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19.6.11

Novas diretrizes quando a vida é sonho ou As relações de poder na língua


Assisti hoje, pela quarta ou quinta vez, ao excelente filme Tempos de Paz, baseado na peça Novas diretrizes em tempos de paz, de Bosco Brasil. E devo dizer que, a cada vez que assisto a esse filme, choro copiosamente. Mas é de um choro que ainda não sei explicar: é franco, mas não é triste... tampouco é alegre. É choro, simplesmente. Não assisti à encenação do texto do Bosco nos palcos. Só conheço essa versão para o cinema. Direção ótima do Daniel Filho, que, aliás, está incrível também como ator no filme, apesar das poucas cenas. Interpretações impagáveis de Tony Ramos e Dan Stulbach, como Segismundo e Clausewitz, respectivamente: um embate de talentos poucas vezes visto no cinema brasileiro, em quase 70 minutos de diálogos entre os dois somente... Há que se ter fôlego!

Não vou nem falar do monólogo do personagem Clausewitz, porque essa cena talvez seja a mais comentada do filme. Já é umas das cenas antológicas do cinema nacional! Monólogo retirado da peça A vida é sonho, do espanhol Calderón de La Barca. Não à toa, o personagem da peça do espanhol se chama Segismundo também. Se, na peça de Bosco Brasil, Segismundo é um ex-torturador da ditadura de Vargas agora responsável-chefe pela Imigração e pela autorização da entrada de europeus no Brasil do pós-guerra; em A vida é sonho, o personagem é o filho renegado de Basílio, rei da Polônia que ao nascer é trancado em uma torre. Seu único contato com o mundo externo é Clotaldo, seu guardião e fiel servo de seu pai. O Segismundo brasileiro é algoz: prendia e torturava; o espanhol é vítima: sofria a violência da prisão e a tortura de nem sequer ver a luz do sol.

Mas é curioso como Bosco Brasil mantém algo do Segismundo espanhol no brasileiro: este também, embora não estando preso numa caverna, vive num mundo de sombras. Sombras de um passado que o atormenta e do qual ele tenta se libertar. Segundo Platão, o homem vive em um mundo de sonhos, de escuridão, cativo em uma caverna da qual só poderá se libertar ao tender para o bem: somente desse modo, o homem deixará a matéria e fará a ascese até a luz. A influência da concepção platônica na obra de Calderón é evidente já mesmo no título. O personagem Segismundo vive, no princípio, dentro de um cárcere, numa caverna, na qual permanece na mais completa escuridão pelo desconhecimento de si mesmo, e somente quando é capaz de ter conhecimento de quem realmente é, alcança o triunfo da luz. Aos poucos, Clausewitz vai efetuando essa mesma transformação em nosso Segismundo brasileiro. E a transformação se faz completa quando ele consegue fazer o ex-torturador chorar ao recitar o tal monólogo.

Entretanto, o que mais me chama a atenção no texto de Bosco Brasil é a discussão que se faz sobre as relações de poder. Numa primeira leitura, essas relações parecem se estabelecer num plano político óbvio. Um chefe da Imigração no porto do Rio de Janeiro interrogando um imigrante polonês que ele supõe ser um possível nazista querendo abrigo no Brasil após a Segunda Guerra. Em tempos de paz e de anistia para os presos políticos da ditadura de Vargas, dar salvo-conduto a um nazista seria uma temeridade, sobretudo para um ex-torturador com uma ficha corrida mais suja do que pau de galinheiro. Por isso Segismundo achou que, no caso de Clausewitz, um interrogatório mais cuidadoso deveria ser feito. E isso porque, diferentemente dos outros imigrantes, Clausewitz falava um português impecável. A adaptação para o cinema foi bastante feliz ao sublinhar esse fato. No filme de Daniel Filho, causou estranheza aos funcionários da alfândega essa fluência de Clausewitz no nosso idioma. E é justamente aí que se estabelece, a meu ver, uma segunda leitura das relações de poder. A língua! Já na fila da triagem fica clara essa relação de poder. Os outros imigrantes, por não entenderem nada do que os funcionários da alfândega dizem, são mais submissos. Já Clausewitz é mais altivo: ele recita para o funcionário os primeiros versos do poema “Mãos dadas”, de Carlos Drummond de Andrade.

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.


O funcionário da alfândega olha meio desconfiado para Clausewitz e sai preocupado para chamar imediatamente o chefe, Segismundo. A partir daí, o filme segue à risca os mesmos diálogos da peça de Bosco Brasil. O ex-torturador começa o interrogatório do imigrante polonês e quer, a todo custo, saber como um agricultor simples aprendeu a falar o português tão bem.

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor fala mesmo, o Português.

CLAUSEWITZ - Eu falo.

SEGISMUNDO - Já esteve no Brasil antes?

CLAUSEWITZ - Nunca antes.

SEGISMUNDO- Sei. E o senhor aprendeu como, o Português?

CLAUSEWITZ - Estudei sozinho. Depois de tudo que eu passei... tudo que eu passei na Guerra... estudar uma língua tão estranha foi bom para mim, me fez esquecer... Eu sou grato ao “x”. Gastei muito tempo estudando os valores do “x” no Português. Como é que vocês usam de tantas maneiras uma letrinha à toa?! Estudando o “x” eu às vezes quase esquecia da Guerra... Quase esquecia da maldade. (TEMPO) Claro, um funcionário do consulado do seu país em Manchester me emprestou alguns livros. Ele também repetiu “não” muitas vezes. Agora eu falo: “não”.

