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9.10.10

O Baile... e ainda ontem eu tinha 20 anos (reload)*




O ano era 1989, eu tinha 22 anos. Na faculdade, a professora de francês passou um filme que nenhum de nós tinha visto ainda: O Baile, do diretor italiano Ettore Scola, um filme de 1983. Embasbacamento geral! Todos os alunos mudos, exatamente com os personagens do filme... Embora as bocas permanecessem fechadas, os queixos estavam caídos: mais do que uma figura de retórica, esse paradoxo da expressão facial revelava os dois opostos numa mesma reação de estupefação e deslumbre diante das imagens que invadiam nossas retinas. Nenhuma palavra, nenhum diálogo e 50 anos de história da França e do mundo se passavam em pouco menos de 2 horas de filme. Eu tinha que escrever alguma coisa depois daquilo. Sempre foi assim: quando algo me toca profundamente, eu tenho que escrever sobre.

Por isso, caros leitores, o texto que segue é um texto de juventude (e nesse caso aqui, traduzido – o que é pior). Queiram, portanto, perdoar o que pode haver de ingenuidade nele. Trata-se, no fundo, do ardor típico dos jovens. Ao arrumar velhos papéis, resolvi remexer nos sótãos da memória. E eis que esse texto meio que pulou entre vários outros. Mas... atenção, caros leitores! Não se invade impunemente o reino das memórias. Lágrimas sempre me vêm aos olhos lendo esses meus textos de outrora. Tantas coisas vividas... Ça voulait dire on a vingt ans... On était jeunes, on était fous...





O Baile


Bem, bem... aqui estou mais uma vez ! Tudo recomeça. O salão já foi limpo, arrumado, iluminado. As filas de mesas pacientemente dispostas dos dois lados do salão. Agora fazer o mesmo com os copos, as garrafas... A vida, a alma, o mundo, nada está rigorosamente em ordem, mas o salão, pelo menos o salão, ele tem que estar. Arrumar o exterior para se ter a impressão de haver arrumado o interior. Quem disse que devemos nos ater a isso? Não sei. Mas é realmente uma responsabilidade essa minha, quase um poder! Dar-lhes essa frágil e débil aparência de organização. Quanto isso me custa entretanto! Cabe a mim a realização ou o fracasso de suas esperanças. Pois no baile, como na vida, nunca deve haver meio-termo: é tudo ou nada. E eu bem no meio. O que eles esperam de mim? Já estou farto de lhes preencher os espaços entre o desejado e o vivido. Nem consigo me lembrar do meu primeiro baile. Posso, contudo, assegurar a quem quiser crer que desde aquele momento eu já sabia o que eu viria a ser para sempre: o sujeito que organiza e ordena os sonhos alheios. O que esperam essas pessoas? E eu, o que eu espero? Ah sim... elas chegaram. Elas sempre chegam primeiro, as mulheres. Pelo menos aqui no baile – é importante observar. Sempre a mesma cena. A descida das escadas, elegante, segura. Um desfile até o fundo do salão para verificar no espelho se o exterior está em ordem. Retocada a máscara, a armadura resplandecente, à batalha! Allons les dames de la Patrie! Marchons, marchons! Elas esperam no compasso da música, sempre a mesma... “J’attendrai le jour et la nuit” – berra o toca-discos. Todas esperam. Olhando-se, se comparando talvez. Qual a mais bonita? Se cada uma pudesse adivinhar o interior umas das outras, seriam certamente todas a mesma e uma só. Elas seriam eu. E eu seria elas. Ou talvez eles, que acabam de chegar... os homens. O mesmo ritual: a descida, o desfile. Dá-se início ao espetáculo. As mulheres sentadas às mesas. Os homens ao balcão. Essas posições marcadas como num quadro ou num palco não são absolutamente por acaso. Dessa forma, pode-se observar o que é oferta e o que é demanda nas particularidades de cada um dos lados. Exatamente como um jogo. Um jogo de trocas. Um jogo de encaixe. De um lado, a presa; do outro, o caçador. Sem que se saiba muito bem quem faz qual papel. De qualquer maneira, é preciso se lançar ao jogo. Mas quem começa? Et maintenant que vais-je faire? A gente se pergunta sem esperar uma resposta que seja. De tout ce temps que sera ma vie? De todo esse pouco espaço de tempo que é o baile. De toda essa imensidão de tempo que é minha vida. De tous ces gens qui m’indiffèrent... Toda essa gente que me ignora e que me atrai o olhar ao mesmo tempo. Senhorita, há um bom tempo que a observo. Poderíamos abrir a dança, que tal? Senhoritas, há quase meio século que as observo. Senhores, há quase meio século que rio de vocês. Em todo caso, dansons joue contre joue! Eu já guardei suas fitas vermelhas por ocasião de suas primeiras férias remuneradas. Já lhes servi ein Bier ou einen Wein. Já colhi flores de uma primavera não muito calma, ainda que por todos os lugares se cantasse que tudo aquilo de que precisávamos era o amor – você se lembra, Michelle? Já vi tanta coisa nesse salão que eu não teria por que me desculpar se me colocasse acima de tudo isso, acima de todos vocês. Vocês são os mesmos há muito tempo. Apenas suas músicas e seus passos é que mudaram. Valsa, tango, twist, bebop, biguine, blues, boston, cakewalk, charleston, fox-trot, java, jerk, marcha, mambo, one-step, paso doble, rock, rumba, samba, slow fox, swing, discoteca – já vi todos, já dansei todos. E ainda assim não me sinto de forma alguma velho. Não fui eu que envelheci. Foram os ritmos que mudaram. Foi o deus do tempo que envelheceu. E eu, eu aqui rindo disso tudo. Não fosse assim, vocês não existiriam. Sou eu que lhes forneço o seus exteriores, damas e cavaleiros. As guerras, as ondas, as danças, elas passam. Eu, meu salão, minhas bebidas – seu whisky, senhora – eu continuo. Enquanto vocês desenrolam esse grotesco acasalamento, eu espero. Aliás, como sempre esperei. E esperarei. J’attendrai...

(Edmilson BORRET - num mês qualquer de 1989)












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* Para quem domina a língua francesa, confira AQUI a postagem original desse texto em francês feita em junho de 2007.


Quem quiser saber mais sobre o filme O Baile e sobre o diretor Ettore Scola, basta clicar AQUI.

1.10.10

Diagnóstico

(Autoria da foto: Edmilson Borret - 03/06/2010)


Ai essa febre
essa dor no peito
essa falta de ar
esse amargor na boca
essa vontade de chorar
essa tristeza sem fim

- É grave, doutor?
- Tens o pulmão esquerdo
perfurado
morto
necrosado.
- E o coração, doutor,
o coração, o coração?...
- Ir-re-me-di-a-vel-men-te
perdido, meu rapaz...
Também
quem mandou abusar?
Quem mandou
não lhe saber os limites?

