
Tinha a faca e o queijo nas mãos.
Cortou os pulsos
e entupiu as veias de colesterol.
(Edmilson Borret)
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Ah, já ia me esquecendo...
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Em tempo: E vocês acham mesmo que vou dar mais espaço na mídia pra esse idiota? Tenho mais o que fazer.
Mas para quem quiser um texto bem lúcido, bacana mesmo, sensato e tals sobre esse escroto, sugiro uma postagem de uma blogueira de quem sou fã e que sigo sempre. Na minha opinião, ela já disse tudo que nós (pessoas esclarecidas) gostaríamos de dizer sobre esse fanfarrão. Confiram no Escreva Lola Escreva. Só clicar AQUI.
A Carne
a carne crua, nua
A questão é que muita gente parece desconhecer o que é ser ateu. Como já tentei deixar claro nas postagens anteriores, basicamente, ser ateu é não precisar de um deus nem de deuses para justificar os próprios atos. Não é simplesmente "negar" a existência de deus(es): isso poderia parecer uma simples pirracinha infantil, coisa de adolescente rebelde sem causa. Ser ateu, pelo menos como eu entendo ser ateu de forma consciente, é assumir a responsabilidade de estar vivo e viver conforme a própria consciência, fruto do funcionamento cerebral. E o espanto geral advém justamente daí. Como assumir a responsabilidade por estar vivo????!!!
Nesse sentido, minha maneira de encarar as coisas aproxima-se muito do existencialismo ateu de Sartre. Segundo ele, o homem é livre e responsável por tudo que está à sua volta. Somos inteiramente responsáveis por nosso passado, nosso presente e nosso futuro. Paradoxalmente, Sartre nos propõe a ideia de liberdade como uma pena, por assim dizer: "O homem está condenado a ser livre". Se, como Nietzsche afirmava, já não havia a existência de um deus que pudesse justificar os acontecimentos, a ideia de destino, com Sartre, passa a ser inconcebível, sendo então o homem o único responsável por seus atos e escolhas. Nossas escolhas são direcionadas por aquilo que nos aparenta ser o bem, mais especificamente por um engajamento naquilo que aparenta ser o bem e assim tendo consciência de si mesmo. Em outras palavras, o homem é um ser que "projeta tornar-se deus". Nesse sentido, dentro dessa perspectiva, recorrer a uma suposta ordem divina representa apenas uma incapacidade humana de arcar com as próprias responsabilidades. O existencialismo sartriano confere assim uma importância crucial à responsabilidade individual: cada escolha da nossa vida traz consigo a obrigação de responder por nossos próprios atos, um encargo que torna o homem o único responsável pelas consequências de suas decisões. E cada uma dessas escolhas provoca mudanças que não podem ser desfeitas, de forma a modelar o mundo de acordo com seu projeto pessoal. Assim, perante suas escolhas, o homem não apenas torna-se responsável por si, mas também por toda a humanidade.
Diante disso, proponho uma experiência a todos: tire deus(es) do palco da
existência e veja. Perceba o que sobra. O que sobra? A mesma vida de sempre... contudo muito mais "ameaçadora" pelo fato de exigir a própria tomada de decisões ao invés de depositarem-se tais decisões em alguém ou algo além de "si mesmo". Perceba que não tem mais ninguém observando seus atos além de você mesmo e assim qualquer coisa que você faça estará de acordo apenas com a sua vontade, não a vontade de um ser superior a você. Pense nisso.
A crença em deus antes de ser uma necessidade é o maior dos vícios. Ela expressa imaturidade e a necessidade de um Pai guiando os próprios passos de quem estiver "viciado" em acreditar num "pastor", num condutor. É alienante e altamente prejudicial ao desenvolvimento pleno da potencialidade humana.Visto por essa perspectiva, um ateu só perdeu o vício, como alguém que deixa de fumar, como alguém que deixa de beber, como alguém que deixa de se drogar e entorpecer... (Talvez por isso mesmo, eu não seja tão radical em relação aos teístas – desde que eles não tentem me converter, que fique claro. Pois como tabagista inveterado que sou, sei o que é viver no vício). Um ateísta sabe que ele é o responsável por qualquer atitude que venha a tomar. Daí a opção pela Ética acima de tudo.
Entretanto, há algumas questões para as quais deus e a espiritualidade aparentemente seriam a resposta. Questões essas que, de certa forma, quem se põe a responder pode vir a cair na tentação viciosa de fundamentar-se na crença em deus(es) ou em espíritos a fim de validar as possíveis respostas. Vamos a algumas dessas questões, como numa espécie de FAQ:
1) Como a matéria sem vida cria vida?
A resposta seria: através da vontade de deus? Ou...
