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7.1.07

Alteridades...



Olhar o defeito do outro


A mulher olhou através sua janela, apontou para o quintal da vizinha e disse ao marido:

- Há dias venho observando como é encardida a roupa da vizinha. Eu teria vergonha de pendurar no varal uma roupa tão mal lavada. Isso é relaxamento, um desleixo... Na verdade, acho que é preguiça.

O tempo passava... e, cada vez que ela voltava a observar, as roupas tinham um aspecto pior. Certo dia, uma surpresa! Ao reparar nas roupas da vizinha, ficou abismada. Estavam brancas, limpinhas, as cores vivas.

- Criou vergonha, disse ela. Perdeu a preguiça e esfregou mais, ou então trocou a marca do sabão.

- Nada disso, replicou o marido. Fui eu que lavei.

- Lavou a roupa da vizinha?

- Não, mulher, lavei o vidro da janela. Era ele que estava encardido.


(Desconheço o autor)




Não se vê aquilo que não está no olhar. Ver não é “fenômeno ótico” ou biológico. Faz parte da maneira como se codifica e decodifica o mundo que nos circunda. Ver é codificar e decodificar. É, antes de tudo, maneira de interpretar, de dar sentido, de criar e reconhecer conexões e mediações entre instâncias óticas. Olhar é “ouvir” mediações e instaurar paralelos, identidade/diferença; é identificar nosso “cheiro” e garantir territórios; é “apalpar” o conhecido e se espantar com o outro, podendo, assim, vê-lo como outro; é “degustar”, com horror ou prazer, alteridades; é vivenciar como a única realidade, ou a realidade privilegiada, o real criado pelo social.
O “espanto” ao ver o estranho, o não sociabilizado, o “fora do costume”, nos leva, labirinticamente, à idéia de “educação dos sentidos”. Nesse século visual, o olhar conquistou seu lugar e, ao mesmo tempo, foi desvendado. Não se vê como os animais: vê-se aquilo que determinada sociedade instaura como instância visível, seus possíveis, impossíveis e variantes, as formas, seu movimento esperado ou a dialética entre essas mesmas dinâmicas. Até mesmo ver além dos limites acontece nas virtualidades vivas das redes ficcionais da práxis. O encontro com o desconhecido, como a garrafa de coca-cola no filme “Os Deuses Devem Estar Loucos”, ou os encontros dos europeus com “outros povos” nos faz recodificar, dando ao “caos” os significados e as redes simbólicas de sentido e segurança, “esquecendo” seu nada-para-nós. O olhar não suporta o nada: sem reconhecimento não há o ver; sem um projetar profundo, que é uma maneira de não ver, não conseguimos ver.
Todo olhar é olhar histórico. Ele não é uma função, mas um desdobrar e um projetar interioridades sociais, sendo instaurado como algo a ser conhecido ou reconhecendo esse mesmo conhecido. Principalmente porque sua instauração se dá dentro de redes culturais e seu exercício é sempre “proposta” dessas mesmas redes: não vemos senão essas “grades” e suas projeções.A partir desse fundamento, ver é sempre ver um mundo codificado, logo, ver é processo contínuo e profundo de codificação, decodificação e recodificação. A “realidade” não é algo dado, mas estrutura simbólica instituída sócio-historicamente. Tanto a codificação quanto a decodificação são processos indispensáveis “à existência das práxis sociais que conhecemos”. Sem essas “operações” seria impossível manter a estabilidade da antroposfera que nos permite reconhecer o outro, se reconhecer e reconhecer um mundo que nos cerca com suas funções, necessidades e valores.
Vendo, podemos instaurar as mediações necessárias ao entendimento do social como um todo. Mas esse ver apresenta-se como um “ouvir”: as mediações não são vistas, mas feitas sem se ver, fora do mundo das formas. Os nexos são impalpáveis, pertencendo mais ao “universo auditivo” que ao escultural do visível. Não vemos a relação entre as coisas a não ser quando se tornam visíveis. O olho lê sem ver, reconhecendo a possibilidade entre as coisas e sua normalidade. Com isso coloca-se existencialmente a “identidade” e a “diferença" enquanto reconhecimento de si e do outro. O olho é o instrumento da alteridade cultural: aquilo que identifica o nós cultural separando essa identidade do existir do outro. O olhar carrega todo o arsenal ideológico disponível numa sociedade, não conseguindo, por vias não críticas, se libertar desse fundamento inescapável por sua própria atuação.