Quem mandou amar tanto?

(Edmilson BORRET)

Sobre homens e corações (reload)

(Título da foto: "Maior idade..." - Autoria: Edmilson Borret - 27/09/2009)



"Eu tenho um coração maior que o mundo
tu, formosa Marília, bem o sabes;

um coração, e basta,

onde tu mesma cabes"


(Tomás Antônio Gonzaga)





Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele estale.


(...)

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que homens se comunicam.)


(Carlos Drummond de Andrade)




Grandezas & Misérias

Nada foi dito.
Pensa-se muito
mas nada é dito.
E teu futuro não espelha
grandeza nenhuma.
No meu coração
sei que a fábula é única.
O tempo passa
a história o enfrenta.
No fundo do meu coração
percebo a miséria de se estar.
No meu coração sei que nada foi dito.
No meu coração - e eu o tenho.

Tu bem sabes, Marília -
eu quase tenho um coração
maior que o mundo.

(Edmilson BORRET)

29.9.10

Ensino religioso e pedofilia: as duas faces de uma mesma moeda... furada.




Há alguns dias, um jovenzinho que não deve ter nem 12 anos de idade resolveu postar no Orkut um desses scraps coletivos que o site de relacionamento agora permite. O jovenzinho em questão é aluno da escola onde trabalho: um amor de criança, diga-se de passagem. Mas causou-me profunda irritação o scrap coletivo que ele veiculava a seus amigos de Orkut. Tratava-se de uma mensagem que anda circulando pela internet na forma de e-mails e mensagens em sites de relacionamento onde se afirma que a candidata Dilma Rousseff não só seria a favor do aborto e do casamento entre homossexuais, como também estaria aliada a satanistas representados na figura de seu vice, Michel Temer. O texto que faz ameaças aos evangélicos caso a Dilma seja eleita, obviamente se trata de uma campanha apócrifa e sem fundamento algum. E isso, realmente, é o menos relevante: às vésperas de eleições, campanhas desse tipo sempre apareceram. O que realmente me preocupa, e muito, foi a veemência com que um garoto nessa idade tentava argumentar comigo que aquela mensagem que ele repassava tratava-se da mais pura verdade. Pois, muito provavelmente, assim esta lhe teria sido passada por algum adulto de sua confiança que professa sua mesma fé evangélica.

Isso me faz voltar a um tema de que já tratei aqui neste blog numa postagem anterior intitulada "Provavelmente não há Deus. Então pare de se preocupar e aproveite a sua vida". Nessa postagem eu alertava para o perigo da nefasta lavagem cerebral que as seitas evangélicas têm se empenhado em exercer nas crianças e adolescentes. Muitas vezes se apropriando até mesmo de elementos da cultura dessa faixa etária para alcançarem seus objetivos, como os ritmos musicais do funk e do rock, o RPG, as HQ’s, etc. Isso a que as igrejas (não só as evangélicas, mas a católica também e todas as outras religiões) costumam chamar de fé, eu costumo denominar “cegueira”. E essa cegueira – consequência, obviamente, de séculos de cultura – só tende a se agravar quando combinada com a profunda lavagem cerebral que se faz na cabeça dos jovens desde cedo. Nos templos e nas igrejas, assim como no seio das famílias, ensina-se desde cedo à criança a não pensar: esse “não pensar” entendido como uma prática pedagógica e de costumes que levaria a não questionar os desígnios de deus. E por que eu falo em prática pedagógica logo vocês irão entender.

Acredito que esse processo de não pensar chamado “fé” não é o caminho para o entendimento do mundo, mas sim está em oposição fundamental à ciência moderna e ao método científico, e é sectarista e perigoso. Pois o grande problema não é a fé ou a crença, mas sim a cegueira a que se condenam os jovens, possíveis repetidores (ou “multiplicadores”, para usar uma terminologia da Didática). Jovens esses que, assim como os adultos de seu círculo de convivência, chegam à conclusão de que eles (e apenas eles) estão certos, o resto do mundo errado; e que, destruindo as outras crenças (ou a ausência delas) poderão tornar o mundo um lugar melhor.

Num documentário do escritor Richard Dawkins, autor de Deus: um delírio, chamado “The Virus of Faith” (O Vírus da Fé), é mostrado como a religião se espalha como um vírus e se fixa nos jovens antes mesmo de eles terem capacidade de chegar a uma conclusão por si mesmos, simplesmente por uma tradição familiar já existente. O ensino religioso, segundo Dawkins, representa uma vertente de grande parte das escolas em países como a Inglaterra, por exemplo, citada no documentário.

Não só na Inglaterra, mas também no Brasil há vários colégios particulares reservados aos religiosos cristãos, que instituíram o ensino religioso lado a lado com o ensino científico. Neste tipo de ensino, o criacionismo é tratado como uma ciência – ou seja, algo de fundamento e comprovado cientificamente – e ensinado antes do evolucionismo de Darwin e de outras teorias importantes para a criação do pensamento científico.

Essa é uma prática pedagógica grave e perniciosa. Chegar ao ponto de apresentar teorias religiosas – que são dúbias e mudam conforme a crença de cada um – como formação científica comprovada é um dos jogos mais sujos de que as instituições religiosas poderiam lançar mão. Não é uma aula sobre Teologia, onde alguém a separa da Ciência e mostra as diversas crenças existentes - algo que seria interessantíssimo do ponto de vista sociológico para mostrar mais sobre a cultura de alguns povos. Associado à História e aos estudos da Sociologia, o ensino religioso por essa ótica faria até muito sentido, principalmente se tratado de maneira crítica.

Essas instituições, porém, querem apenas vender a ideia de que seu homenzinho imaginário é o verdadeiro e deve ser cultuado. Onde está a verdadeira educação nisto? Onde estão os verdadeiros cientistas, os verdadeiros professores? Eu sempre achei que os professores e as instituições educacionais tinham como principal objetivo informar e passar o conhecimento adiante, e não formar opinião na mente de jovens que não estão ainda preparados para fazer suas próprias escolhas. Vende-se como ensino fundamental uma ideologia, um processo de educação totalmente parcial, pois se ensina primeiro a sua religião, não se ensina as outras e ainda transforma o evolucionismo científico de Darwin em algo secundário e desprovido de fundamentação científica.