SEGISMUNDO - Era a obrigação dele.

CLAUSEWITZ - Repetir o “não””?

SEGISMUNDO - Não se pode dar visto de entrada ao primeiro que aparece.

CLAUSEWITZ - Ah... Estava falando da pronúncia. “Não”. É difícil dizer: “não”. Essas “nasais” da sua língua...

SEGISMUNDO - Nazistas, o senhor disse?

CLAUSEWITZ - Por favor! Nasais! Nasais... Não. Mão. Verão.

SEGISMUNDO - Então. O senhor aprendeu com esse funcionário do consulado.

CLAUSEWITZ - Eu já tinha estudado um pouco no seminário. Por causa do meu professor de Latim. O Professor Cracowiack... (TEMPO) Docta ignorantia. O senhor já ouviu isso, não?

SEGISMUNDO - Não. O que é?

CLAUSEWITZ - Latim.

(...)

SEGISMUNDO - (TEMPO) Então o senhor aprendeu português no seminário...

CLAUSEWITZ - Não. Latim... Com o professor Cracowiack , como eu disse. (TEMPO) Interessante. Nunca soube como o professor Cracowiack foi acabar dando aula no seminário. (TEMPO) O professor Cracowiack amava as línguas neolatinas. (TEMPO) Professor Cracowiack falava dezessete línguas! (TEMPO) Ele tinha o exemplar de uma revista com poesia brasileira moderna. (SE ANIMA) O senhor já ouviu falar do senhor Carlos Drummond de Andrade?

SEGISMUNDO - É o sujeito forte do ministro da Educação e da Saúde. Eu sei que escreve num jornal. Parece que é escritor. E o senhor, é escritor?

CLAUSEWITZ - Não, sou agricultor.

SEGISMUNDO - E aprendeu sozinho o português... Não é todo dia que chega um estrangeiro aqui, falando Português.

CLAUSEWITZ - É bom estar no Brasil.

SEGISMUNDO - Deve ser. (TEMPO) Escute, o senhor chegou num dia um pouco agitado. Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei ainda estamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o armistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Estamos esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não chegam: continua o mesmo. Se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor precisa de um salvo-conduto. O senhor quer ficar no país, não é?

CLAUSEWITZ - Eu quero.

SEGISMUNDO - Sei. Então nós temos que esclarecer algumas dúvidas a seu respeito. Se isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro, e seguir viagem.

Que audácia desse imigrantezinho de merda falar português assim tão bem! Não pode! Se alguém quer vir pedir abrigo no país, tem que mostrar mais humildade, oras! O chefe da Imigração tinha que mostrar quem estava no poder ali. E a forma mais de contundente de ele exercer o poder sobre os imigrantes era justamente o domínio da língua que ele tinha e eles não.

E é essa relação de poder que eu gostaria de destacar no texto de Bosco Brasil: quem tem o domínio da língua é rei. Uma discussão que se faz bastante atual em tempos de controvérsias sobre certo ou errado, sobre adequado e inadequado no que tange à diversidade lingüística no Brasil. Falar “bem”, falar “correto” conferiria um certo status na visão dos detratores da pluralidade lingüística. Volto a discussão da postagem anterior para mostrar que, da mesma forma que Clausewitz, o falante do português precisa saber falar “bem” para ter seu salvo-conduto, para poder transitar livremente. Na peça/filme, o imigrante teve que convencer a autoridade estabelecida para obter o salvo-conduto:

SEGISMUNDO - Está bem. Ainda temos uns dez minutos antes do seu navio zarpar. Eu já estou atrasado, mesmo. (PARA SI) Tanto faz se eu encontrar um daqueles na rua... (TEMPO) Vamos fazer um trato. O senhor tem esses dez minutos para me fazer chorar.

CLAUSEWITZ - Fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO - Isso. Me conte suas histórias da Guerra. Se eu não chorar no próximos dez minutos por causa das suas lembranças, o senhor embarca no navio. Se eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu.

CLAUSEWITZ - Isto está no regulamento?

SEGISMUNDO - Para o senhor, agora, eu sou o regulamento.

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O senhor chora, eu fico no Brasil?

SEGISMUNDO - Fica.

No Brasil das desigualdades, o falante que não domina o padrão culto do português estará condenado ao porão, sob o dedo inquisitório de algum gramático de plantão. Mais do que o dedo inquisitório... a palmatória mesmo! Ou isso, ou desistir da cidadania. Para se tornar sujeito, o falante terá que se submeter à tortura das regras. Desaprender o português para aprender o Português. Nessa relação de poder, o falante deve deixar para trás tudo o que ele aprendeu sobre a beleza da língua em nome da norma. Minha preocupação é que, ao ser forçado a falar o Português que lhe é exigido, o falante se decepcione com sua própria língua-mãe. Que ele experimente, assim como o personagem Clausewitz, uma decepção profunda com a língua das possibilidades do “x”, ao ter que seguir regras e normas, ao ter que obedecer ordens do poder estabelecido.