Um segredo? Qualquer porção de matéria que contenha os ingredientes necessários ao desenvolvimento de organismos simples, ganha vida no decorrer do tempo sob as condições propícias ao desenvolvimento de tal vida. O universo parece ser apto ao desenvolvimento de vida. A matéria parece ser apta a desenvolver seres conscientes em algum ponto da jornada evolutiva... Mas e aí? Acrescentar um ingrediente em algo não faz desse ingrediente uma necessidade. A menos que se prove que SEM tal ingrediente a vida não se forma, coisa que parece que está prestes a ser comprovada. Ou seja, estamos prestes a comprovar que bastam os ingredientes e as condições necessárias ao surgimento da vida para que ela simplesmente ecloda, apareça. Mas isso é prova da existência de deus ou apenas uma das várias qualidades da matéria que ainda não conhecemos totalmente?
2) Como se dá a percepção extrassensorial?
A espiritualidade parece ter a resposta mas...
Somos animais como todos os demais. Temos sentidos que ainda não conhecemos. Alguns animais têm sentidos mais apurados que outros, percebem variações sutis na atmosfera, vibrações sutis na forma de sons inaudíveis mas que podem ser sentidos pelas partes moles ou ocas do organismo. Nós percebemos estes sons inaudíveis, percebemos o campo magnético da Terra, percebemos de que forma está tudo interligado na teia da vida... Mas isso é prova de que deus existe, ou apenas uma das condições de se estar vivo e imerso num sistema fechado onde tudo co-participa e é co-dependente? A suposta "ligação" entre as pessoas a quilômetros de distância pode ser simplesmente fruto de algum sentimento que as une e isto sim deveria ser estudado, a forma como o amor faz romper barreiras entre o eu e o outro. Mas o amor é prova da existência de deus? Ou é algo imanente da própria vida? O que é o amor para que possa ser confundido com um algo mais além de nós mesmos?
3) Como a matéria sem propósito criou o propósito e a ordem?
Mas, quem vê tal ordem? Quem vê tal propósito senão nós mesmos? O universo é um caos que nós percebemos ser ordenado. A inteligência é capaz de ver tal ordem. Mas isso é prova de que deus existe? Ou a necessidade de ver tal ordem nasce justamente da necessidade de compreender o caos? Ver padrões e paradigmas indica que algo está sendo compreendido; nosso cérebro funciona assim: ele seleciona partes desconexas e as agrupa conforme as semelhanças encontradas entre elas. Onde está deus na ordem que NÒS mesmos emprestamos ao universo?
4) E a reencarnação... como se explica sem a existência de espíritos e deus(es)?
Você sabe como o cérebro funciona? Eu não sei. Nem os cientistas sabem completamente. Mas estão pesquisando ao invés de atribuirem as qualidades desse órgão à existência de um deus ou de uma consciência migratória. Sabe-se hoje em dia que tudo o que experimentamos nasce do equilíbrio físico-químico das reações que desencadeiam os pulsos elétricos a serem transmitidos em cadeia pelos neurônios dentro do cérebro. Ampute-se uma parte disso, lesione-se alguma região lá dentro da cabeça de um indivíduo e a personalidade diferenciada por algum ou outro atributo já não existe mais...
Assim, só para concluir, ser ateu não é negar a maravilha, o grandioso, o magnífico. É simplesmente não precisar de explicações com base na fé cega para algo que carregamos com nós mesmos... Tire deus agora e o que sobra? O universo, toda a maravilha e beleza que nós experimentamos a partir de nossa inteligência e nossa capacidade de vermos padrões e ordenação. Não há palavras para se descrever o fato de sermos partes disso tudo e termos inteligência para perceber a grandiosidade e a infinidade contida em cada porção mínima de matéria. Quem já leu sobre a física de partículas, sobre mecânica quântica já faz uma idéia. A maravilha não para no átomo, ela adentra ainda mais esse mundo diminuto estendendo-se para além dos limites de nossa compreensão. Para que deus e tudo o que nos condicionamos a acreditar que ele represente para nós? Já não basta estarmos vivos e experimentando o mundo? Para que um regente supremo de nossos atos além de nós mesmos? E se tudo é imensamente maior do que percebemos, para que cedermos a uma certeza que é a fé na existência de deus?
Percebem onde quero chegar? Ser ateu é ater-se ao presente e simplesmente vivê-lo. É estar ancorado no meio do nada que se faz tudo quando é observado e vivenciado a partir da inteligência seja ela humana ou animal, seja ela inerente à matéria ou não, não importa.