Há também a questão da ética nisso tudo. E os professores que atuam nessas escolas devem ter também a mesma religião para assimilar todo o ensino “teológico” que será repassado aos alunos? E um aluno que não queira ter ensino religioso pode se recusar a assistir às aulas? Será que ele será tratado de maneira igual pelos outros alunos e pelos professores? Mas então alguém poderia argumentar que, por se tratar de uma escola católica ou presbiteriana ou judaica, se você não é da religião, por que iria matricular seus filhos lá. Opa! Mas agora as escolas são instituições de ensino separatistas? Devemos agora entrar em uma escola apenas se ela for da mesma religião que a nossa?

Apesar de ateu, não entendo o ensino religioso como um risco realmente, mas talvez se torne a curto prazo uma forma de desrespeito à crença dos outros ou à religião (ou à não-religião) dos profissionais de ensino. Algo nisso tudo me apavora muito mais: o separatismo que este tipo de método de ensino pode causar na nossa população a médio e longo prazo, o risco que o país se transforme numa nova Irlanda.

Tive uma infância boa, como toda criança deveria ter, passada na rua nas brincadeiras de moleque que hoje tendem a desaparecer. Menino de subúrbio, o contato com a rua e com os vizinhos fazia bem para os meninos da minha época, que desde cedo aprendiam a se relacionar com outras pessoas fora do círculo familiar. Isso ainda é bem comum em algumas cidades do Brasil, principalmente nos subúrbios e no interior. Mas, cada dia mais, as pessoas nas grandes cidades estão vivendo em apartamentos, que oferecem mais segurança e ao mesmo tempo distanciam as pessoas que, com toda a correria de uma metrópole, sequer conhecem direito seus vizinhos. Uma criança que é criada em apartamento nas grandes cidades, não raro, não tem muitos amigos no local onde mora. O relacionamento com outras crianças, fora os familiares mais próximos, fica a cargo da igreja que a mãe e o pai frequentam e da escola onde estuda.

Na igreja uma criança somente poderá se relacionar com seus pares, ou seja, outras crianças que partilham da mesma religião que ela. A escola para esses jovens se torna um escape, um lugar onde ela irá se relacionar com crianças das mais diferentes crenças e tipos. Alguns mais pobres, outros mais ricos, religiões diversas, negros, brancos, orientais, etc. Com o aumento das escolas religiosas no país, criaríamos uma verdadeira separação. Católicos, evangélicos, judeus, cada um em sua escola. Isso, somado a uma educação cada vez mais distante e despreparada dos pais e à maneira como nossa sociedade já desrespeita a crença dos outros, onde iremos chegar daqui 20 ou 30 anos?

Não devemos esquecer que o medo do desconhecido e ódio ao diferente é o que nutre o crescimento dos fundamentalistas religiosos. Criar nossos jovens sem que eles tenham contato com pessoas diferentes na escola pode resultar em algo muito maior do que apenas uma falha na liberdade de escolha das crianças. Talvez esse seja o maior preço que tenhamos que pagar por tratar o ensino e a educação como uma moeda de troca e mais uma estratégia do marketing furado religioso.

Além de discordar deste ensino religioso tendencioso das escolas particulares, também discordo plenamente do ensino religioso que se quer para as escolas públicas; onde, dizem, tentariam aliar o ensino religioso ao respeito às outras pessoas (hilário esse argumento!), à disciplina e à disposição para aprendizagem - como se um ateu não pudesse desenvolver essas qualidades.

Por fim, algo que talvez escape ao entendimento de muitas pessoas nessa questão toda é a fragilidade das mentes de crianças e jovens. E, por isso, eu alerto sobre o caráter pernicioso da lavagem cerebral que as religiões tendem a fazer nesse grupo. Eu ouso comparar o perigo dessa lavagem cerebral ao que modernamente se convencionou rotular como o mais abjeto e repugnante dos delitos: a pedofilia. A justificativa (bastante justa, sem sombra de dúvida) para tal rotulação advém dos estudos da Psicologia, segundo a qual crianças de 6 a 10 anos encontram-se numa fase chamada "latência"; ou seja, é um período de reorganização e preparo para a puberdade e uma posterior vida adulta saudável do ponto de vista mental. A estimulação e exposição precoce ao erotismo levaria a criança a se lançar na vida sexual ativa sem a devida preparação.

E aqui eu coloco a pergunta: a exposição precoce a conceitos religiosos, nessa fase da vida, não seria também uma violência à criança? Estaria ela realmente preparada para portar antolhos já nessa idade? Com que direito os adultos, pais e educadores, decidem pela religiosidade ou não de uma criança? Richard Dawkins, em Deus: um delírio, chama a atenção para isso quando questiona: “nunca me canso de chamar a atenção para a aceitação tácita, por parte da sociedade, da rotulação de crianças pequenas com as opiniões de seus pais. Os ateus precisam se conscientizar da anomalia: a opinião religiosa é o tipo de opinião dos pais que - por consenso quase universal - pode ser colada em crianças que, na verdade, são pequenas demais para saber qual é a sua opinião. Não existe criança cristã: só filhos de pais cristãos.

27.7.10

Por que, por quem escrevo... (reload)

Hoje, ao completar 43 anos de idade, senti a necessidade de me reler, de me buscar em tempos passados. Algo assim como para avaliar o processo evolutivo de minhas ideias, meus atos, meus sentimentos... Se processo evolutivo realmente houve, enfim...

Mas acabei por me dar conta que isso me seria uma tarefa ingrata: a mim, como narrador autodiegético desse meu folhetim piegas, falta o distanciamento crítico necessário para tal.

Mas enfim, me relendo redescobri textos pelos quais guardo profundo carinho. São textos que falam muito de mim. Textos que denotam uma certa quietude de espírito, uma ternura, uma paciência... enfim, uma disposição mental e emocional que, não sei por que cargas d'água (sim, eu sei... só não ouso admitir), há muito venho perdendo, se já não perdi totalmente.

Dentre esses textos, permito-me fazer aqui o reload de dois deles que, na data de hoje, apresentam-se como perfeitos e adequados... No meu aniversário, algo de bom ressurge em mim... Parabéns para mim!



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Noite de hotel
Estou a zero, sempre o grande otário
E nunca o ato mero de compor uma canção
Pra mim foi tão desesperadamente necessário

(Caetano Veloso)


E nunca o ato mero de escrever um blog pra mim foi tão desesperadamente necessário!!!!! É catártico. Reinvento-me nas palavras. Refaço-me, descubro-me nelas. E delas me alimento. E, de certa forma, dou de comer também aos outros. É um lindo repasto.

