Seguidores

5.1.07

Da palavra arrancada à flor da pele

Quando todo silêncio é prefiguração de murmúrios. Quando toda palavra lançada foi vã. Mutilada. Conspurcada. Ultrajada. Abandonada. E sobeja no peito arfante a vontade urgente de desferir-te o soco final. De quebrar-te a cara. Arrebentar-te os dentes. E chutar-te as costelas. Puxar-te pelos cabelos. Arrastar-te por toda a cidade. Para a zombaria geral de todos os teus vizinhos. E amigos. E parentes. Gargalhar da tua roupa em farrapos. Colocar meu pau pra fora. Luzidio. Sob a luz pálida da lua. Fazer a dança da chuva. Rodear teu corpo ensangüentado. Mijar nos teus cortes e ferimentos. Escarrar na tua cara. Escarnecer de tuas quinquilharias. E banhar-te de lua, chuva, mijo, sangue e escarro. Não me apiedar de ti. E virar-te as costas em paz. E seguir rua abaixo. Assoviar um samba-canção. Olhar as casas do teu bairro evoluído e limpo. E parar no quiosque ao final da rua. Servir-me de uma farta porção de fritas. Parar sob a luz do poste. Ver meu rosto na vitrine em frente. E sentir um prazer brutal. Novo. E com as mãos ainda sujas do teu sangue. Lambuzadas do óleo das fritas. Bater de todas as punhetas a mais precípua. E esporrar nas tuas lembranças. Limpar as mãos no sobretudo. E sentir que recuperei minha palavra... E meu juízo...

(Edmilson BORRET – 05/01/07)





O que será que será?

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

(Chico Buarque)

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails