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6.1.11

Ano novo, vida nova... Será mesmo?


(Autoria da foto: Edmilson Borret - 31/12/2010)


Não querendo ser chato, mas já sendo... alguém já parou pra pensar no seu real sentido dessa frasezinha tão clichê? Eu diria que ela reflete uma atitude nada incentivadora, uma visão nada heróica (ou estóica, como queiram) da vida, visão essa inventada e disseminada por algum sujeito insatisfeito com o que foi sua vidinha no ano que passou.

Por que será que todo ano falamos a mesma porra? Que no próximo ano a vida recomeçará, que tudo será diferente, que isso e aquilo e blá blá blá... Por que insistimos em repetir o maldito slogan “Ano novo, vida nova”? Parece piada, né? Mas é como se nossas vidas fossem regidas por cronômetros de 12 meses, que serão zerados ao final de dezembro. Coloca-se janeiro como o mês oficial das mudanças, da renovação e de todas as esperanças... But, what a surprise!!!...continuamos todos, absolutamente todos, com a mesma vidinha que, por conta de nossos desejos insanos e ilógicos, deveria ter acabado no ano anterior.

Mas o fato é que não existe nem uma, nem umazinha razão cientificamente lógica para toda essa pré-disposição emocional que move os corações e mentes dessas pessoas. Porque, se assim o fosse, toda a civilização estaria embarcando nesse espírito de renovação. Mas sabemos que isso só acontece aqui no Ocidente. O restante do mundo não está nem aí para a queima de fogos na Time Square, na Avenida Paulista ou em Copacabana. Esse fato, na verdade, só mexe com a sociedade ocidental de matriz cristã (Américas, Europa, partes da Oceania, etc.). Outras regiões do mundo, apesar de toda a globalização, apesar de toda a influência da colonização anglo-ibérica, possuem diferentes matrizes de contagem do tempo, levando-as a terem comemorações distintas da nossa. Enfim, enquanto estamos entre Natal e Ano Novo, outras regiões estão nos seus dias mais ordinários. Ou seja: nenhuma mudança astral ou exotérica ocorre no mundo por conta da mudança no calendário. Nenhuma lua, nenhum sol, nenhuma estrela no céu vai fazer a vida de ninguém tomar um novo rumo a partir de 1º de janeiro...

Assim, entre dezembro e janeiro, todos os anos no Ocidente, comemora-se o Natal, festa do nascimento de Jesus Cristo (ponto de partida da contagem dos anos), e o Ano Novo: início de mais um ciclo em nosso calendário, contado a partir de 1º de janeiro. Mas é só isso, gente: início de mais um ciclo no calendário... nada a mais que isso!!! O calendário cristão é solar, tem 365 dias (ou 366) ou doze meses. Seguimos o calendário gregoriano, usado desde o século XVI, mas há também o calendário Juliano (usado na Igreja Ortodoxa).

Já no judaísmo, por exemplo, o primeiro mês do calendário chama-se Nissan (equivale, no calendário gregoriano, a 30 dias entre março e abril), mas o Ano Novo judaico começa em Tirshei (entre setembro e outubro). Os judeus iniciaram a contagem do seu calendário em 7 de outubro do ano 3760 a.C que, segundo eles, é o dia da Criação do mundo. Portando, eles estão no ano 5770. Caraca! Os caras estão adiantados pra cacete!!!!! rsrs

No islamismo, por outro lado, seu calendário (que é lunar) começa com a Hégira, a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 622 d.C. O ano começa no 1º de MuHarram. Como existem diferenças de dias entre os anos lunares e solares, as datas de início do ano islâmico, com relação ao calendário gregoriano, sofrem diversas mudanças. Em 2010, o 1º MuHarram foi em 7 de dezembro. Já em 2011, será em 26 de novembro. O calendário chinês, curiosamente, é lunissolar: tem 354 dias. Mas, a cada oito anos, são acrescentados mais 90 dias ao ano, para que haja sincronia entre o ano solar e o lunar. Enquanto estamos em 2011, os chineses já estão no ano 4708. Outro povo que está disparado na nossa frente... rsrs

O Japão usava um calendário lunissolar, mas, a partir de desdobramentos da Revolução Meiji, em 1873, resolveu adotar o calendário gregoriano também. O calendário hindu, apesar de coincidir com o gregoriano na contagem de dias e de anos bissextos, é contado a partir de 79 d.C. No entanto, na Índia, há uma enorme confusão, pois existem mais de 30 calendários regionais.