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.(CAEIRO, Alberto. O guardador de rebanhos)
A postagem anterior suscitou, nos comentários, justamente as reações que eu já imaginava. Duas pessoas que tenho em alta estima, embora apresentando uma opinião diversa da minha, sustentaram suas argumentações baseadas num discurso muito bem articulado. Já outras (não só nos comentários, mas pelo Orkut ou mesmo por e-mail) nada mais fizeram do que repetir o proselitismo típico dos teístas. Houve quem tenha dito, por exemplo, que não existem ateus, que o homem sempre vai acreditar em alguma força que move o Universo. Bom, acreditar em alguma força que move o Universo não significa não ser ateu. Alguém aí precisa rever seus conceitos ou de força ou de ateu... Houve quem tenha dito também (e essa é uma argumentação que me faz mijar de rir) que minha convicção me torna tão crente ao contrariar um teísta que acaba se tornando a mesma coisa que esse teísta sente por seu deus. Só há uma pequena diferença entre a minha convicção e aquela dos teístas. A minha convicção parte de evidências, a dos teístas parte da fé cega. A questão é que teístas são apaixonadamente contra a evolução, e eu sou apaixonadamente a favor dela. Paixão por paixão, estamos no mesmo nível. E isso, para algumas pessoas, pode significar que somos igualmente fundamentalistas. O que não é verdade. Como bem observou Dawkins em seu Deus: um delírio, “quando dois pontos de vista contrários são manifestados com a mesma força, a verdade não está necessariamente no meio dos dois. É possível que um dos lados esteja simplesmente errado. E isso justifica a paixão do outro lado”.
“Os fundamentalistas sabem no que acreditam e sabem que nada vai mudar isso. A citação de Kurt Wise na página 366 diz tudo: "[...] se todas as evidências do universo se voltarem contra o criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, mas continuarei sendo criacionista, porque é isso que a palavra de Deus parece indicar. Essa é minha posição". A diferença entre esse tipo de compromisso apaixonado com os fundamentos bíblicos e o compromisso igualmente apaixonado de um verdadeiro cientista com as evidências é tão grande que é impossível exagerá-la. O fundamentalista Kurt Wise declara que todas as evidências do universo não o fariam mudar de opinião. O verdadeiro cientista, por mais apaixonadamente que "acredite" na evolução, sabe exatamente o que é necessário para fazê-lo mudar de opinião: evidências. Como disse J. B. S. Haldane, quando questionado sobre que tipo de evidências poderia contradizer a evolução: "Fósseis de coelho no Pré-cambriano". Cunho aqui minha própria versão contrária ao manifesto de Kurt Wise: "Se todas as evidências do universo se voltarem a favor do criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, e mudarei de opinião imediatamente. Na atual situação, porém, todas as evidências disponíveis (e há uma quantidade enorme delas) sustentam a evolução. É por esse motivo, e apenas por esse motivo, que defendo a evolução com uma paixão comparável à paixão daqueles que a atacam. Minha paixão baseia-se nas evidências. A deles, que ignora as evidências, é verdadeiramente fundamentalista".”
(Richard dawkins, Deus: um delírio)
E aí vieram me perguntar por que insistir nessa batalha inglória de defender minhas ideias ateístas com unhas e dentes. Por que continuar dando murro em ponta de faca. Por que arriscar o nome em praça pública. Por que submeter-me aos olhares de soslaio, às desconfianças, aos cochichos ao passar. Por que fazer tanta questão de bradar a plenos pulmões NÃO ACREDITO EM DEUS.
Porque sim. Porque é necessário.
Durante muito tempo, os ateus sempre passaram por minoria pelo simples fato de que, normalmente, não se expõem, não se mostram, NÃO SE ASSUMEM. Só que, na minha opinião, isso é mais do que natural: para alguém que não acredita em deus, ir para a rua dizê-lo em voz alta faz aparentemente tanto sentido como andar por aí com um cartaz no peito onde se lê “Eu não acredito no Abominável Homem das Neves” ou “Os rios correm para o mar”. Para um ateu, não acreditar em deus é tão óbvio como não conseguir respirar debaixo de água. E é por isso que nós, ateus, temos andado desligados e isolados, ocupados com as nossas vidas e sem perder muito tempo explicando aos outros que coisas como deuses, unicórnios e gnomos PURA E SIMPLESMENTE NÃO EXISTEM. Mas também é por isso que passamos por uma minoria e que temos pouca expressão social.
O fato é que nós ateus não somos ingênuos como querem crer os teístas. Da mesma forma como não há provas da existência de deus (e, caso alguém afirme categoricamente que ele existe, o ônus da prova recai sobre quem afirmar), também não há provas de que ele "não existe" e nenhum ateísta se engajará em buscar as provas de uma "não existência", uma vez que não há meios de provar que algo não existe. Contudo, há meios sim de aceitar a existência de algo que comprovadamente existe. Portanto, para um ateu deixar de ser ateu bastaria que alguém provasse a existência de deus, coisa que os teístas em sua fé em deus ainda não foram capazes de provar... E aí? Qual o problema em ser ateu? Se para que deus exista basta que se creia nele, alguém que negue a necessidade de crer em deus não pode ser tomado como portador de uma fé cega... apenas alguém não preocupado com o que não faz falta.
