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4.5.07

Traduzir-se

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,
que já têm a forma do nosso corpo,

e esquecer os nossos caminhos, que levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia... e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
(Fernando Pessoa)



Escrever é traduzir-se... é transcender. O ato de traduzir-me e retraduzir-me é o que me conduz aos meus muitos acessos... e excessos...

Talvez num futuro distante algum filólogo venha a se debruçar sobre meus papéis e, numa tentativa de exegese, consiga juntar minha língua de partida à minha língua de chegada e de mim faça algum sentido. Aí então, caros leitores, vou me juntar a vocês num café de uma livraria, de um cine-clube qualquer e vou finalmente me ler... Que já será tempo de algum entendimento, meu Deus! Porque neste exato momento, meus caros, sou travessia das mais arriscadas (quase o pessach hebraico, no sentido primeiro e real do termo). E a outra margem ainda vai longe... E como desencarnado provavelmente já estarei no tempo do entendimento, me será até mais confortável e poderão mesmo reclamar para mim alguma isenção de culpa, já que "traduttori tradittori".

Enquanto isso, eu busco traduzir-me.



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

(Traduzir-se. Ferreira Gullar)



"Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia."
(Guimarães Rosa)
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