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4.12.06

De Judiths e Liliths, luas negras, eine andere femme fatale... tudo nome de guerra... valei-me, seu Almada! - Parte II


Explicando o post anterior... porque professor sou, e essa majestade ao menos não me fizeram perder ainda...


(Judith Beheading Holofernes - Caravaggio)


As leituras que são feitas do romance Nome de guerra, de Almada Negreiros, voltam-se sobretudo para o personagem Antunes e para questões que lhes são pertinentes, como a conquista da autonomia pessoal em confronto com a sociedade e a questão da relação amorosa e seus desdobramentos; ou também a situação do romance no estilo literário em questão, a saber: o Neo-realismo, a ficção dos presencistas e as questões de identidade/diferença em relação aos seus contemporâneos.
Mesmo que não negando essas questões, por que não deslocar a leitura e centralizar em Judite (o personagem feminino) o nosso olhar? E, com esse deslocamento, procurar o avesso do nome de guerra, Judite? Quem se esconde por trás dele? Que fantasmas da sociedade portuguesa e ocidental estão ocultos no avesso do nome?
O que Almada Negreiros faz em Nome de guerra é brincar com nomes, brincar no nome, nomear - hábito de quem lida com o hermetismo, o secreto - porque o nome traz, quando não o lírico, o drama do nome, o épico do nome, o mito do nome ou o nome que se quer. Nessa leitura de Almada vou procurar saber, no dizer do nome, o desconhecido; no avesso do nome, o provável.
Nome de guerra. O título destaca Judite, ou melhor, o avesso. Daí não centralizarmos em Antunes a nossa leitura. Por que razão Almada teria destacado logo no título a personagem e o seu avesso? Que fantasmas, que mitos perpassavam o seu tempo e escrita?
Uma Judite que não se chama assim. “Era uma vez uma rapariga chamada Judite. Mas o seu nome verdadeiro não era Judite. Só às vezes, em ocasiões muito íntimas, é que ela esteve quase para dizer tudo:
- Eu não me chamo Judite. Mas não digas nada a ninguém. O meu nome verdadeiro é...
E calou-se.
Judite é um nome a quem a Bíblia faz cortar a cabeça de Holofernes.”
E é o narrador quem primeiro nos dá indicação dos possíveis conteúdos míticos de um nome ou nomes que se ocultam atrás do Nome de guerra. A Judite bíblica venceu para os habitantes de Betúlia uma guerra que se travou apenas no acampamento de Holofernes, o qual fora enviado por Nabucodonosor, rei dos assírios, para castigar aqueles países do ocidente que se recusaram a tomar parte na sua campanha contra Medéia. Segundo o Livro de Judite, o sumo sacerdote de Betúlia (cidade próxima a Jerusalém) manda os habitantes ocuparem os desfiladeiros, enquanto Aquior chamava a atenção de Holofernes sobre a proteção divina de que gozavam os judeus, ouvindo em contrapartida a réplica de Holofernes que se gabava da divindade de Nabucodosor. Aquior é expulso do acampamento assírio e os habitantes de Betúlia, cercados e com suas provisões de água bloqueadas, entram em desespero. Ozias, o governante da cidade, decide que, depois de cinco dias, se não houver nenhuma intervenção divina, vai se render e entregar a cidade a Holofernes. Neste momento intervém Judite, sugerindo que, ao invés da rendição, ela vá ao encontro de Holofernes, a quem oferecerá seus préstimos. Depois de muitas orações, Judite vai ao encontro do general e se apresenta como sua cúmplice. Elogiada e aceita, Judite fica no acampamento, degolando o general no quarto dia, quando ele se encontrava embriagado pelo vinho. Na manhã do quinto dia, os habitantes de Betúlia atacam, encorajados pelo feito de Judite, e vencem os inimigos. Judite então é levada em triunfo pelo sumo sacerdote a Jerusalém, onde é homenageada, testemunhando até idade avançada a tranqüilidade dos habitantes de Betúlia. A relação entre as Judite é distante, as semelhantes são poucas, mas não devem ser desprezadas. Ambas se relacionam com um momento de passagem, com a resolução de um conflito, e se unem pelo laço de guerras distintas. A travada por Judite, a judia, termina com a morte do amante e trava-se apenas como tentativa de retorno