CLAUSEWITZ - Eu estou... estou espantado.

SEGISMUNDO - Espantado? Mas o senhor veio da guerra!

CLAUSEWITZ - Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essa coisas pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim o Português era um latim falado por bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa gente tivesse dentes, como poderiam ter perdido tantas consoantes?

SEGISMUNDO - Também arrancávamos os dentes do sujeito, é claro.

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Eu que achava que o Português era uma língua falada pôr gente com dotes de análise e síntese.

O navio apita mais uma vez. Tempo.

CLAUSEWITZ - O que o sujeito fez para o senhor?

SEGISMUNDO - Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me mandavam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a idade. Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas eu servia. Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu sempre fiz tudo o que me mandaram fazer.

CLAUSEWITZ - (IRRITADO) Por que vocês fazem tudo que mandam?

SEGISMUNDO - “Vocês”?...

CLAUSEWITZ - Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram odiar o idioma alemão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha do Fausto.

SEGISMUNDO - Quem? Do que o senhor está falando?

CLAUSEWITZ - De teatro!

SEGISMUNDO - Eu tinha entendido que o senhor agora era um agricultor.

CLAUSEWITZ - Eu sou um agricultor! Mas eu sou um agricultor no Brasil. Eu tenho que falar a língua que se fala aqui! E o senhor está me fazendo odiar o Português!

O navio apita. Segismundo olha o relógio.

SEGISMUNDO - No Brasil nós falamos português...

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Meu professor de latim dizia que o Português era uma língua falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor nunca recebeu uma ordem em Português. Por isso teve essa idéia.

Clausewitz, quando cita o famoso monólogo da peça de Calderón de La Barca, reivindica a liberdade que lhe foi negada, assim como foi negada a Segismundo de A vida é sonho; a mesma liberdade que parece ser negada àqueles que não dominam a variante culta do Português em nosso momento atual. Com seu monólogo, Clausewitz conseguiu arrancar lágrimas de Segismundo, pois este acreditou, naquele momento, tratar-se da experiência de vida do imigrante polonês. E assim ele obteve seu livre-conduto. Acredito que ainda está longe o tempo em que o falante do Português que não optar pelo registro culto conseguirá convencer os donos do poder a lhe darem passagem. Como professor de Língua Portuguesa que sou, no entanto, vou fazendo minha parte. “Não serei o poeta de um mundo caduco”, não estabelecerei essa relação de poder com os alunos ao normatizar que eles só podem se expressar segundo o que reza a Gramática da autoridade, ao desconsiderar os seus falares, os seus regionalismos, as suas experiências. Se me colocarei na mira dos detratores do falar adequado? Acredito que sim. Se essa minha prática pedagógica vai surtir algum efeito? Sinceramente não sei. Não quero provar nada para ninguém. Só quero fazer o que acho mais justo. Quero provar para mim mesmo que posso, ao menos, amenizar essas relações de poder advindas da experiência lingüística. Para isso me formei professor. Assim como Clausewitz – que na verdade não era agricultor, e sim ator – nunca quis provar nada para Segismundo; apenas quis provar para si mesmo que num mundo de violência e guerra ainda era possível exercer seu ofício de ator.

SEGISMUNDO - O que o senhor acha que provou para mim?

CLAUSEWITZ - Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim mesmo. Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu sou ator. Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no mundo depois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer. Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta fazer. Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém precisa saber como se faz esse mingau...

SEGISMUNDO - Saia da minha sala, o senhor, o teatro e o mingau.

Para mim também me basta fazer. Se meus alunos estiverem aptos a se expressar a ponto de conseguir ensinar a alguém como se faz um mingau, para mim já vai estar de bom tamanho. Pouco me importa se a receita do mingau foi passada no registro culto ou não da língua...




28.5.11

'Os livro' do MEC nas visões magistrais do Wisnik e do Faraco


Os menino pega o peixe, nós pega os peixe, nós pega os livro por uma vida melhor... Tauba, probrema, rebocar, arredar (arreda daí, mininu!), coisar.... Ah, os falares da minha terra! Saudades das lições de Mattoso Câmara e daquelas do meu mestre Carlos Eduardo Falcão Uchôa na UFF!!... Saudades do 'barrer' que só a 'bassoura' de minha vó sabia o que era!!... Saudades do Arnesto que devia ter 'ponhado' um recado na porta!!... Como é bom poder ouvir alguns 'nóis vai' ou 'a gente vamus'... Como é bom saber que esse povo, esse povo matreiro e espontâneo, esse povo que tem sua gramática inata - do momento em que nasce (analfabeto como a mãe do presidente) até o momento mágico em que as primeiras palavras lhe saem da boca - como é bom saber que esse mesmo povo contribui para que a língua seja para sempre língua e não tratado... Como é bom saber que essa língua, daqui a alguns anos, terá (pela força desse mesmo povo) se espatifado, se estilhaçado, se transformado em muitas, terá sido levada nas asas de pássaros-falantes, terá polinizado e feito florir um jardim de possibilidades... Um jardim como aquele onde um dia se destacou a última flor do lácio, latim em pó... Esse povo nunca falou errado. Quiçá sejamos nós que nunca nos permitimos ouvir certo...