Ou seja... o ano que se inicia pode até ser novo para a ocidentalidade, verdade! Mas nossa vida é a mesma! O mundo, como um todo, é o mesmo! Ou alguém duvida que na primeira segunda-feira, logo após o período festivo, voltemos todos para nossas mesmas rotinas, nossos mesmos escritórios, nossos mesmos empregos? O fato é que continuamos com o mesmo carro, a mesma casa (ou o mesmo lote sob o viaduto), os mesmos amigos. Mantemos as mesmas manias, a mesma personalidade, os mesmos problemas... Só ficamos mais velhos, aliás como toda a humanidade. Então só me cabe perguntar: onde, cacete, está a tal da vida nova????

Mas vejam bem... Não é que eu seja contra o fato de as pessoas terem esperanças. Pelo contrário, acho até louvável. Esperança traz o sonho de um futuro melhor, dá forças para seguir em frente. Isso é fato! O que coloco em xeque não é a presença dela, mas sua ausência. A esperança não deveria ser incensada somente à meia-noite do dia 31 de dezembro, e sim nos acompanhar em todos os dias do ano. Sou a favor das mudanças. Acho que elas são necessárias sempre quando algo não está no seu devido lugar, mas elas não devem, necessariamente, ocorrer após os fogos de Copacabana ou depois que as sete ondas passarem sob nossos pés. E sim quando as oportunidades surgirem, seja em janeiro, em março, em agosto ou em novembro.

Tenham esperanças! Efetuem mudanças em suas vidas sempre que acharem necessário! Mantenham seus sonhos; nunca se desfaçam deles! Mas façam isso sempre que puder. O dia primeiro do ano é só mais um dia após o outro. Janeiro é só mais um mês. Nossa vida é um ciclo de atos nossos... não de anos, não de meses. Pois, como já disse Drummond... Para ganhar um Ano Novo / que mereça este nome, / você, meu caro, tem de merecê-lo...”



RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

1.10.10

Sobre homens e corações (reload)

(Título da foto: "Maior idade..." - Autoria: Edmilson Borret - 27/09/2009)



"Eu tenho um coração maior que o mundo
tu, formosa Marília, bem o sabes;

um coração, e basta,

onde tu mesma cabes"


(Tomás Antônio Gonzaga)





Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele estale.


(...)

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que homens se comunicam.)


(Carlos Drummond de Andrade)




Grandezas & Misérias

Nada foi dito.
Pensa-se muito
mas nada é dito.
E teu futuro não espelha
grandeza nenhuma.
No meu coração
sei que a fábula é única.
O tempo passa
a história o enfrenta.
No fundo do meu coração
percebo a miséria de se estar.
No meu coração sei que nada foi dito.
No meu coração - e eu o tenho.

Tu bem sabes, Marília -
eu quase tenho um coração
maior que o mundo.

(Edmilson BORRET)

14.2.07

Sobre homens e corações



"Eu tenho um coração maior que o mundo
tu, formosa Marília, bem o sabes;

um coração, e basta,

onde tu mesma cabes"


(Tomás Antônio Gonzaga)




Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele estale.


(...)

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que homens se comunicam.)


(Carlos Drummond de Andrade)



GRANDEZAS & MISÉRIAS

Nada foi dito.
Pensa-se muito
mas nada é dito.
E teu futuro não espelha
grandeza nenhuma.
No meu coração
sei que a fábula é única.
O tempo passa
a história o enfrenta.
No fundo do meu coração
percebo a miséria de se estar.
No meu coração sei que nada foi dito.
No meu coração - e eu o tenho.
Tu bem sabes, Marília -
eu quase tenho um coração
maior que o mundo.

(Edmilson BORRET)

30.12.06

Feliz Ano Velho !!!!



Dias Melhores


Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz, dias a mais
Dias que não deixaremos para trás

Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no amor, melhores na dor

Melhores em tudo

Vivemos esperando
O dia em que seremos para sempre
Vivemos esperando
Dias melhores para sempre

(Rogério Flausino)





RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

(Carlos Drummond de Andrade)

1.12.06

Memórias...