Um antigo copidesque do jornal "O Estado de São Paulo" costumava dizer que uma "lauda em branco aceita tudo". Dizia isso para criticar a quantidade de sandices que se escreveu e que certamente se escreve até hoje, seja lá qual for a intenção. Talvez o meu blog seja mesmo um amontoado de sandices, talvez não... Mas isso a mim pouco importa. A lauda em branco é minha, nela eu escrevo o que eu quiser. E lê quem quiser também. De qualquer maneira, é minha terapia há alguns meses, é o meu tarja preta sem efeitos colaterais.

E aí, vieram me dizer certa vez que pouco visitavam meu blog por eu ser demasiadamente prolixo. Por serem minhas postagens muito longas. Lembrei-me de imediato de uma frase atribuída a Voltaire: "Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta."

E por que haveriam de ser curtas e concisas minhas postagens? Como exigir concisão de um cara que é um emaranhado louco de ideias? Escrever, pra mim, sempre foi muito fácil. O fluxo vem e deixo a coisa rolar. E quando me dou conta, saiu aquela verborragia toda de sempre. Eu simplesmente não entendo por que me condenam. Sou assim e pronto. Gostem ou não. Que não me leiam então, caramba!

Eu preciso escrever. É vital para mim. Aliás, acho que é a única coisa que sei fazer bem nessa minha vidinha de bosta. É como disse o Neruda: "Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca idéias." E eu tenho tantas ideias... Às vezes nem sei o que fazer delas. Elas me fustigam às vezes, me mordem, me esbofeteiam. E quando finjo que não lhes dou atenção, só consigo piorar as coisas. Uma vez uma ideia me cuspiu na cara; d'outra feita, uma quase me furou os olhos. Elas exigem muita atenção as ideias. Aí a gente tem que parar o que estiver fazendo no momento para lhes ouvir. Na verdade, o ato de escrever é isso: conversar com nossas ideias. Foi Sofocleto, acho, que disse que escrever é simplesmente "uma maneira de falarmos sem que nos interrompam".

Pois é, nunca o ato mero de escrever (um blog, um diário, um poema, um recado) pra mim foi tão desesperadamente necessário. Aliás, acho que para quase todo mundo. Só que poucos se dão conta disso. Para fazer mais uma citação (como as fiz nessa postagem, não???!!!), lembrei-me agora de Saramago: "Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não." E por que escrevo então? Bom, além dessa minha necessidade quase vital, escrevo porque quero ser lido. E como de muitas citações se compôs este texto...

"Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais."
(Gabriel García Márquez)

"Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."
(Clarice Lispector)



Evohé, amigos!


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Adoro nomes

Nomes em ã
De coisa como rã e ímã...

(Caetano Veloso)



De novo o Caetano. Ele diz gostar dos nomes em ã... Eu já gosto dos nomes em ente... Não sei por que, essa terminação me fascina. Uma palavra que adoro é premente: o que não permite demora, o que é urgente. Premente rima com gente. Gente pra mim é premente... Adoro gente. Amizade pra mim é premente. Consideração pra mim é premente. Premente é o afeto, o companheirismo, a dedicação ao outro. Disse em outra postagem que escrevo para ser lido e para que meus amigos me amem ainda mais, citando García Marques. Quem escreve descreve-se, é bem verdade. Mas também descreve outros. Descreve os seus pares. Esse retorno ao mesmo tema é para dizer que os entes que fazem a minha escritura é que me dão a minha verdadeira dimensão. Aproveito para pedir desculpa por não estar escrevendo nada tão premente assim nessa postagem. Não que o tivesse feito antes. Mas neste momento menos ainda. Vim aqui hoje mesmo só para comentar sobre os entes queridos. E isso pra mim já é muito...
Nas últimas 48 horas, cedi ao premente de rimar gentes. Já fazia algum tempo que tava querendo escrever esses entes, mas não sabia por onde começar. Havia o desejo, mas faltava a iniciativa, a motivação, o conteúdo… E sobejava a preguiça. No entanto o premente se impunha. Era preciso me dividir. Isso! Escrevo para me dividir... e para me multiplicar. Dividir para multiplicar. Escrevo para dividir com os entes coisas nem sempre tão prementes que vivencio, sentimentos, fatos marcantes, e muitas outras coisas… Enfim, para dividir com e nos entes algo do que eu sou… Nesse dividir-me, nesse partilhar de mim mesmo, espero que esses entes também se sintam motivados a dividir algo de si mesmos, efetuando-se assim a multiplicação da divisão… Sinto que uma onda de gozo me preenche quando me divido em entes… Me preenche tanto, que simplesmente não cabe só em mim… Também quero que o máximo possível de entes possam ter esse gozo premente de serem preenchidos desse jeito, ou de algum outro jeito parecido… Vamos aos entes!!!! Presentes... sempre...

17.7.10

CAMPANHA PELA VIDA: Eu cuido da minha, você cuida da sua!



"Compensando a anatomia, o povo fala sem ter dó
São dois olhos, dois ouvidos, mas a boca é uma só
E fala, o povo fala mesmo

O povo fala, o povo fala mesmo"

(Ana Carolina)



A ideia desta campanha não foi minha. Ela já rola pela internet faz tempo. Mas, muito embora seja uma campanha que aponte humanisticamente para atitudes nobres, fidalgas e dignas, não logrou surtir efeitos mais abrangentes. Há que se considerar, infelizmente, que a internet nunca foi campo fértil para se estimularem atitudes nobres, fidalgas e dignas...

De qualquer maneira, cá estou: mais um a se apropriar da boa intenção da campanha e tentar fazer a minha parte. Quem sabe um ou dois leitores desse ilustre desconhecido blog decida pôr em prática a ideia: reproduzir em bottons, camisetas, capas de caderno, outdoors... sei lá, algo que chame à atenção as cabecinhas mais toscas e limitadas.

Já perdi algum tempo aqui mesmo neste blog alertando para o perigo viciante que consiste em se dedicar à vida alheia. Numa postagem de 07/01/2007 intitulada “Alteridades”, eu já tinha cantado essa pedra. No texto cito, inclusive, um pequeno diálogo de autoria desconhecida para mostrar que, geralmente, a falha ou a falta que apontamos nos outros são nossas próprias falhas ou faltas projetadas. Ou, como diria Sartre, em uma de suas frases magistrais (e minha preferida) na peça Huis Clos, “l’enfer, c’est les autres” (“O inferno são os outros”). Transcrevo aqui o diálogo citado na postagem de 2007:



Olhar o defeito do outro

A mulher olhou através da sua janela, apontou para o quintal da vizinha e disse ao marido:
- Há dias venho observando como é encardida a roupa da vizinha. Eu teria vergonha de pendura no varal uma roupa tão mal lavada. Isso é relaxamento, um desleixo... Na verdade, acho que é preguiça.
O tempo passava... e, cada vez que ela voltava a observar, as roupas tinham um aspecto pior. Certo dia, uma surpresa! Ao reparar nas roupas da vizinha, ficou abismada. Estavam brancas, limpinhas, as cores vivas.
- Criou vergonha, disse ela. Perdeu a preguiça e esfregou mais, ou então trocou a marca do sabão.
- Nada disso, replicou o marido. Fui eu que lavei.
- Lavou a roupa da vizinha?
- Não, mulher. Lavei o vidro da janela. Era ele que estava encardido.