"e as gentes no seu
linguajar gostoso
espontâneo
prosivivendo paixões
da maneira
que as satisfaz."

(Edmilson Borret)


Dito isso, passo a palavra ao Wisnik e ao Faraco. Dois exemplos de sensatez em meio a tanta polêmica apedeuta.

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ANALFABETISMO FUNCIONAL
José Miguel Wisnik *

Não resisto a voltar à discussão sobre o livro de Heloísa Ramos, "Para uma vida melhor", oficializado pela chancela do MEC. Falei dele e da polêmica que ele despertou, na semana passada, mas os efeitos sintomáticos que o livro desencadeou ainda ficam ressoando demais. Talvez porque eu tenha sabido da notícia, revoltante em sua miudeza obscurantista, de que o deputado Átila Nunes, do PSL do Rio, apresentou projeto de lei para que se proíba a distribuição do livro nas escolas do estado. Suponho que esse Átila não vai conseguir esterilizar os caminhos por onde passa, como o rei dos hunos que lhe dá nome, mas a sua proposta é cheia de sinais reveladores. O artigo de José Sarney na "Folha de S. Paulo", invocando Fernando Pessoa em nome da unidade linguística da pátria, também não me fez bem.

O que dá às reações o seu caráter de sintoma de alguma outra coisa é a desproporção entre o que se lê em "Para uma vida melhor", dentro do seu contexto próprio, e as afirmações de que ele convida perigosamente ao abandono da concordância gramatical em nome de uma permissiva e perversa norma inculta a ser adotada generalizadamente. Como eu já disse aqui, o capítulo expõe com elegância procedimentos para se escrever com limpidez, justificando-os pela necessidade de fazê-lo em certos contextos. Extrai esses princípios de coesão, clareza e propriedade das necessidades do próprio texto que se escreve, balizados pela norma culta, sem tomá-la como a verdade universal que ela não é. Faz isso tão bem que acaba demonstrando na prática, em bom português, que a escrita segundo padrões decantados pela tradição, em seu estado atual e vivo, não deveria ter vergonha de se apresentar aos estudantes e professores como um instrumento modelar a ser adotado como tal. Afinal, há de ser por algum motivo forte, maior do que aqueles que ele mesmo apresenta, que o livro pratica o padrão linguístico que ele relativiza.

Este é o meu reparo filosófico e pedagógico, a meu ver de grandes consequências, a ser considerado pela autora e pelo MEC: aceitar-se a multiplicidade das falas como um substrato cultural democrático, sem preconceitos, sim, mas afirmar também a ampla validade, não meramente circunstancial, dos padrões decantados pela língua escrita como um repertório a ser atingido, praticado e renovado, pelo seu longo alcance.

Tudo isso que acabo de dizer faz parte de uma conversa esclarecida, sobre um trabalho pedagógico honesto, que teve o mérito, mesmo que não buscado, de tocar numa questão tabu. Já a extensão das reações escandalizadas adquire a dimensão do sintoma, a merecer uma psicanálise coletiva. Por que será que é tão insuportável que se admita com naturalidade as variantes linguísticas dos falares, e por que se teme com tanta ênfase que a menção desse fato nas escolas vá nos arrastar irremediavelmente para o pântano do caos linguístico?

Porque esse pântano patina sob os próprios pés de quem fala. Nesse sentido, o projeto de lei do deputado do PSL é um índice hilariante. O projeto pretende proibir "qualquer livro, didático, paradidático ou literário com conteúdo contrário à norma culta ou que viole de alguma forma o ensino correto da gramática de nosso idioma nacional". Querer que a literatura obedeça aos gramáticos oficiais, sob pena de retirada do mercado, só pode ser o delírio de quem tropeça na língua portuguesa a cada frase. É o que acontece no projeto de lei do deputado, que estende a sua justificativa a outros tipos de livro que "acabam fazendo apologia a questões criminais ou despertam precocemente o libido dos jovens, incentivando conceitos distorcidos da verdade social".

"Apologia a questões criminais"? O deputado não é forte em regência nem no apuro semântico dos termos. "O libido dos jovens"? Será que é isso mesmo que estou lendo? Se for, então esse Átila é um perigoso devastador da língua portuguesa.

O exemplo folclórico tem valor de sintoma, na sua caricatura. José Sarney, ao afirmar erradamente que se resolveu no Brasil "criminalizar quem fala corretamente", diz que "defender a língua é defender a pátria", acrescentando: "eis a origem da famosa frase de Fernando Pessoa: "A minha pátria é a língua portuguesa"". Mas Fernando Pessoa não está dizendo nessa frase do "Livro do desassossego", em tom sentencioso, que a língua está a serviço da defesa da pátria ("a língua portuguesa é a minha pátria"). Está invertendo esse raciocínio e dizendo que o seu compromisso de escritor é com a língua livre e criadora ("minha pátria é a língua portuguesa").