Se bem que eu, cá comigo, acredito haver muito mais ateus nesse mundo do que os que se declaram como tal. O problema é que esses “enrustidos”, mesmo não acreditando em porra de deus nenhum, se cagam de medo de admitir isso até para si próprios. “Vai que o tal deus exista e me castigue por pensar diferente. Melhor eu continuar fingindo que acredito, por via das dúvidas.” Aliás, essa fé de que os teístas tanto se gabam, para mim nada mais é do que um cagaço sem tamanho. Temer e respeitar a deus, eis o que eles dizem. Temer e respeitar!!! Um dos leitores que comentou a postagem anterior deixa isso bem claro em suas palavras: “A infelicidade humana não é projeto divino...é fruto da nossa teimosia em viver longe dos sonhos de Deus, em insistir fazer as coisas do nosso jeito (...)Faz-se necessária uma inversão no modo de conceber e vivenciar a relação de Deus com o homem: levar a sério a absoluta primazia de Deus que nos criou e continua nos criando por amor, única e exclusivamente por amor.” Sei lá... pode ser que eu esteja enganado, mas, na minha parca opinião, amar alguém não deveria significar impor a esse alguém meus sonhos ou exercer sobre esse alguém minha primazia. Alguém aí também precisa rever seus conceitos sobre amor...
Existe aquele famoso grito de guerra dos ativistas que diz que o povo unido jamais será vencido. E a verdade é que o ateísmo tem sofrido algumas derrotas por não estar unido o suficiente, enquanto que os crentes (deístas, teístas e até politeístas) continuam a espalhar os seus credos e mitologias pelo nosso planeta. Se há coisa que todas as religiões têm em comum é o apelo à união e isso eles sabem fazer muito bem. E não podemos nos dar ao luxo de continuar perdendo terreno, não só por uma questão de bom senso mas sobretudo por uma questão de evolução.
Em pleno século XXI, vivemos num planeta onde pessoas matam pessoas por acreditarem em diferentes amigos imaginários; onde bilhões de dólares são jogados pelo ralo e desviados por cultos, crenças e credos; onde se subjugam, torturam e culpabilizam seres humanos em nome da fé; onde se negam evidências científicas básicas, como a teoria da evolução; onde se impede o estudo e o combate a doenças com a desculpa de dogmas; onde humanos escravizam humanos em nome de entidades mitológicas. Se você acha isto normal, talvez esteja na hora de recorrer a ajuda profissional.
A maioria das pessoas dirá: “Pois a culpa é da religião”. E isso é fato. Mas grande parte da culpa é também dos ateus.
Podemos até custar a admitir, mas perante o presente cenário mundial, um ateu calado é um ateu permissivo, que fecha os olhos à realidade e dá de ombros. Um ateu que não se manifesta, que não tenta contribuir para a mudança da maré e para a progressão da humanidade é um cúmplice no crime. É como tentar manter-se de costas para a vala comum da humanidade, na esperança de que ela desapareça.
Por isso, se ser ateu é ser alguém clarificado, então tem que ser também alguém com voz. Se ser ateu é ser alguém com um diferente nível de consciência, então é também ser alguém que contribui para a mudança.
E para mudarmos as coisas, não podemos continuar calados. Certo?
Certo.
Lembro-me de uma conversa que travei algum tempo atrás com uma colega de trabalho, uma doçura de senhora chamada D. Beth. Gosto muito de conversar com ela. É uma daquelas senhorinhas que acho que todo mundo gostaria de ter como avó: amável, carinhosa, prestativa, sempre disposta ao diálogo e às novidades não obstante a idade avançada. D. Beth é católica praticante: vai à missa com frequência, comunga e se confessa, cumpre o jejum da quaresma, etc. Mas embora sendo ela uma católica praticante e eu um ateu convicto, mantemos uma relação ótima; conversamos muito sobre muitas coisas. E fui numa dessas conversas que ela me falou: “Você não é ateu. Você não tem nada de ateu. Você se preocupa com as pessoas, está sempre tentando ajudá-las, se comove fácil com as injustiças e as desumanidades: você tem um coração bom demais.” Eu agradeci os elogios, claro; mas contra-argumentei que o fato de sermos ateus não nos torna menos humanos nem humanitários. O “amar ao próximo como a si mesmo” nunca foi mérito apenas dos que se dizem cristãos ou tementes a um deus qualquer. Muito antes do advento da cristandade, a caridade já era uma característica inerente ao ser humano. Todas as civilizações antes da cultura judaico-cristã sempre tiveram valores de grande respeito e caridade pela condição humana. Velhos, doentes, crianças, mulheres; qual cultura alguma vez os deixou de proteger social e juridicamente? Da antiga cultura egípcia aos gregos e romanos, dos celtas aos indígenas sul-americanos do século XVI e às religiões animistas dos negros africanos; enfim, em todas as culturas ditas pagãs de que temos conhecimentos, sempre se valorizaram a preocupação com o próximo e a igualdade entre os homens. Assim sendo, não podemos dizer que a caridade tenha uma origem histórica e cultural definida porque o homem é bom. O homem sempre foi bom. O homem não passou a ser bom com o cristianismo. E isso é algo que precisa ficar bem claro, porque a religião levou a maioria das pessoas a pensar que os cristãos são os que mais contribuem para que a caridade exista (senão os únicos), e que os não-crentes são sempre egoístas, pessoas amargas sem preocupações com a luta e as dores dos menos afortunados.
