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15.6.07

Sobre meninos, peraltagens e poesia... Manoel de Barros


Nascido em 1916, em Cuiabá, Mato Grosso, e depois de cursar Direito na capital do Rio de Janeiro, publicar alguns livros e já receber prêmios por eles, a partir de 1960 Manoel de Barros recolhe-se em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para trabalhar como fazendeiro e criador de gado. Mas não abandonou o seu fazer poético a partir daí. Ele é, sem dúvida alguma, um dos principais poetas contemporâneos do Brasil. Em sua obra, segundo a crítica Berta Waldman, "a eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca, dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada), formam um conjunto residual que é a sobra da sociedade capitalista; o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais".
Manoel de Barros, num dos seus poemas mais conhecido, nos fala do ato fazer poesia como se fosse o mesmo que carregar água em uma peneira. Para ele a poesia é uma criação que, no parco entender dos mais desavisados e menos sensíveis, não teria uma finalidade prática e objetiva, algo sem valor palpável ou mensurável. Entretanto, fazer poesia, para ele, seria também “montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos”, ou seja, seria trabalhar com uma lógica que, não raro, estaria para além do rotineiro e do previsível; seria olhar a realidade do mundo por uma ótica nem sempre objetiva. Fazer poesia é fazer “peraltagens” com as palavras, arrumá-las como quem cria um mundo particular capaz de produzir inexplicáveis efeitos em que lê. A poesia, aliás como toda a literatura, é a arte da palavra – sua essência sendo necessariamente um trabalho com a linguagem esteticamente organizada de forma a buscar a expressão e a comunicação universais.



O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos

(Manoel de Barros)

2 comentários:

Teté M. Jorge disse...

Bom, muito bom mesmo, Ed.
"Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas
vão te amar por seus despropósitos."
Beijos admirados.

Unknown disse...

Adorei, Ed!
Achei a sua cara e a de um outro "menino" que eu tenho aqui em casa.

Beijos e boa semana pra vc!!

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