É o que se vê nos textos de Pessoa reunidos no livro "A língua portuguesa", onde começa dizendo abertamente que a palavra falada é democrática e segue os usos. "Se a maioria pronuncia mal uma palavra, temos que a pronunciar mal. Se a maioria usa de uma construção errada, da mesma construção teremos que usar." O maior poeta do século não está preconizando o erro, está constatando que a língua falada é um fenômeno de massa que segue suas próprias leis, independente de qualquer norma, e arrasta os falantes para os seus usos coletivos. Não muito diferente do livro distribuído pelo MEC. A palavra escrita, por outro lado, dizia Pessoa, impõe suas necessidades e tem as suas regras como lastro. O escritor está livre delas, porque faz com a língua o que quiser. O povo também está livre delas. O Estado, no entanto, através da escola, deve ensiná-las como algo que nos serve de baliza e adianto.

Não como uma prisão às regras. Para podermos estar mais livres delas.

* José Miguel Soares Wisnik é professor de Teoria Literária na USP.

FONTE: Jornal O Globo, de 28/05/2011


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POLÊMICA VAZIA
Carlos Alberto Faraco*

O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão.

Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus críticos, o livro, ao abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de português e desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.

O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.

Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.

Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da língua. O assunto é a concordância verbal e nominal – que, como sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente de variedade para variedade da língua. Há significativas diferenças entre as variedades ditas populares e as variedades ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística reflete a divisão econômica e social em que se assentou nossa sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou, ao menos, de diminuir substancialmente.

Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para enfrentar essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo, defendemos que o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem o domínio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber escolarizado.

Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico.

É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse livro, mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a essa direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da língua portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa complexa cara linguística.

Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar para adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a democratização do domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa história.

O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem, então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que essas questões exigem.

* Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de português e reitor da UFPR.

FONTE: Jornal Gazeta do Povo (PR), em 19/05/2011



3.5.11

Justice has been done... Really?


A sensação que tenho é que estamos vivendo uma grande farsa. Todos os jornais que leio, todas as páginas de notícias na internet, todas as tv’s do mundo – tudo repetindo o mesmo sentimento: “justice has been done”. E se eu não me policio, corro o risco de acreditar mesmo que alguma justiça foi feita. Uma justiça bem ao gosto americano, uma justiça que não reconhece nenhum Estado de Direito, uma justiça baseada na lei de talião, uma justiça como a que se vê em passagens do Velho Testamento. Aqui no caso, olho por olhos, dente por dentes: o sangue que escorreu de duas torres enfim vingado na foto-montagem de um corpo atirado às vagas do mar.

Vejo americanos felizes pelas ruas, festejando, comemorando, dançando e gargalhando. Uma festa pela morte! Vejo comparações estranhas com velhos fantasmas de ditadores sanguinários – o que justificaria a morte. Hitlers, Mussolinis, Stalins, Saddams e toda uma longa corja de vultos negros assassinos voltam correndo para o inferno acompanhados de mais um representante do Mal. O Mal, mais uma vez, foi vencido. O sol há de brilhar mais uma vez. A luz há de chegar aos corações. A câmera, primeiro em plano fechado, enquadra o rosto de um presidente-herói saudando a multidão mundial; depois, num plano aberto, vai subindo numa grua e faz um longo take épico, panorâmico, dos rostos felizes quase em transe, das bandeirolas em punho, das crianças alçadas aos ombros de pais orgulhosos do american way life.

Um filme. É isso: um filme. Minha sensação de estar vivendo uma grande farsa vai, pouco a pouco, esvaecendo. Já não sei mais o que é realidade, o que é ficção. Roteiristas muito bem treinados, enredo perfeito, atores maravilhosos, fotografia, efeitos especiais, figurino e maquiagem – tudo perfeito.

Tudo perfeito... se não fosse tudo tão velho! Tão velho quanto o mundo, tão velho quanto o homem e sua barbárie em nome de deus, da família, da propriedade, da pátria e da liberdade. Dominus dominium juros além.

Saio caminhando, feito um zumbi, um extraterrestre, um Neo em sua Nabucodonozor tentando furar caminho em meio a uma gente risonha e festejante, a noticiários que me chegam de todos os cantos e que me convidam para a nova era. Entro na primeira biblioteca pública que encontro e vou direto às estantes dos livros de História. Quero um pouco de realidade, uma lufada de ar fresco. Folheio (em dúvida mesmo sobre a real validade do que leio) compêndios e mais compêndios sobre impérios que se ergueram graças à dormência dos sentidos de milhares de milhões de seres humanos. Impérios e seus governantes que atacaram outras nações, que mataram, que saquearam. E sempre com o aval de todo o restante da humanidade. Eram homens de bem – que se registre! Se atacaram, se mataram, se saquearam, foi tudo por um bem maior: a Liberdade. Mas, no meu entender deturpado pela minha condição de zumbi, não eram homens de bem. Eram loucos. O problema é que eram loucos que se tornaram representantes de Impérios. E, a partir do poder, podiam moldar a humanidade toda à sua loucura: e a isso se chamou de engenharia social.

Fecho o livro que folheio. Olho em volta. A alegria reinante parece que vai durar a noite toda. Estão todos inebriados. Saio da biblioteca. Toda cultura parece inútil agora. Preciso voltar para casa. Tomo as ruas mais uma vez tentando, com muito esforço, não esbarrar na alegria alheia. Chego em casa, fecho as janelas, cerro as cortinas, desligo a tv. Lá de fora ainda me vêm o som de alguns fogos ao longe, de algumas gargalhadas e festejos. Por que só eu não estou no clima de festa?

