucas, mas não devem ser desprezadas. Ambas se relacionam com um momento de passagem, com a resolução de um conflito, e se unem pelo laço de guerras distintas. A travada por Judite, a judia, termina com a morte do amante e trava-se apenas como tentativa de retorno a uma normalidade quebrada. Judite, a portuguesa, a prostituta, usa os seus dotes em outra guerra, que trava com a vida e com os homens, lutando pela própria sobrevivência, sem nenhum outro mérito a não ser o de fazer Antunes defrontar-se com a sua própria realidade, encontrando o seu momento de fuga da realidade para depois deixá-la, dando continuidade às sucessivas perdas de Judite, testemunhas das diferenças sociais, do conservadorismo português e da impotência feminina numa sociedade governada pelos homens. A morte, nesse romance, também assinala um momento de ruptura, mas trata-se da morte de outra mulher, Maria; porque sempre foi em suas atitudes o oposto de Judite, alienando-se da guerra. Uma Judite que não é a outra, mas que vai nos permitir essa outra leitura do texto de Almada Negreiros: mulheres que se compõem aos poucos num conflito entre os sexos.
“Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E aconteceu-nos antes ainda de termos nascido. É a árvore genealógica. Nós somos hoje o último fruto dessa árvore secular, secularmente secular! O fruto! Mas, por mais genuíno que seja o fruto da sua árvore, esta nasce tão incomparavelmente anterior à Bíblia, e é talvez, em tão remotas origens que devemos procurar o nome que se esconde sob o nome de guerra.”
E é isso o que o romance nos pede em várias passagens: que retornemos. Um retorno à criação, num percurso que nos mostre alguns porquês: o do título Nome de guerra, o do nome Judite, o primeiro nome de Antunes, Luís, cujo significado grego é "famoso na guerra", e os sentidos de alguns conflitos.
“A árvore genealógica não funciona como ciência. É mesmo o contrário de ciência: mistério! Um mistério que se espelha só em cada um de nós! Um verdadeiro mistério humano, que ultrapassa a sociedade e a ciência, que respira ar de Arte e Religião!”
E são esses ares que devem ser inspirados pelo arqueólogo que busca a genealogia de Judite.
“A história verídica é a única que vale e pode-se contar: o primeiro homem que elas conheceram era um pulha! E cada uma teve o seu para virem juntar-se todas ali na sala de distracções, dos estranhos e do esquecimento...” Homens, mulheres, esquecimentos, o primeiro pulha... Adão. Antunes. Judite. Mulher e narrativa que nos aponta para o nome Lilith.
“Não vem tudo isto de longe, de tão longe que a memória viva não atinge, mas que apesar disso vem dirigindo-se para cada um de nós através de séculos, desencontrados, de altos e baixos, como se quis ou como pôde ser?”
Lilith também foi relegada ao esquecimento. A primeira companheira de Adão foi perdida ou removida durante a transposição da versão jeovística para a sacerdotal, e quase desaparece sem deixar vestígios na versão da Bíblia redigida pelos Papas da Igreja. De uma certa maneira, Judite é Lilith, como transfiguração do mito, ou espaço projetivo do mito; permanência que se desdobra em outras Judites, constelação de Circes, Cibeles, Reas, Maias, Dianas, Isís, Ceres, Anus, Deméteres, Ishtares, Perséfones, Hécates, Eumênides, Empusas, Lâmias, Équidinas, Erínies, Amazonas, Sereias...
A árvore genealógica de Judite nos leva a Lilith, a Lua Negra, a primeira mulher de Adão. A Judite de Antunes tem características tais que nos permite a aproximação com as representações do mito. O romance de Almada negreiros nos aponta esse caminho. A primeira companheira de Adão foi Lilith, concebida sem a costela, como no caso de Eva; mas, segundo a tradição, cheia de sangue e saliva, instigando em Adão uma insustentável perturbação que o levou a rejeitá-la. O sangue de Lilith é o sangue mestrual, metáfora alegórica para fazer perceber o caráter carnal, fisiológico, vital, instintivo da mulher. A saliva associa-se à secreção erótica. Lilith é então apontada não como mulher, mas como demônio, desde o início da relação com Adão. Lilith, como nos diz Roberto Sicuteri em seu trabalho Lilith: a lua negra, "entra no mito já como demônio, uma figura de saliva e sangue, um verdadeiro espírito deixado em estado informe por Deus; é uma companheira que apresenta fortes traços de fatalidade". O mito de Lilith, representando certamente o arquétipo da relação homem-mulher, pode ser o início da árvore genealógica que facilitaria assim a compreensão da relação Judite-Antunes e o nome que se oculta sob o nome de guerra:"o que nos guia não é o interesse teológico, mas o psicológico, pela redescoberta da lenda de Lilith, para agregá-la, como energia psíquica formadora do mito e do arquétipo, ao núcleo concernente à história da relação entre Anima e Animus e para entender as origens endopsíquicas da cisão entre 'instinto' e 'pensamento', para esclarecer finalmente o grande equívoco do primado masculino sobre a mulher sentida como inferior" (Roberto Sicuteri, Lilith: a lua negra).