a uma normalidade quebrada. Judite, a portuguesa, a prostituta, usa os seus dotes em outra guerra, que trava com a vida e com os homens, lutando pela própria sobrevivência, sem nenhum outro mérito a não ser o de fazer Antunes defrontar-se com a sua própria realidade, encontrando o seu momento de fuga da realidade para depois deixá-la, dando continuidade às sucessivas perdas de Judite, testemunhas das diferenças sociais, do conservadorismo português e da impotência feminina numa sociedade governada pelos homens. A morte, nesse romance, também assinala um momento de ruptura, mas trata-se da morte de outra mulher, Maria; porque sempre foi em suas atitudes o oposto de Judite, alienando-se da guerra. Uma Judite que não é a outra, mas que vai nos permitir essa outra leitura do texto de Almada Negreiros: mulheres que se compõem aos poucos num conflito entre os sexos.
“Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E aconteceu-nos antes ainda de termos nascido. É a árvore genealógica. Nós somos hoje o último fruto dessa árvore secular, secularmente secular! O fruto! Mas, por mais genuíno que seja o fruto da sua árvore, esta nasce tão incomparavelmente anterior à Bíblia, e é talvez, em tão remotas origens que devemos procurar o nome que se esconde sob o nome de guerra.”
E é isso o que o romance nos pede em várias passagens: que retornemos. Um retorno à criação, num percurso que nos mostre alguns porquês: o do título Nome de guerra, o do nome Judite, o primeiro nome de Antunes, Luís, cujo significado grego é "famoso na guerra", e os sentidos de alguns conflitos.
“A árvore genealógica não funciona como ciência. É mesmo o contrário de ciência: mistério! Um mistério que se espelha só em cada um de nós! Um verdadeiro mistério humano, que ultrapassa a sociedade e a ciência, que respira ar de Arte e Religião!”
E são esses ares que devem ser inspirados pelo arqueólogo que busca a genealogia de Judite.
“A história verídica é a única que vale e pode-se contar: o primeiro homem que elas conheceram era um pulha! E cada uma teve o seu para virem juntar-se todas ali na sala de distracções, dos estranhos e do esquecimento...” Homens, mulheres, esquecimentos, o primeiro pulha... Adão. Antunes. Judite. Mulher e narrativa que nos aponta para o nome Lilith.
“Não vem tudo isto de longe, de tão longe que a memória viva não atinge, mas que apesar disso vem dirigindo-se para cada um de nós através de séculos, desencontrados, de altos e baixos, como se quis ou como pôde ser?”
Lilith também foi relegada ao esquecimento. A primeira companheira de Adão foi perdida ou removida durante a transposição da versão jeovística para a sacerdotal, e quase desaparece sem deixar vestígios na versão da Bíblia redigida pelos Papas da Igreja. De uma certa maneira, Judite é Lilith, como transfiguração do mito, ou espaço projetivo do mito; permanência que se desdobra em outras Judites, constelação de Circes, Cibeles, Reas, Maias, Dianas, Isís, Ceres, Anus, Deméteres, Ishtares, Perséfones, Hécates, Eumênides, Empusas, Lâmias, Équidinas, Erínies, Amazonas, Sereias...
A árvore genealógica de Judite nos leva a Lilith, a Lua Negra, a primeira mulher de Adão. A Judite de Antunes tem características tais que nos permite a aproximação com as representações do mito. O romance de Almada negreiros nos aponta esse caminho. A primeira companheira de Adão foi Lilith, concebida sem a costela, como no caso de Eva; mas, segundo a tradição, cheia de sangue e saliva, instigando em Adão uma insustentável perturbação que o levou a rejeitá-la. O sangue de Lilith é o sangue mestrual, metáfora alegórica para fazer perceber o caráter carnal, fisiológico, vital, instintivo da mulher. A saliva associa-se à secreção erótica. Lilith é então apontada não como mulher, mas como demônio, desde o início da relação com Adão. Lilith, como nos diz Roberto Sicuteri em seu trabalho Lilith: a lua negra, "entra no mito já como demônio, uma figura de saliva e sangue, um verdadeiro espírito deixado em estado informe por Deus; é uma companheira que apresenta fortes traços de fatalidade". O mito de