Há também uma outra postagem de 12/07/2007 intitulada “Contra a maledicência e o sarcasmo, use a abundância de ideias, de amores e de risos”, onde pego mais leve com os fofoqueiros e até revelo uma certa complacência paciente e alguma generosidade. Algo realmente espantoso para minha natureza cáustica e cínica!

O fato é que não há como ser complacente nem generoso com os fofoqueiros e maledicentes de plantão. E essa é a uma grande verdade. Para eles, de agora em diante, limito-me a proferir em alto e bom som um grande F.O.D.A.-S.E.

E digo mais: pelo que observo nos fofoqueiros e maledicentes que me rodeiam, cada vez mais me convenço de que a origem e motivo desencadeador dessa prática mesquinha só pode residir numa puta falta de sexo de qualidade. Pessoas que não trepam com frequência, ou trepam sem tesão, costumam dedicar boa parte de suas vidas a tomar conta da vida alheia. É sintomático isso. Prestem atenção na cara dos fofoqueiros: a pele é feia, sem viço, o sorriso é raro. E isso não tem nada a ver com o fato de, na maioria das vezes, tratarem-se de baiacus ou barangas. Não, não é a ausência de beleza exterior que condena essas pessoas a uma aridez sexual, mas sim de uma beleza interna que elas mesmas nunca conseguirão experienciar; porque seus corações e almas são assombrosamente medonhos, verdadeiros retratos de Dorian Gray. Essas pessoas são como aquelas retratadas no “Blues da piedade” de Cazuza, sem tirar nem pôr:


“Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas

Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm

Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia

Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada”


E agora, para os fofoqueiros e fofoqueiras: limitem-se a buscar suas satisfações (não só as sexuais) perdidas há tempos e larguem do meu pé! Porque eu, caros maledicentes de plantão, estou cagando para todos vocês. Porque tenho como missão justamente isso: incomodar todos vocês, chocar, escandalizar, perceber o mal-estar de vocês diante da minha cagada homérica no centro de suas salas assepticamente arrumadas e sem vida. Portanto, trepem mais... e fofoquem menos!




PARES CUM PARIBUS CONGREGANTUR


Quando nasci
não nasci torto
nem feio.
Como bom leonino
saltei na vida
e pedi a palavra
— Gauches são vocês, meus caros!

Onomástico sete
cabra no chinês
elemento fogo
incomodo antes
por ideologia
depois por aparecer.

Que me juntem aos pares
que me apontem na rua
que me lancem maldição!...
mas não me peçam
moderação ou paciência.

Não serei menor que meu mundo,
meu tempo, minha boca.
E além do mais
acredito na possibilidade
de se recuperarem os povos.

Fujo do igual
e no diferente
me encontro com o igual.

Vão lá vocês entender isso!

(Edmilson Borret)

22.6.10

Os medos do mundo são tantos...


“Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.”

(Oswaldo Montenegro)



Há quem diga que no mundo existem só dois tipos de pessoas: as corajosas e as medíocres. Maniqueísmos à parte, talvez haja na afirmação alguma verdade. O que me levaria, entretanto, a um sofrido impasse existencial que, ainda que subjetivo, me colocaria numa tensão quase que dialética com meu alterego: estarei eu no primeiro ou no segundo grupo de pessoas?

Sei lá... Mas acho que entre o que penso e o que deixo transparecer, ainda consigo me manter no primeiro grupo. E haja lombo para chibatadas por conta dessa escolha!

O fato é que há pessoas com medo de tudo, optando por entregar-se ao desânimo, à preguiça, à estagnação, à manutenção do status quo. O medo tem um poder destruidor, assemelha-se a um gás paralisante... Quem tem medo não age: repete ações pré-estabelecidas.

Vem-me à mente aqui a clássica e antológica fábula dos anos 70, Fernão Capelo Gaivota. Muito embora minha frieza de ateu convicto me leve a manter o pé atrás para o substrato cristão/espírita que perspassa toda a obra de Richard Bach, devo confessar que gosto muito do enredo do livro. Fernão Capelo Gaivota é uma ave que não se contenta em voar apenas para comer. Fugindo do lugar-comum, tem prazer em voar e esforça-se em aprender tudo sobre vôo. E, justamente por ser diferente do bando, é expulso, execrado, visto com olhos de desconfiança quase piedosa.

Para Fernão Capelo Gaivota, assim como para os que não se submetem aos medos e desmandos, o importante não é viver uma vida em busca do que comer; e sim, do conhecimento da arte do vôo e da velocidade perfeita. Ainda que seja a velocidade de um soco desferido num momento de raiva, de um grito que se ouviu a quilômetros ou de uma palavra impensada que te custe uma retratação na forma da lei.

A moral dessa história, contudo, é que existe o medo real e o medo inventado. E, quando paro para pensar nisso, fico me perguntando se o medo é, de fato, um senso de autopreservação ou uma forma vergonhosamente mágica de mantermos nossa parcela de mediocridade, cabisbaixos que nos tornamos, levando uma “meia vida”.

O medo tem sim seu valor, acredito eu. Por conta do medo, mensuramos o perigo. Por conta do medo, abstemo-nos de nos arriscar. Por conta do medo, traçamos um raio limite de até onde ir, sem risco... SEM RISCO!!!

Conformados, amarrados por grilhões imaginários (mas que sangram o pulso e, por que não, o peito), nos mantemos estáticos, assegurando uma vida sem sobressaltos e perigos inesperados.

Enquanto isso o tempo passa... sempre. Nossa “meia vida” está cada vez mais vinculada aos nossos pseudo-medos que asseguram nossa pseudoestabilidade até o nosso agendado fim. Previdenciário fim. Merecido e honrado fim.

Não nos damos conta que perdemos nossas referências e nossa ousadia por não estarmos preparados para tantos ousados e necessários riscos. Prevenimos de mais, acatamos de mais, nos mostramos de menos... Como crianças que vivem em estufas de ar puro e que não têm, portanto, anticorpos para brincar na rua... Acabamos por nos tornarmos os rinocerontes de Ionesco... Absurdamente rinocerontes! Caladamente rinocerontes!