Segundo dizem, a memória é a capacidade de reter, recuperar, armazenar e evocar informações disponíveis; seja internamente, na cachola (memória humana), seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial).
A memória humana focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia mental e vai se deteriorando com porra da idade (tipo assim como eu, que ando esquecendo até o que disse no post anterior, saca?). A gente tá sempre juntando pedaços de memória e conhecimentos a fim de gerar novas idéias, ajudando a tomar decisões do dia-a-dia.
Os psicólogos e neurologistas distinguem uma tal de memória declarativa de uma outra chamada memória não-declarativa,ou memória procedural (Não se espantem, caros leitores, com todo esse meu conhecimento de causa! Li essa merda num site aí qualquer...). Grosso modo, a memória declarativa armazena o saber que algo se deu, e a memória não-declarativa o como isto se deu.
Ou seja, filósofos, psicólogos, sociólogos e antropólogos tendem a ocupar-se da memória declarativa, enquanto neurobiólogos tendem a se ocupar da memória procedural.
E os putos-vampiros dos psicólogos ainda distinguem dois tipos de memória declarativa, a memória episódica e a memória semântica. Fariam parte da memória episódica as lembranças de acontecimentos específicos; e da memória semântica, as lembranças de aspectos gerais.
Resumindo a porra toda, memória, segundo diversos estudiosos, é a base do conhecimento. E como tal, deve ser trabalhada e estimulada. É através dela que damos significado ao cotidiano e acumulamos experiências para utilizar durante a vida. Bom, esclerosados como eu estão fudidos então, né? Bem que eu suspeitava que meu cotidiano anda sem muito significado ultimamente... Mas, na boa, esse papo de experiência acumulada sempre me pareceu meio furado também. É como aquela história que diz que experiência é um carro no qual só funcionam os faróis traseiros. Ou seja, se tiver um lamaçal mais à frente, vai atolar mesmo... Hehehehe
Mas já que de memórias estamos falando, e antes que eu esqueça o que vim postar aqui hoje, peço-lhes, caros leitores, que não atentem tanto para certas lembranças e memórias. Algumas delas, às vezes, podem desenterrar monstros que a gente achava para sempre confinados e acorrentados lá naquele quarto escuro... E aí, se a porta se abre por descuido, só há uma solução: Run, Forrest, run!!!!!




Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

(Carlos Drummond de Andrade)








JANEIRO/88

me recordo
do vôo das gaivotas
o sol queimando
o vento batendo
um sorriso coberto
de preguiça e areia
ai que saudades tenho!

(Edmilson BORRET)




Memória da Pele


Eu já esqueci você, tento crer
Seu nome, sua cara,
seu jeito, seu odor
Sua casa, sua cama,
sua carne, seu suor
Eu pertenço à raça da pedra dura
Quando enfim juro que esqueci
Quem se lembra de você em mim,
em mim
Não sou eu, sofro e sei
Não sou eu, finjo que não sei,
não sou eu
Sonho bocas que murmuram
Tranço em pernas que procuram, enfim...
Não sou eu, sofro e sei
Quem se lembra de você em mim,
eu sei, eu sei...

Bate é na memória da minha pele
Bate é no sangue que bombeia na minha veia
Bate é no sangue que borbulhava na sua taça
E que borbulha agora na taça da minha cabeça

Eu já esqueci você, tento crer
Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer
Sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão
Cor vermelha, carne da sua boca,
coração

(João Bosco / Wally Salomão)





Eu falei que era pra deixar a porra desse bicho quieto lá no quarto escuro... Vocês não me ouvem, caramba... Olha aí o resultado... Run, Forrest, run!!!!



"Haja hoje para tanto ontem"
(Paulo Leminski)

28.11.06

Começou a circular o Expresso 2222...

... que parte direto de Bonsucesso pra depois.


Pra depois de tudo e depois de nada. Pra depois de Gil, depois de mim e depois de você. Nesse trem não há parada, é louca descida declive abaixo, pra dentro do abismo que se fundou da partida à chegada. Os poucos trôpegos e temerários passageiros que ainda restam – uns atiraram-se há pouco das janelas, outros mais sensatos nem embarcaram – tentam manobras tontas e cansadas. As mãos já sangram pelos vidros quebrados in case of emmergency. Freios não tem mais a locomotiva. Engodo foi para sangrar mãos e braços e pernas e coração. Todas as cabines escancaram-se. Todas as valises vieram abaixo. Segredos se espalharam pelo chão do vagão. E lá ficaram em meio aos estilhaços de copos e restos de comidas e cubos de gelos da última bebida exótica de um longínquo país dos trópicos. SOS lançados na vastidão da noite gélida desaparecem e não fazem mais sentido. Nada mais faz sentido nessa viagem. A plataforma de embarque lá atrás ficou, num 26 de abril qualquer. Viagem longa, tormentosa, tortuosa, claustrofóbica – com raros momentos de calmaria, e tantos outros de turbulência ante o descarrilamento inevitável na curva não menos evitável. Que soem todos os apitos na noite. O abismo está mais à frente. Descerrem-se as cortinas às janelas da alma para que não se veja o impacto final. Basta senti-lo. Na imensidão branca dessas terras estrangeiras, arremete o 2222 para seu destino inesperado e escama o gelo dos trilhos. Povoam a cabeça do incauto passageiro das terras quentes canções de Gil e poemas de sua gente: lá de Minas lhe vêm versos terminais e últimos. Como terminal e última é essa viagem da qual muito pouco restará, senão destroços no fundo abissal. Ainda assim os versos lhe chegam aos ouvidos e ele chora de saudade de sua língua....


RESÍDUO

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

(Carlos Drummond de Andrade)
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