Lilith, representando certamente o arquétipo da relação homem-mulher, pode ser o início da árvore genealógica que facilitaria assim a compreensão da relação Judite-Antunes e o nome que se oculta sob o nome de guerra:"o que nos guia não é o interesse teológico, mas o psicológico, pela redescoberta da lenda de Lilith, para agregá-la, como energia psíquica formadora do mito e do arquétipo, ao núcleo concernente à história da relação entre Anima e Animus e para entender as origens endopsíquicas da cisão entre 'instinto' e 'pensamento', para esclarecer finalmente o grande equívoco do primado masculino sobre a mulher sentida como inferior" (Roberto Sicuteri, Lilith: a lua negra).
A partir dessas palavras de Sicuteri, podemos compreender a relação Judite-Antunes e entendermos melhor a condição da mulher na sociedade portuguesa, mas sem esquecer que o modelo português repete-se em inúmeras outras sociedades. Enquanto a Lua Negra é descrita de forma negativa, Eva, ao contrário, é apresentada em suas belezas e ornamentos. Adão não a recusa por vê-la como ossos dos seus ossos. Já Judite seria, para Antunes, o "conhecimento carnal", a transgressão à Lei; Maria a aceitação da imagem boa, mais agradável ao Pai e à Lei. Se bem que o vivido com Lilith também é vivido com Eva. Lilith desobedece à supremacia de Adão, Eva iria desobedecer à proibição.
“A sua ligação com a Judite tinha sido uma compensação, uma desforra, um contrabalanço... de quê? A sua vida esteve toda inclinada para o lado oposto ao da Judite. Para onde? Houve um desequilíbrio para responder a outro desequilíbrio, necessário para pôr o fiel a zero, como um pêndulo vai obrigatoriamente de um a outro lado da vertical a distâncias iguais, para cumprir a semetria, a gravidade e a oscilação. O desequilíbrio era para os dois lados: a Maria e a Judite eram ambas ainda o mesmo erro!”
Deus escreve por linhas tortas. Cria Adão, Eva e a serpente. A árvore e o fruto. Deus nos permite ler de trás para frente os mitos. Esse Antunes-Adão rejeita inicialmente a primeira criação do tio-pai (o personagem tio Alves, que o leva ao meretrício e apresenta Judite a Luís Antunes) e inicia-se o conflito com Judite. “Ele tinha cometido a mais grave ofensa que pode ser feita à mulher: tinha sido indiferente para com a sua nudez!” Projeta-se a rejeição de Adão, Judite é vista como indiferença. Lilith e Eva se confundem por analogia: “Entre ele e a mulher nua a sua educação punha uma distância que não era destruída pelo desejo da carne”... até que mordesse a maçã.
Mas Antunes sente-se como o seu ancestral bíblico: “decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira”; "mas não se achava para Adão um adjutório semelhante a ele" (Gênesis, II, 20). Ou seja, Antunes não tinha encontrado em Maria sua igual, conheceria "Judith", a mulher da noite, antes que estivesse pronto para outra companheira... nem a primeira nem a segunda, nem a primeira nem a segunda.
Se Judite é projeção do mito de Lilith, abro aqui um parêntese para algumas observações sob a condição de inferioridade da mulher na sociedade portuguesa descrita por Almada Negreiros. As mulheres são lançadas na prostituição por uma rejeição de um "desgraçador" que as desvirginam e as abandonam depois da sedução. Poucas conseguem encontrar um homem que as aceitem por não terem sido "o primeiro", e todo um capítulo do romance é dedicado ao tema do "desgraçador". Antunes não agirá de maneira diferente, pois o conflito de sua educação é a base para deixar Judite, para não se permitir amá-la verdadeiramente, assim como o eterno conflito e os inúmeros "nãos" ancestrais não permitiram também a Judite entregar-se totalmente a Antunes. "Judith" serve como um veículo de passagem, de aprendizagem e, posteriormente, descartável.

(Trabalho apresentado para a disciplina Literatura Portuguesa II, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Novembro de 1989)


Pois é, caros leitores, houve um tempo em que eu era um ser pensante... Creiam-me! Nesse trabalhinho aí obtive a nota máxima... Oh Glória!

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