No escuro, tateio as paredes e vou até os meus CDs. Preciso de uma música para abafar tanta comemoração que vem lá de fora. Enquanto escolho o cd, penso que no justice has been done at all. Mas o que posso eu contra o senso comum no final das contas? Acho, finalmente, o cd que procurava...


Faces sob o sol, os olhos na cruz
Os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã

Vão levar ao reino dos minaretes a paz na ponta dos arietes

A conversão para os infiéis

....
Ah como é difícil tornar-se herói
Só quem tentou sabe como dói
Vencer Satã só com orações
....

Ê andá pa catarandá que Deus tudo vê
Ê anda, ê ora, ê manda, ê mata

Responderei não!

24.4.11

Deus feito em casa

(Photo by Ray Bartkus)


O texto a seguir, infelizmente, não foi escrito por mim: o que mata de inveja, confesso. Quando o li, entretanto, pensei: não posso deixar de colocá-lo em meu blog. Ao lê-lo, inclusive, cheguei mesmo a pensar em deixar de ser ateu... Só teria que bolar o nome para a minha religião.

O texto é um passo-a-passo incrível, um manual perfeito para os adeptos do "faça-você-mesmo". Inteligente, hilário e sarcástico, é um texto que merece ser amplamente divulgado. Se, como já observou Aristóteles, "o homem é o único animal que ri", quero me valer dessa característica da minha humanidade. O riso liberta o indivíduo do medo de deuses e demônios. Se o homem tiver a liberdade de rir, o que o impedirá de afrontar a autoridade instituída e, no limite, seus próprios deuses, com o seu riso? Toda religião se fundamenta no temor. Paradoxalmente, o crente ama e teme a divindade; aceita-a e voluntariamente submete-se. Em alguns contextos históricos, o medo chega mesmo a se tornar terror – como escapar de um deus onipresente e onisciente? E se a divindade é a do Antigo Testamento, então poderá parecer colérica e ameaçadora. E, de qualquer forma, seus sacerdotes, os que falam em seu nome, nos lançarão diante do horror que ameaça consumir nosso corpo e alma. Em nome dele, e pelo terror das trevas, surgem os dispostos a fazer cruzadas e combater as heresias, nem que seja preciso consumir no fogo corpos e almas. O temor é, portanto, fundamental, e quem ri tende a não temer.

Gostei do texto, portanto, porque ele me fez dar boas risadas. E isso só me basta!


Clique AQUI para conhecer a fonte original do texto.




Deus feito em casa

Muitas culturas têm um deus. E considerando que todas essas culturas são diferentes entre si, todos esses deuses acabam sendo diferentes entre si também.

Se você quer ter um deus particular (um só seu), não é tão complicado assim. Diga que seu deus existe e mande que os outros provem em contrário. Muito simples, não é? Ah, mas aí é que está! Para se criar um deus, é preciso seguir certas “regrinhas”.

Este artigo mostra como criar seu próprio “Deus Home-Made”. Come with us e que seu deus o acompanhe.

1 – SÓ ELE EXISTE

Bom, pra princípio de conversa, somente o seu deus existe. Ele é único e exclusivo. Você acredita nele e isso é o suficiente para provar tal existência. Quem duvidar que prove o contrário, ora essa! Assim, quem não acreditar em seu deus é ateu. Pouco importa se são judeus, cristãos, muçulmanos, seguidores de deidades pagãs etc. São todos ateus e ponto final!

Ignore os princípios da Lógica. Exija que provem que seu deus é apenas uma piada e que não existe de fato. Não dê a mínima se te disserem que não se pode provar uma inexistência, isso é papo de ateu ignorante. Seu deus existe, é real e o ama de verdade. Os ateus? Ora, seu deus os odeia (assim como você os odeia também) e vai mandá-los pro inferno, para sofrimentos terríveis. Entretanto, sendo você uma pessoa boa e justa, estará orando para que seu deus os perdoe (coisa que você sabe que nunca acontecerá). Você fica parecendo um cara legal, seu deus fica com duas personalidades e todos os que o contrariarem irão pro inferno, tendo medo e se afastarão de você, mostrando o quanto você está certo.

Quer coisa melhor que isso?

2 – SEU DEUS SABE TUDO

Ora, convenhamos, um deus que se preze tem que saber tudo. Senão, para que alguém precisaria dele? Contrate um economista e fim de papo! Mas, você está criando uma religião e não um cargo no Ministério da Fazenda. Assim, seu deus sabe tudo de tudo sobre tudo. Sabe até o que as pessoas não fizeram, mas queriam fazer. E o que é melhor: Disse tudo a você, pois você é o enviado dele (não, não foi um trocadilho com relação à sua opção sexual).

Desse modo, você – oh, Profeta! – também sabe tudo; e não caia na conversa de incrédulos que dizem que suas acusações são infundadas. Seu deus nunca o enganaria, não é mesmo? Condene severamente, amaldiçoe e execre em público todos aqueles que o contrariarem, não esquecendo de orar pela graça do seu deus a essas pobres almas pecadoras (coisa que você não faz a menor questão que aconteça).