Viver é altamente perigoso, já sentenciou Riobaldo em Grande sertão: veredas. E isso é fato. Mas também, não há que haver regras nesse jogo. Pois sem tentar, sem arriscar, sem gritar nem falar alto, é “meia vida” mesmo!... é WO vergonhoso! E isso também é fato!

Mensagem válida para jovens (de espírito e de matéria) que ainda pensam no futuro; para os tolos que fazem da negação e da autoilusão motivo para sofrer e fazer sofrer; para pais que não sabem como lidar com os filhos na cruel sociedade moderna; para os apaixonados e outros “ados” que têm medo de se mostrarem como tais; para todos os apegados a referenciais imutáveis e, especialmente, para cães que têm medo de vassoura e para professores que desaprenderam o revoltar-se.




O OCASO

“Par délicatesse, j’ai perdu ma vie.”

(Rimbaud)



Num átimo

despenquei do meu olimpo

e vim dar na terra dos rotos

esfarrapados e patéticos...

De besta que sou

acreditei na fagulha

que nos olhos de toda humanidade

me acenava

A desmedida fez de mim

o Prometeu desusadamente tolo

arrogante e néscio

Nesse sem-fim dos meus dias

a corroer-me cérebro e entranhas

Ai que estou farto da bondade alheia!...

E cansei-me de mim

Cansei das repetidas

palavras de amizade

dos homens e mulheres de bem

Quero o vendaval

dos sentimentos torpes e imundos

Quero a poeira dos solos

a queimar-me a língua

Quero a podridão da carniça

a invadir-me as narinas

Sou todo os Riobaldos desse mundo

perdido em sua neblina jagunça

nesse sertão sem vereda

- Ai essa Minas me aniquila !

Não me falem

da beleza das relações

Muito menos da promessa de vida

na aurora dos dias

Não me prometam

amizade eterna

Não vertam suas lágrimas

em minha intenção

Deixem-me em paz, oh bonzinhos de merda!

Que eu quero ir

na direção contrária ao engodo

de seus olhos

de escárnio e piedade

Soltem-se as amarras

do meu barco infeliz e louco

Que eu quero partir desse cais

e ir ser menos que eu

no mar revolto

das garrafas de náufragos...

Antes a frieza das geleiras

dos mares do norte...

Antes as tentações

no deserto escaldante

de minha alma...

Antes as pernas abertas das putas

e o canivete oculto dos michês...

A assepsia do sorriso

e das mãos de todos vocês

me enoja

Causam-me ânsias

suas certezas medrosas

suas felicidades fingidas

seus amores de novela das oito

Oh corja vil de perdedores!

Saiam do meu caminho

Desimpeçam minha sarjeta

Não me estendam a mão

Não me dirijam a palavra

Que os esquecerei

com a mesma violência

com que todos vocês outrora,

em seu canto de sirena,

me levaram à perdição.


(Edmilson Borret)

19.12.09

Eu fumo sim... e estou vivendo.


Hoje, o presidente do TJ-RJ suspendeu a liminar que permitia o fumo em ambientes reservados nos bares, restaurantes, hotéis e similares do Rio. Segundo ele, a liminar “caracterizava grave lesão à ordem pública, refletida na paralisação de importante política pública de proteção da saúde”. Em defesa da decisão do presidente do TJ, o procurador do Estado, Flávio Willeman, disse que a derrubada da liminar contribuiu “para a política do governo que visa a proteger a saúde da sociedade fluminense e, sobretudo, evitar a proliferação do fumo passivo”.

Babaquice! Babaquice! Babaquice! Mil vezes babaquice!!!

Mas peraí! De que ordem pública estamos falando? A mesma que proíbe meu cigarro, mas permite o caos urbano responsável pela liberação de gases tóxicos por carros, ônibus e caminhões nas vias públicas? Ô não-fumante, torça o nariz para o meu cigarrinho, ok? Vire seu rosto para o outro lado. Ah... desculpa! Nem vi que do outro lado havia uma rua apinhada de automóveis... Foi mal, tá?

Política pública de proteção da saúde???!!! Mijei de rir agora... Vivemos realmente na era da hipocrisia! Não fumem, cidadãos! Mas bebam! Bebam o quanto quiserem! Bebam para esquecer que vocês são todos uns otários por acreditarem nas boas intenções de nossas políticas públicas de proteção à saúde! Bebam, porque beber é permitido e até incentivado em propagandas caríssimas nas tv’s e rádios! Bebam, seus otários! Porque cu e miolo mole de bêbado não têm dono.

Evitar a proliferação do fumo passivo??!! E com a proliferação do embotamento cerebral ativo ninguém se preocupa?! O chato do Dráuzio Varella (porque, vamos combinar, todo antitabagista é um chato em potencial), em defesa da lei antitabaco de São Paulo, diz que “os fumantes passivos estão sujeitos a sofrer dos mesmos males que afligem os ativos”. Puta que pariu com batatas! Então tem passivinho aí inalando fumaça que não a mesma que a minha. Porque, em mais de 20 anos de fumo, minha pressão arterial é perfeita (aliás, até meio baixa), minha atividade cardiovascular não apresenta nada de anormal e, mesmo depois de perder quase a totalidade de um dos pulmões por conta de uma tuberculose não diagnosticada a tempo (atentem para o fato de que tuberculose é causada por uma bactéria, ok? nada a ver com o fumo),continuo fumando desbragadamente sem o menor sinal de insuficiência respiratória, cansaço ou algo parecido. Minha mãezinha, que nunca fumou, morreu aos 49 anos de ataque cardíaco fulminante. Minha tia, filha da mesma mãe e do mesmo pai, que fuma desde os 15 anos, ainda está firme e forte do alto de seus mais de 70 anos de vida. Donde concluo, do fundo da minha ignorância e da minha laicicidade no campo da medicina, que esse papo todo de associar o fumo a males pulmonares, sobretudo o câncer, é meio conversa pra boi dormir... O foda é que sofro de insônia crônica!rsrs

Mas, continuando nessa questão do fumante passivo, babaquice isso de proibir o fumo em todos os bares, restaurantes e afins. Bastaria que se estabelecessem bares e restaurantes onde o fumo fosse proibido e outros onde não fosse. Não-fumantes frequentariam os primeiros; fumantes, os segundos. Pronto! Igualdade de direitos para todos! Ou será que essa raça nojenta de fumantes tem mais é que permanecer mesmo sob essa espécie de regime de apartheid anacrônico em pleno século XXI?