Pensando nessa questão do não-egoísmo dos teístas (e, sobretudo, dos cristãos), não posso deixar de me reportar à tragédia recente que se abateu sobre os moradores da região serrana do Rio de Janeiro. Não é novidade alguma que em situações de tragédias como essa as pessoas demonstram todo seu potencial para a caridade, para praticar o amor ao próximo. Haja vista a quantidade de doações que foi recolhida, sem falar na mobilização de inúmeros voluntários que ajudaram no resgate das vítimas e na oferta de algum conforto nos abrigos para os quais elas foram levadas. Obviamente que não foram só os teístas que se empenharam na solidariedade durante esse episódio da tragédia na região serrana: muitos ateus, com toda certeza, fizeram sua parte. Como eu disse acima, o homem sempre foi bom... mesmo que, por vezes, ele não tenha muita consciência disso; mesmo que, por vezes, a demonstração dessa bondade necessite ser desencadeada por uma tragédia de tão enormes proporções. Porém (e sempre tem um “porém”) algumas atitudes e reações muito me espantaram durante a tragédia das chuvas. E esse espanto adveio justamente por conta de algumas declarações de teístas cristãos que sobreviveram à tragédia. Foi curioso observar como quase todos eles, em entrevistas aos meios de comunicação, lançavam pérolas do tipo: “Foi deus que livrou a mim a minha família”. Opa! Deus livrou esse sobrevivente e sua família da tragédia mas não livrou outros? Então vamos pensar! Pode ser que esses que não foram poupados fossem ateus, não fossem cristãos... Mas putz! Mais de 800 ateus só na região serrana do Rio de Janeiro??? Não, claro que não: dos que morreram, talvez 1% apenas fosse ateu, ou até menos. Pode ser também que os que morreram fossem pessoas más que mereciam esse castigo divino, como os habitantes de Pompéia subitamente cobertos pelas cinzas e lama do Vesúvio ou como os cananeus de Sodoma e Gomorra. Também não, claríssimo que não: várias crianças morreram e, com certeza, muita gente de boa índole. Como entender então que esse deus tão piedoso tenha poupado a vida a alguns e tenha deixado outros sucumbirem? Não lhes parece também um egoísmo nada caridoso quando um cristão diz “deus livrou a mim e a minha família” durante tragédias como essa?
Mas aí vêm os teólogos de plantão e os defensores da crença para dizer que deus tem seus desígnios e seus planos. Ora, ora... eu até tento (juro que tento) respeitar as crenças das pessoas, mas justificar a sobrevivência de alguns e a morte de tanto outros como desígnios de deus, como uma etapa de um plano divino maior!!!! Forte demais pra minha cabeça, na boa... Como podem os teístas afirmar isso? E pior, como podem vangloriar-se os sobreviventes por terem escapado segundo a vontade desse mesmo deus? Nem nas explicações mais estapafúrdias dos dispensensacionalistas poderíamos encontrar respostas para tantas vidas ceifadas assim de uma só vez. O quê??!! Um arrebatamento de 800 almas só ali na região serrana, é isso?? Que desígnios são esses, que plano é esse? Que deus tão bom é esse que “livra a mim e a minha família” mas não livra o vizinho e a família dele? Por essa lógica estúpida, esse seria um deus que escolhe, que seleciona, segundo seus desígnios e seu plano maravilhoso. Ora bolas! Seleção por seleção, prefiro acreditar naquela natural proposta por Darwin. Prefiro acreditar que uns respiram melhor e por mais tempo debaixo d’água ou soterrados na lama. Prefiro acreditar que uns têm uma maior resistência (natural ou adaptada) para suportar mais tempo sob escombros. Prefiro acreditar que uns tiveram aquele insigth, aquele instinto de sobrevivência que é marca do reino animal ao qual pertencemos, e se retiraram milésimos de segundos antes do barranco desmoronar, da pedra rolar, da onda gigante passar ou da casa cair... um milésimo de segundo pode fazer uma diferença e tanto: a diferença entre permanecer vivo e sucumbir!