3 – SEU DEUS ESTÁ EM TODO LUGAR

Olha só, seu deus tem que estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Se aquele deus lá (o tal daqueles caras largados no deserto, junto com bosta de cabra) era onipresente, por que o seu não seria? Afinal, o seu deus é único e verdadeiro, enquanto que o deles é falso, obviamente. Se o deusinho deles fosse verdadeiro, ele teria se apresentado para você. Ele fez isso? Não, mas o seu deus sim! Em quem você prefere acreditar?

Assim, o seu omniultrapowermegafucker deus pode ver onde estão os pecadores, para ferrá-los depois. Afinal, é estando em todos os lugares que ele sabe de tudo, não é mesmo? E se te perguntarem como ele precisa estar em algum lugar se ele sabe tudo, chame esta pessoa de herética, berre que é blasmacho… quero dizer, blasfêmia. Condene-a ao inferno, jogue algumas maldições sobre a família dela e grite alucinadamente. Nossa legislação ainda está proibindo assassinatos, e este seria o único método de fazê-la parar. Logo, NÃO PARE!!!

Não esqueça de terminar com a frase: Meu deus te ama.

4 – SEU DEUS É BOM

Claro! Afinal, ele é deus. E todo deus é bondoso, certo? Errado! O SEU deus é bondoso! Os deuses dos outros não são porque não existem. Se existissem, não haveria monoteísmo. E você sabe muito bem que seu deus lhe disse que ele era o único deus que existia; e você, como um bom fiel (e poderoso profeta), vai acreditar em tudo o que o senhor seu deus fala, é óbvio!

Entretanto, convém notar que seu deus fica irritado às vezes e pune as pessoas. Isso acontece sim, é verdade, e é tudo por culpa de quem? Dele que as criou? Claro que não, ora bolas! A culpa é de quem não entendeu o que seu deus disse. E se ninguém mais ouviu o que seu deus falou, é porque são pecadores. E nós sabemos que pecadores merecem ir pro inferno.

Pode ser que algumas pessoas inocentes sofram, mas quem garante que bebezinhos não se tornariam pérfidos ateus? Seu deus sabe de tudo, logo ele vai punir o bebezinho logo de uma vez. Esta geração atual já nasce endiabrada mesmo. Vide aquela garota do filme do exorcista. Aquele padre molenga achou que ela era boazinha. Se ela realmente fosse, teriam feito uma continuação do filme? Pense nisso.

No final das contas, seu deus é o cara mais legal que você conhece. O pessoal que sofre, mas dizia acreditar nele, não passam de mentirosos. Somente o verdadeiro fiel tem graças infinitas. Se não tiver, é porque seu deus quer testar a fé deles, mesmo sendo omnisciente. Logo, é necessário que você seja instrumento do seu deus e comece a perseguir e imputar dor e sofrimento a quem o rodeia. Vai que eles são espiões dos falsos deuses? De qualquer forma, a pessoa tem que saber que não é fiel ao seu deus. Mesmo sendo um bebezinho de colo. E você – oh, Profeta! – é aquele que ajudará o seu deus nesta Missão Santa, que não tem nada de impossível. Ou você acha que Tom Cruise faria melhor?

5 – DEUS TE ESCOLHEU

Bom, tomando por base que você criou o deus, é justo supor que você (e ninguém mais) é o mensageiro dele. E é simples de entender.

Você criou um deus. Mas só fez isso porque seu deus existe e lhe disse isso pessoalmente. Você sentiu ele penetrar em… humm… err… bem, ele entrou em você (espiritualmente, é claro) e isso o inspirou divinamente. Seu deus só fala com você e ninguém mais, porque mesmo sendo onipresente, ele sente que precisa de um porta-voz na Terra. E sendo o porta-voz dele, você usa a inspiração para espalhar a Boa Nova. Qual é a Boa Nova? Seu deus existe, ama todo mundo, mas vai destruir todo aquele que pensar em dizer que o profeta dele (no caso, você) é totalmente maluco.

Quem não acreditar, terá a misericórdia do seu deus (enquanto arde no fogo do inferno). Até mesmo o Hank pensa duas vezes de contrariá-lo e Chuck Norris passa batido.

Qualquer mente esclarecida ao mínimo saberá na verdade que você não criou nada. Seu deus é que lhe fez ter esta idéia – esta inspiração divina, digamos assim – pois ele precisava de um mensageiro fiel e um profeta à altura da grandiosidade dele. Logo, o escolhido foi… VOCÊ!! Pouco importa se a descrição do seu deus se pareça contigo. É normal, já que fomos feitos à imagem e semelhança dele, mesmo tendo tantos indivíduos completamente diferentes um dos outros.

Portanto, cabe a você – oh Escolhido – impor… hã, quero dizer… pregar o culto ao deus supremo. Quem vai lhe contestar? Um bando de céticos que não sabem de nada? Condene-os ao inferno e está tudo certo. Teu deus te ouvirá. Afinal, quer maior teste de fé que aceitar você, meu caro Profeta, que seu deus é único e que todos devem fazer o que você manda? Afinal, você é o Escolhido. Mas, evite andar de casacão preto e óculos escuros e jamais – JAMAIS!! – tome qualquer pílula ou comprimido na cor vermelha. Isso é coisa do diabo (daqui a pouco saberemos mais sobre isso).