Os detratores do fumo ainda saem com pérolas tais como: “O pior é, para quem não fuma, ter que respirar essa fumaça. Se querem fumar, que fumem...longe das pessoas! Não quero respirar essa fumaça que me dá alergia. É falta de respeito! Além de ser muito triste ver as pessoas se matando.” Ah... vão se foder, porra! E se eu for alérgico ao seu perfume vagabundo da Avon? Vou criar uma lei que proíba seu Cashmere Bouquet, seu Unforgetable ou seu Sweet Honesty em bares e restaurantes? Ou pior... E se você nem gostar de usar perfume vagabundo da Avon? E se você nem gostar de tomar banho? Serei obrigado a aguentar sua inhaca de bode nos bares e restaurantes que frequento? E se seu Avon vagabundo e sua inhaca de bode também me causarem problemas respiratórios? E vamos parar com esse papinho babaca de que “é triste ver as pessoas se matando”. Se você não quiser ver (até porque eu não acho que esteja me matando; e, se estiver, é problema meu: foda-se você!), é só não olhar pra mim, porra!

A verdade no fundo de tudo isso é que essa oposição exacerbada ao tabaco baseia-se mais no desgosto das pessoas que circundam os fumantes, do que realmente em motivos de saúde. E isso se deve ao mal desse início de século XXI: o tal do politicamente correto. O mesmo politicamente correto dos ciclistas, por exemplo, que se arvoram estar contribuindo para a salvação do planeta e que parecem pensar que, justamente por conta dessa missão altruística, não precisam obedecer às leis de trânsito. O mesmo politicamente correto dos moralistas de plantão, que veem pedofilia em tudo hoje em dia, mas que exacerbam a sexualidade precoce em seus filhinhos e filhinhas nas festas infantis de aniversário ao incentivarem os mesmos a dançarem o créu, na mais pura demonstração de orgulho paterno: “Olha como ele(a) dança direitinho! Que coisinha mais guti guti!” O mesmo politicamente correto que chama cego de deficiente visual; surdo, de deficiente auditivo; negro, de afro-descendente; mas que, no fundo, está cagando para esses grupos: cotas para eles e interferências na linguagem... já está de bom tamanho, eles que se virem com suas especificidades!

Esse mesmo politicamente correto que, há algumas décadas atrás, transformou todos os não-fumantes em fumantes passivos. E, com isso, condenou os ativos ao fogo eterno da culpa. Mas há uma coisa que poucos sabem e que as campanhas antifumo não dizem. No site da Organização Mundial de Saúde, procure que você achará uma informação que vai abalar seu mundinho de convicções intocáveis. O país de maior longevidade saudável é, por acaso, o terceiro onde o fumo per capita é maior. Que país é esse? O Japão. Saiba que japonês só não fuma quando toma banho de chuveiro.

Não fumo em locais fechados, não fumo em ônibus, nem em elevadores. Respeito seu direito nesses locais (embora você não respeite o meu com seu perfume vagabundo da Avon ou sua inhaca de bode). Portanto, seu babaca não-fumante, vou lutar com unhas e dentes (amarelados pela nicotina) por esse meu direito que, tenho a mais absoluta certeza, não prejudica ninguém senão o narcotráfico, que está à espreita, torcendo para que o cigarro seja cada vez mais banido.
Farei isso nem que tenha que entrar em luta corporal com algum segurança de bar ou restaurante, estabelecimento que será devidamente processado por ameaça ou dano à integridade física do cliente fumante aqui.

9.6.09

VERSOS SEM JEITO

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se o vento não mudar
se a casa não ruir
se o estômago não doer
prometo te escrever uns versos
desses que a gente escreve
meio sem jeito e enfeita
com rimas e coração

mas não repares não
no pouco de ritmo
no tanto de silêncios
serão versos marinados
(jamais insípidos
jamais inodoros
jamais incolores)
o gosto acre dos dias
temperando poéticas

mostra aos amigos
espalha nos quiosques
e diz que quem os escreveu
desaprendeu o sentir
no claro das noites
e se perdeu no itinerário
não os rasgues - por mais insanos
mostra aos amigos
e abre um sorriso
ao lembrar de mim

aproveita e lembra
de me amar um pouquinho
só um pouquinho, meu amor

pois se o vento não mudar
se a casa não ruir
se o estômago não doer
juro te escrever uns versos
desses que a gente escreve
meio sem peito e enfeita
fazendo das tripas coração

(Edmilson Borret)

10.3.09

"Provavelmente não há Deus. Então pare de se preocupar e aproveite a sua vida"

.



Esta frase inteligentíssima anda circulando nas laterais de ônibus (os chamados “ônibus ateus”) nas grandes capitais européias recentemente. E, como era de se esperar, tal frase tem suscitado reações por parte da cristandade que chegam a beirar a bestialidade. Em Gênova, a concessionária de publicidade nos meios de transporte públicos IgpDecaux considerou que o slogan é provocatório e não se enquadraria no código de ética da propaganda italiana. E aí eu fico me perguntando o que essa mesma concessionária diz a respeito dos vários panfletos e anúncios que vemos em ônibus e outros locais públicos quando das ocasiões festivas em homenagens às tantas “nossas senhoras” que a cristandade resolveu adorar. Dois pesos, duas medidas?! Cômodo, não? A associação italiana União dos Ateus e Agnósticos Racionalistas (UAAR) resolveu entrar com uma representação contra a concessionária e pedir que a prefeitura de Gênova revogue o contrato com a IgpDecaux. A prefeita da cidade, que é laica, tinha se declarado favorável à campanha, realçando o direito de liberdade de expressão. A UAAR pretende ir até a Corte de Justiça Européia, se for necessário. Pois é, lá esse papo de direito de expressão é levado muito a sério. Aqui no Brasil, anúncios como esse nem teriam chances de serem vinculados. Num país em que até mesmo manifestações artísticas como novelas, filmes, peças de teatro, desfiles de escola de samba, etc. são monitoradas pela santa igreja católica e protestante em busca de ímpios iconoclastas, imagina se um grupeco de ateus teria vez e voz.

Quando, há alguns meses atrás, resolvi “sair do armário” e me declarar ateu, provei o amargo gosto de todo o preconceito e discriminação declarados que até então eu nunca havia provado em toda minha existência. Mesmo tendo nascido negro, pobre e fudido, se preconceitos sofri na vida por conta dessa origem, estes foram, em sua grande maioria, velados e/ou dissimulados. Mas quando resolvi gritar “sou ateu”, choveram esculhambações abertas de toda parte. Eu poderia ter dito que gosto de comer criancinhas (“comer” no sentido de “deglutir”, ok?), que me amarro em dar a bunda ou qualquer outra coisa considerada cabeluda pelo senso comum, mas jamais afirmar que deus não existe. Isso não! As pessoas de bem não estão preparadas ainda para uma declaração tão bombástica assim...