Prefiro acreditar na seleção natural a acreditar na seleção desse deus dos desígnios e dos planos. Pelo menos, na seleção natural, estou livre de cabrestos, de convenções estúpidas e de temores. Pelo menos, na seleção natural, não entro em conluio com um deus impeodoso que gosta de brincar de batalha naval ou um jogo de tabuleiro qualquer e aponto meu dedo para qual dos meus semelhantes deve morrer ou não. Pelo menos, na seleção natural, não sou obrigado a viver toda uma vida de privações de prazeres e de joelhos dobrados para, num momento qualquer, ser arrancado a essa vida sem nenhuma explicação, como o vizinho e sua família. Não preciso ter vínculos com nenhuma realidade supra-humana, estou livre para decidir por mim mesmo, sem medo de estar indo contra ou esperando estar a favor de algum tipo de supra-consciência à qual se deva obediência cega. Posso reduzir minha crenças a um número limitado delas, focadas no “aqui e agora”. Posso me saber ligado aos meus semelhantes não por algum tipo de poder sobrenatural, mas simplesmente pelo fato de APENAS ser um ser humano convivendo entre os demais seres humanos e de acordo com as leis humanas e naturais.
Vivendo conforme as regras da seleção natural, eu não espero nenhuma recompensa por meus atos senão aquelas que os outros seres humanos possam me oferecer... se eu assim merecer. Posso cortar todos os excessos e enxergar a vida pela perspectiva humana, sem a necessidade de deificá-la ou deificar o que quer que seja. É claro que, vivendo conforme as regras da seleção natural, eu posso ter fé. Fé em mim mesmo e nos meus semelhantes. Mas não uma fé que me cega, pelo contrário. Uma fé que me faz abrir os olhos para o que está acontecendo a fim de que se tomem as medidas necessárias, sem acreditar numa outra justiça maior do que aquela que possa ser levada a cabo por mim mesmo ou pelos desígnios humanos. Medidas necessárias essas que não foram tomadas pelos governantes que sempre fecham os olhos para a pobreza dos que os elegem, pelos agentes gananciosos da especulação imobiliária que implantam mansões e jacuzzis onde deveria haver vegetação nativa e também, por que não, pelos mais desprovidos que insistem em morar em áreas de risco mesmo sabendo que são áreas de risco.
Ao sobrevivente que se regozijou em cadeia nacional na tevê por deus ter livrado a ele a sua família eu digo: não foram os desígnios divinos mas sim os desígnios humanos os responsáveis por toda essa tragédia. Não venha me dizer que você e sua família foram escolhidos por deus para sobreviver e mais de 800 pessoas foram escolhidas para morrer, senão eu vou dizer que esse seu deus é um crápula, um tirano, um sanguinário. Essas outras mais de 800 pessoas rezaram e acreditaram tanto quanto você. O que faz de você e sua família melhores que elas? Que egoísmo absurdo é esse que leva os teístas a acreditarem que eles possam ser poupados por seu deus e outros não numa situação de tragédia? Cadê a caridade cristã nesse tipo de pensamento? Ah sim... o plano divino.
Eu também, como aliás todo ser humano, tenho cá comigo os meus planos de vida. Planos mais imediatos, planos para o futuro. Mas em nenhum desses meus planos está incluído o sacrifício de mais de 800 vidas de uma só vez... É que meus planos são bem modestos, sabe?
Não querendo ser chato, mas já sendo... alguém já parou pra pensar no seu real sentido dessa frasezinha tão clichê? Eu diria que ela reflete uma atitude nada incentivadora, uma visão nada heróica (ou estóica, como queiram) da vida, visão essa inventada e disseminada por algum sujeito insatisfeito com o que foi sua vidinha no ano que passou.
Por que será que todo ano falamos a mesma porra? Que no próximo ano a vida recomeçará, que tudo será diferente, que isso e aquilo e blá blá blá... Por que insistimos em repetir o maldito slogan “Ano novo, vida nova”? Parece piada, né? Mas é como se nossas vidas fossem regidas por cronômetros de 12 meses, que serão zerados ao final de dezembro. Coloca-se janeiro como o mês oficial das mudanças, da renovação e de todas as esperanças... But, what a surprise!!!...continuamos todos, absolutamente todos, com a mesma vidinha que, por conta de nossos desejos insanos e ilógicos, deveria ter acabado no ano anterior.