A partir dessas palavras de Sicuteri, podemos compreender a relação Judite-Antunes e entendermos melhor a condição da mulher na sociedade portuguesa, mas sem esquecer que o modelo português repete-se em inúmeras outras sociedades. Enquanto a Lua Negra é descrita de forma negativa, Eva, ao contrário, é apresentada em suas belezas e ornamentos. Adão não a recusa por vê-la como ossos dos seus ossos. Já Judite seria, para Antunes, o "conhecimento carnal", a transgressão à Lei; Maria a aceitação da imagem boa, mais agradável ao Pai e à Lei. Se bem que o vivido com Lilith também é vivido com Eva. Lilith desobedece à supremacia de Adão, Eva iria desobedecer à proibição.
“A sua ligação com a Judite tinha sido uma compensação, uma desforra, um contrabalanço... de quê? A sua vida esteve toda inclinada para o lado oposto ao da Judite. Para onde? Houve um desequilíbrio para responder a outro desequilíbrio, necessário para pôr o fiel a zero, como um pêndulo vai obrigatoriamente de um a outro lado da vertical a distâncias iguais, para cumprir a semetria, a gravidade e a oscilação. O desequilíbrio era para os dois lados: a Maria e a Judite eram ambas ainda o mesmo erro!”
Deus escreve por linhas tortas. Cria Adão, Eva e a serpente. A árvore e o fruto. Deus nos permite ler de trás para frente os mitos. Esse Antunes-Adão rejeita inicialmente a primeira criação do tio-pai (o personagem tio Alves, que o leva ao meretrício e apresenta Judite a Luís Antunes) e inicia-se o conflito com Judite. “Ele tinha cometido a mais grave ofensa que pode ser feita à mulher: tinha sido indiferente para com a sua nudez!” Projeta-se a rejeição de Adão, Judite é vista como indiferença. Lilith e Eva se confundem por analogia: “Entre ele e a mulher nua a sua educação punha uma distância que não era destruída pelo desejo da carne”... até que mordesse a maçã.
Mas Antunes sente-se como o seu ancestral bíblico: “decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira”; "mas não se achava para Adão um adjutório semelhante a ele" (Gênesis, II, 20). Ou seja, Antunes não tinha encontrado em Maria sua igual, conheceria "Judith", a mulher da noite, antes que estivesse pronto para outra companheira... nem a primeira nem a segunda, nem a primeira nem a segunda.
Se Judite é projeção do mito de Lilith, abro aqui um parêntese para algumas observações sob a condição de inferioridade da mulher na sociedade portuguesa descrita por Almada Negreiros. As mulheres são lançadas na prostituição por uma rejeição de um "desgraçador" que as desvirginam e as abandonam depois da sedução. Poucas conseguem encontrar um homem que as aceitem por não terem sido "o primeiro", e todo um capítulo do romance é dedicado ao tema do "desgraçador". Antunes não agirá de maneira diferente, pois o conflito de sua educação é a base para deixar Judite, para não se permitir amá-la verdadeiramente, assim como o eterno conflito e os inúmeros "nãos" ancestrais não permitiram também a Judite entregar-se totalmente a Antunes. "Judith" serve como um veículo de passagem, de aprendizagem e, posteriormente, descartável.

(Trabalho apresentado para a disciplina Literatura Portuguesa II, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Novembro de 1989)


Pois é, caros leitores, houve um tempo em que eu era um ser pensante... Creiam-me! Nesse trabalhinho aí obtive a nota máxima... Oh Glória!
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