Sendo o olhar sempre o “olhar de um mundo”, a ocidentalidade é também uma grande maneira de ver e de impor esse ver como "a visão". O olhar ocidental é aquele que perdeu a certeza de ser o olhar de determinada sociedade e se disse o real do olhar. Vemos como nosso-deus “vê” o mundo e a cristandade vê aqueles que não são cristãos. A milenar prepotência do nosso olhar funda-se nesse mítico que sempre se considerou miticamente além do mítico. É olhar de determinado poder ordenador de instâncias sociais. Não é olhar descompromissado, mas olhar de certa moralidade: é olhar que julga e separa, aproximando ou distanciando o outro daquele deus que consideramos o único. É aquele que aponta o certo e o errado. Olhar que garante a vida ou a morte: aquilo que está próximo ao olhar, fraternalmente unido e certo, ou aquilo que está distante e é o outro a ser morto, devorado, escravizado, marginalizado, aprisionado ou esquecido.
O olhar no ocidente é o primeiro acesso ao monstruoso desvio ou o espelho-inverso do irmão. O criado e mantido por deus versus aquilo que se perdeu e outro criador o guiou à perdição. É olhar que “se criou” amando o outro para transformá-lo num igual: esse amor cessa na hora em que o outro recusa a deixar de ser ele mesmo ou se recusa a servir. O olhar ocidental não suporta a verdadeira igualdade. O olhar ocidental é olhar masculino, falus inescapável da Razão. Esse olhar duro é, na verdade, o nosso olhar. Essa dureza é a mesma do nosso real, tem todas as suas asperezas, todas as suas arestas finas e dolorosas. Toda a história do ocidente é a história desse olhar sobre si mesmo e sobre as outras sociedades e de como esse olhar de olho-gordo, olhar-secante, fixo e guloso, olhar da Medusa, formatou realidades completamente diferentes numa hegemonia duvidosa mas “sempre” mantida pelas armas do olhar e pelo olhar das armas. Noite e dia, olhar diuturno: olhar pornográfico fundando sua temporalidade. Olhar inescapável dentro dos sonhos, dentro do desejo, dentro de casa, dentro da carne e do lugar de trabalho, o olhar dentro da fala. O inferno está, no ocidente, sartrianamente, no olhar dos outros: olhar juiz, carcereiro e carrasco. Olhar que, no capitalismo, torna-se o olhar da coisa: reificado e reificador. Ele não vê mais senão coisas e relação entre coisas, como se os sujeitos fossem invisíveis. Relações sociais produtoras de mercadorias criando o olhar: o olhar do capital. E como a lógica do capital tornou-se a única fundamentação lógica do mundo, o olhar passa a ser o olhar dessa lógica. E somente esse olhar pode “passear”, como um grande olho metafísico carregando seu paraíso à tiracolo.
O turista só é possível no capital tornado fundamento vivo da sociedade. Antes do capitalismo não existiam turistas ou o olhar do turista. O viajante não é turista. Seu olhar é diferente. É ainda olhar tradicional. Julga mas não dissolve: acrescenta ao seu saber vivido os mundos fora do seu mundo.
O olhar do turista, olhar reificado por excelência, é sem profundidade: transparencializa sem se impor, olha sem se comprometer, olha sem olhar. Antes de olhar possui a certeza estabelecida por informações prévias. O olhar do turista não encontra o outro, mas estereótipos, modelos, esquemas. Seu olhar não é instrumento do vivido e da experiência, mas da confirmação. Ele não leva o mundo do outro para o campo vivo de um saber humano. Ele plasma, seja em fotos, filmes ou em narrativas esquemáticas, apenas o prefigurado e suas variáveis inesperadas. Vê as paredes do templo mas não sente, entende ou deseja naquela fé.
É o olhar das coisas sobre os homens. É o olhar permitido: o olhar do lazer, entretempo do tempo do trabalho. Não é o olhar da busca, mas o olhar do descanso da coisa sobre as coisas. Não é o olhar criador, mas o olhar da reprodução do capital descansando, em férias.

(Alberto Lins Caldas)



Geralmente, o defeito que notamos no outro são os nossos próprios defeitos projetados.

Ou, como disse Sarte no Huis clos: L'enfer, c'est les autres.

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