Mas o fato é que não existe nem uma, nem umazinha razão cientificamente lógica para toda essa pré-disposição emocional que move os corações e mentes dessas pessoas. Porque, se assim o fosse, toda a civilização estaria embarcando nesse espírito de renovação. Mas sabemos que isso só acontece aqui no Ocidente. O restante do mundo não está nem aí para a queima de fogos na Time Square, na Avenida Paulista ou em Copacabana. Esse fato, na verdade, só mexe com a sociedade ocidental de matriz cristã (Américas, Europa, partes da Oceania, etc.). Outras regiões do mundo, apesar de toda a globalização, apesar de toda a influência da colonização anglo-ibérica, possuem diferentes matrizes de contagem do tempo, levando-as a terem comemorações distintas da nossa. Enfim, enquanto estamos entre Natal e Ano Novo, outras regiões estão nos seus dias mais ordinários. Ou seja: nenhuma mudança astral ou exotérica ocorre no mundo por conta da mudança no calendário. Nenhuma lua, nenhum sol, nenhuma estrela no céu vai fazer a vida de ninguém tomar um novo rumo a partir de 1º de janeiro...
Assim, entre dezembro e janeiro, todos os anos no Ocidente, comemora-se o Natal, festa do nascimento de Jesus Cristo (ponto de partida da contagem dos anos), e o Ano Novo: início de mais um ciclo em nosso calendário, contado a partir de 1º de janeiro. Mas é só isso, gente: início de mais um ciclo no calendário... nada a mais que isso!!! O calendário cristão é solar, tem 365 dias (ou 366) ou doze meses. Seguimos o calendário gregoriano, usado desde o século XVI, mas há também o calendário Juliano (usado na Igreja Ortodoxa).
Já no judaísmo, por exemplo, o primeiro mês do calendário chama-se Nissan (equivale, no calendário gregoriano, a 30 dias entre março e abril), mas o Ano Novo judaico começa em Tirshei (entre setembro e outubro). Os judeus iniciaram a contagem do seu calendário em 7 de outubro do ano 3760 a.C que, segundo eles, é o dia da Criação do mundo. Portando, eles estão no ano 5770. Caraca! Os caras estão adiantados pra cacete!!!!! rsrs
No islamismo, por outro lado, seu calendário (que é lunar) começa com a Hégira, a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 622 d.C. O ano começa no 1º de MuHarram. Como existem diferenças de dias entre os anos lunares e solares, as datas de início do ano islâmico, com relação ao calendário gregoriano, sofrem diversas mudanças. Em 2010, o 1º MuHarram foi em 7 de dezembro. Já em 2011, será em 26 de novembro. O calendário chinês, curiosamente, é lunissolar: tem 354 dias. Mas, a cada oito anos, são acrescentados mais 90 dias ao ano, para que haja sincronia entre o ano solar e o lunar. Enquanto estamos em 2011, os chineses já estão no ano 4708. Outro povo que está disparado na nossa frente... rsrs
O Japão usava um calendário lunissolar, mas, a partir de desdobramentos da Revolução Meiji, em 1873, resolveu adotar o calendário gregoriano também. O calendário hindu, apesar de coincidir com o gregoriano na contagem de dias e de anos bissextos, é contado a partir de 79 d.C. No entanto, na Índia, há uma enorme confusão, pois existem mais de 30 calendários regionais.
Ou seja... o ano que se inicia pode até ser novo para a ocidentalidade, verdade! Mas nossa vida é a mesma! O mundo, como um todo, é o mesmo! Ou alguém duvida que na primeira segunda-feira, logo após o período festivo, voltemos todos para nossas mesmas rotinas, nossos mesmos escritórios, nossos mesmos empregos? O fato é que continuamos com o mesmo carro, a mesma casa (ou o mesmo lote sob o viaduto), os mesmos amigos. Mantemos as mesmas manias, a mesma personalidade, os mesmos problemas... Só ficamos mais velhos, aliás como toda a humanidade. Então só me cabe perguntar: onde, cacete, está a tal da vida nova????
Mas vejam bem... Não é que eu seja contra o fato de as pessoas terem esperanças. Pelo contrário, acho até louvável. Esperança traz o sonho de um futuro melhor, dá forças para seguir em frente. Isso é fato! O que coloco em xeque não é a presença dela, mas sua ausência. A esperança não deveria ser incensada somente à meia-noite do dia 31 de dezembro, e sim nos acompanhar em todos os dias do ano. Sou a favor das mudanças. Acho que elas são necessárias sempre quando algo não está no seu devido lugar, mas elas não devem, necessariamente, ocorrer após os fogos de Copacabana ou depois que as sete ondas passarem sob nossos pés. E sim quando as oportunidades surgirem, seja em janeiro, em março, em agosto ou em novembro.
Tenham esperanças! Efetuem mudanças em suas vidas sempre que acharem necessário! Mantenham seus sonhos; nunca se desfaçam deles! Mas façam isso sempre que puder. O dia primeiro do ano é só mais um dia após o outro. Janeiro é só mais um mês. Nossa vida é um ciclo de atos nossos... não de anos, não de meses. Pois, como já disse Drummond... “Para ganhar um Ano Novo / que mereça este nome, / você, meu caro, tem de merecê-lo...”