6 – SEU DEUS FEZ TUDO

Precisava dizer isso? Ora, se o seu deus é único e poderoso, claro que ele fez o Universo há… bem, não importa quando foi, importa? E não acredite em cientistas. Como diz o reverendo Homer Simpson: “Fatos… Bah! Pode-se provar qualquer coisa com eles”.

A parada é a seguinte: Numa hora de ociosidade, seu deus resolveu criar tudo. Muito bem, ele criou. E para quê? Para que nos mundos… digo, neste mundo aparecessem seres que o adorassem. Simples, não? Afinal, se ele é deus, a nossa obrigação é cairmos de joelhos perante ele (e a você também, já que é o emissário); e quem não quiser… bem, é um ateu desgraçado e vai sofrer penas infernais de dar dó.

Mas, como você avisou antes, seu deus não terá pena de ninguém. Mas, tenha certeza: Seu deus ama todo mundo, pois é clemente e misericordioso.

7 – O NOME DO SEU DEUS

Deus, ora bolas! Que outro nome ele precisa ter? Os outros que tenham, já que não passam de demônios mesmo. O único deus que existe é o seu, lembre-se disso.

8 – HISTÓRIAS CÓPIA/COLA

Em qualquer religiãozinha ridícula, vagabunda e mequetrefe que vemos por aí, os deuses (bem chulés também) passam por histórias grandiosas e épicas. Tendo isso em mente, você pode se perguntar: O que meu deus fez de extraordinário?

Bem, meu caro Profeta, a resposta é simples: Tudo aquilo e ainda mais!

Pensa comigo. Seu deus fez tudo de tudo, certo? Os outros deuses não passam de historinhas inventadas (que perdem de 1000 a zero para as do Cebolinha). Seu deus hiper-mega-ultra é muito superior. E se as outras culturas possuem aquelas histórias é porque copiaram das aventuras de seu deus.

Não interessa se você o criou agora, isso não é relevante. Seu deus sempre existiu, isto é fato! E se ele sempre existiu, todos falavam dele, apesar de darem nomes diferentes. Não importa! Seu deus é “O Cara” e todos os pecadores estavam falando dele, quando criaram suas mitologias estúpidas.

Assim, eles apenas tiveram contato com seu deus, mas como porcos pecadores que são, ignoraram o “hômi” e agora estão pagando por isso. Isso significa que todas aquelas histórias foram baseadas em acontecimentos VERÍDICOS ordenados pelo SENHOR seu deus.

E tudo começou com uma chuvarada imensa que alagou tudo inclusive as montanhas mais altas (o fato da água ter aparecido do nada é irrelevante. Seu deus fode pode tudo).

E quem duvidar só pode ser um ateu desgraçado e você sabe melhor do que eu o que acontece com hereges. Afinal, você é o inspirado.

9 – O DIABO

Não existe somente mocinhos bons numa história. Sempre há aqueles que matam, estupram, pilham, saqueiam, mutilam, escravizam, massacram e agem com selvageria extrema em guerras sangrentas e desnecessárias.

Um cético pode lhe interromper neste ponto e dizer que tudo isso fora muitas vezes causadas em nome das religiões. O que você fará? Resposta: Rirá com desdém. Por quê? Ora, Profeta, simplesmente porque não foi o seu deus (o único e verdadeiro deus que existe), mas sim obra do diabo.

O diabo, cramunhão, pé-de-bode, capiroto, bicho-feio, demo e nomes afins retratam a mesma coisa: qualquer pseudodeusinho pé-rapado que não seja o seu deus. Afinal, seu deus é único. Os demais deuses (todos falsos) são contra ele. O diabo é uma figura que se contrapõe ao seu deus, assim: todos aqueles deuses são demônios. Simples!

Aqueles dois céticos chatos de um certo Blog inconveniente podem argumentar dizendo que se seu deus criou tudo, logo criou o diabo também e, assim, é responsável por tudo. E daí? Eles que falem! Eles foram tocados pelo seu deus? Não, mas você foi (espiritualmente, claro). Eles entendem a beleza disso? Claro que não. São alarmistas fantasiosos e, pior de tudo, céticos (arghhhhhhhh).

Assim o que lhe resta? Sacudir a cabeça, insistir que seu deus é bom, o capeta não é, eles estão influenciados pelo maligno e acabarão no inferno. Mas, como você é uma boa pessoa, rezará muito para que eles encontrem a luz do seu deus, amém.

10 – CONTRADIÇÕES

Seguinte. Seu deus precisa dar algumas instruções. Essas instruções (devidamente repassadas por você) podem ser compreendidas ou não. Não é problema seu se tem idiotas no mundo que não compreendem o senhor seu deus. Esses são infiéis e merecem o inferno.

E o fato de haver discrepâncias e contradições, só ressalta o valor espiritual de suas palavras, pois a letra cata e o espírito mexirica. Ou algo similar a isso.

Isso significa que seu deus é sábio e confundiu todo mundo para que ele pudesse saber quem é o verdadeiro fiel. Afinal, ele é omnisciente, mas as pessoas não. E estes precisam ser testados, para que usem seu livre arbítrio e sigam da melhor forma possível tudo o que já tinha sido predestinado pelo seu deus omnibondoso, já que ele mandará quem não fez direito nenhuma de suas instruções lá pras profundezas do inferno.

Isso não é lindo? Ai, Ai…

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