RECEITA DE ANO NOVO
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.Carlos Drummond de Andrade
O BaileBem, bem... aqui estou mais uma vez ! Tudo recomeça. O salão já foi limpo, arrumado, iluminado. As filas de mesas pacientemente dispostas dos dois lados do salão. Agora fazer o mesmo com os copos, as garrafas... A vida, a alma, o mundo, nada está rigorosamente em ordem, mas o salão, pelo menos o salão, ele tem que estar. Arrumar o exterior para se ter a impressão de haver arrumado o interior. Quem disse que devemos nos ater a isso? Não sei. Mas é realmente uma responsabilidade essa minha, quase um poder! Dar-lhes essa frágil e débil aparência de organização. Quanto isso me custa entretanto! Cabe a mim a realização ou o fracasso de suas esperanças. Pois no baile, como na vida, nunca deve haver meio-termo: é tudo ou nada. E eu bem no meio. O que eles esperam de mim? Já estou farto de lhes preencher os espaços entre o desejado e o vivido. Nem consigo me lembrar do meu primeiro baile. Posso, contudo, assegurar a quem quiser crer que desde aquele momento eu já sabia o que eu viria a ser para sempre: o sujeito que organiza e ordena os sonhos alheios. O que esperam essas pessoas? E eu, o que eu espero? Ah sim... elas chegaram. Elas sempre chegam primeiro, as mulheres. Pelo menos aqui no baile – é importante observar. Sempre a mesma cena. A descida das escadas, elegante, segura. Um desfile até o fundo do salão para verificar no espelho se o exterior está em ordem. Retocada a máscara, a armadura resplandecente, à batalha! Allons les dames de la Patrie! Marchons, marchons! Elas esperam no compasso da música, sempre a mesma... “J’attendrai le jour et la nuit” – berra o toca-discos. Todas esperam. Olhando-se, se comparando talvez. Qual a mais bonita? Se cada uma pudesse adivinhar o interior umas das outras, seriam certamente todas a mesma e uma só. Elas seriam eu. E eu seria elas. Ou talvez eles, que acabam de chegar... os homens. O mesmo ritual: a descida, o desfile. Dá-se início ao espetáculo. As mulheres sentadas às mesas. Os homens ao balcão. Essas posições marcadas como num quadro ou num palco não são absolutamente por acaso. Dessa forma, pode-se observar o que é oferta e o que é demanda nas particularidades de cada um dos lados. Exatamente como um jogo. Um jogo de trocas. Um jogo de encaixe. De um lado, a presa; do outro, o caçador. Sem que se saiba muito bem quem faz qual papel. De qualquer maneira, é preciso se lançar ao jogo. Mas quem começa? Et maintenant que vais-je faire? A gente se pergunta sem esperar uma resposta que seja. De tout ce temps que sera ma vie? De todo esse pouco espaço de tempo que é o baile. De toda essa imensidão de tempo que é minha vida. De tous ces gens qui m’indiffèrent... Toda essa gente que me ignora e que me atrai o olhar ao mesmo tempo. Senhorita, há um bom tempo que a observo. Poderíamos abrir a dança, que tal? Senhoritas, há quase meio século que as observo. Senhores, há quase meio século que rio de vocês. Em todo caso, dansons joue contre joue! Eu já guardei suas fitas vermelhas por ocasião de suas primeiras férias remuneradas. Já lhes servi ein Bier ou einen Wein. Já colhi flores de uma primavera não muito calma, ainda que por todos os lugares se cantasse que tudo aquilo de que precisávamos era o amor – você se lembra, Michelle? Já vi tanta coisa nesse salão que eu não teria por que me desculpar se me colocasse acima de tudo isso, acima de todos vocês. Vocês são os mesmos há muito tempo. Apenas suas músicas e seus passos é que mudaram. Valsa, tango, twist, bebop, biguine, blues, boston, cakewalk, charleston, fox-trot, java, jerk, marcha, mambo, one-step, paso doble, rock, rumba, samba, slow fox, swing, discoteca – já vi todos, já dansei todos. E ainda assim não me sinto de forma alguma velho. Não fui eu que envelheci. Foram os ritmos que mudaram. Foi o deus do tempo que envelheceu. E eu, eu aqui rindo disso tudo. Não fosse assim, vocês não existiriam. Sou eu que lhes forneço o seus exteriores, damas e cavaleiros. As guerras, as ondas, as danças, elas passam. Eu, meu salão, minhas bebidas – seu whisky, senhora – eu continuo. Enquanto vocês desenrolam esse grotesco acasalamento, eu espero. Aliás, como sempre esperei. E esperarei. J’attendrai...
(Edmilson BORRET - num mês qualquer de 1989)