As pessoas de bem excomungam meninas de 9 anos que abortaram depois de terem sofrido estupro cometido pelo próprio padrasto, mas não excomungam o estuprador. “O estupro é algo menos grave que o aborto”, segundo a lógica torta do arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho. As pessoas de bem se engalfinham para provar que são mais “de bem” que seus pares: matam semelhantes por suas crenças, mandam semelhantes para a fogueira ou para os campos de concentração e extermínio, empurram semelhantes para as faixas de Gaza e guetos mundo afora, desconsideram heranças culturais e étnicas ao demonizarem semelhantes em emissoras de TV e jornalecos distribuídos nos templos nababescos de bispos abastados pelo dízimo dos fiéis.

Mas o que mais me terrifica nas atitudes das pessoas de bem é a lavagem cerebral nefasta que ultimamente elas têm se empenhado em fazer nos jovens e adolescentes. No meu Orkut é crescente o número de alunos adolescentes que estampam em seus perfis o fato de serem protestantes... O problema é que a maioria deles nem sabe o que significa isso. Papagaios de pirata que são, repetem bordões do tipo“só Jesus salva”, “deus 100% fiel”, “eu acredito e confio em deus”, mas ostentam nicks do tipo “putão”, “muleke prostituto”, “muleke 157”(referência ao art. 157 do Código Penal que trata de roubo e latrocínio). Não que um prostituto (ainda que apenas no reino do virtual) ou um “ladrãozinho da boca pra fora” para impressionar as “gatinhas” não possa se declarar protestante. Mas o que percebo aí é a falta de convicção desses adolescentes, observada de forma flagrante em suas atitudes e pensamentos e revelada num breve passeio pelas suas descrições orkutianas, suas comunidades, seus vídeos do youtube, etc. Ouviram o galo cantar sem saber onde. Seus pastores (talvez lobos guardando ovelhas) acenam-lhes com promessas de vida eterna, não importando suas atitudes questionáveis ou delinquências visíveis: o que importa é atrair esses jovens para a seita. Ainda que eles não tenham a mínima idéia do que estão bradando ao propagarem o“só Jesus salva”, o que importa é que eles bradem com toda a força de seus jovens pulmões. Algumas dessas seitas chegaram ao cúmulo de se apropriarem daquilo que mais agrada a esses jovens, a cultura questionável do funk erótico, para levar adiante seu processo de lavagem cerebral. Adaptaram a sofrível “dança do Créu”para o universo cristão. É grotesca a cena nos templos: jovens rebolando a bundinha e a pélvis, executando gestual abertamente erotizado, quase que em transe, hipnotizados, repetindo palavras que parecem em total desacordo com a mise-en-scène que se vê: “Pra ir pro céu tem que ter muita oração/ Pra ir pro céu tem que ter é santidade/ O inimigo, ele não dá mole não/ Porque só Jesus Cristo é que salva de verdade/ Céu, céu, céu, céu, céu”... Tudo é válido, segundo os pastores dessas seitas. O negócio é arrebanhar um número cada vez maior de jovens. Seria cômico, se não fosse trágico. Vejam os vídeos:






Numa sociedade de pessoas de bem, há leis que protegem nossas crianças e adolescentes do assédio de, por exemplo, pedófilos e aliciadores do tráfico; mas infelizmente não há leis que os protejam da sanha dos sacerdotes. Estes tão ou mais perniciosos que aqueles...



E tudo isso por quê? Porque a humanidade não consegue viver sem seus mitos, não consegue sobreviver enquanto humanidade se não puder depositar o mérito de seus sucessos ou fracassos numa força sobrenatural, numa deidade qualquer: deus, jeová, alá, shiva, oxalá, osíris e tantos outros. Se, para fazer parte desse seleto rol das pessoas de bem, eu tiver que me render a essas deidades, prefiro ser olhado de esguelha pelos meus detratores. Decididamente, por essa ótica caótica, nunca serei uma pessoa de bem...

14.12.08

Capitu atirando em elefantes me fez chorar... And it rips through the silence

.




Não falarei da microssérie Capitu, a cujo último capítulo assisti na noite de ontem quase em prantos, com os olhos de professor de literatura que sou. Não. Tais olhos poderiam trair-me, como acreditou Bentinho terem-lhe igualmente feito os olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Deixo um pouco de lado, pois, o professor de literatura amante incondicional da obra machadiana, para dar voz ao espectador ávido de imagens e modernidades plasmadas numa telinha da tv. Até porque o texto de Machado sempre me fez dar boas risadas, mesmo os mais sisudos e graves. Já a magistral adaptação de Luiz Fernando Carvalho do romance Dom Casmurro levada ao ar pela Rede Globo esta semana me fez chorar em vários momentos, sobretudo o grand finale. A questão é que tenho tara por imagens. Imagens, com freqüência, têm o poder de me emocionar e, não raro, me comovem. Não as imagens mentais, mas as imagens visuais, as que me atingem direto as retinas, as que estão no enquadramento do meu olhar. E, nesse sentido, o trabalho realizado na microssérie Capitu foi foda!... Tão foda quanto usar a palavra “foda” num texto em que se vai, ainda que indiretamente, falar de Machado... Mas vá lá: a palavra já foi lançada.

Antes de mais nada, quero aqui refutar algumas críticas à micossérie, críticas essas que li em vários fóruns por esse mundão cibernético afora, notadamente na comunidade dedicada a Machado no Orkut. A primeira dessas críticas condena Luiz Fernando Carvalho por ele ter imprimido sua visão pessoal ao romance Dom Casmurro em detrimento do que seria “a visão de Machado”. Juro que nunca li tamanha tolice. Ora, se um diretor (seja ele diretor de uma microssérie, de um filme, de uma peça) não aplicar sua visão pessoal da obra, digam-me por favor o que ele deveria aplicar. E mais: a visão de Machado?! Quem aqui sabe qual foi ela? Talvez (vejam bem que digo “talvez”) só tenha existido uma pessoa no mundo que poderia nos dizer qual foi a visão do Machado. Infelizmente, estamos comemorando neste ano de 2008 o centenário da morte dessa pessoa: ele próprio, Machado de Assis! Outra crítica que se fez à microssérie foi a de que ela estaria detonando com a ambigüidade do texto original, com a dúvida que transpassa a escritura machadiana. Mais uma enorme besteira! Todos os ingredientes dessa ambigüidade e dessa dúvida estão presentes na adaptação televisiva. Como o próprio diretor explicou, ele quis fazer de Capitu “um ensaio sobre a dúvida”; e para tanto usou e abusou de expedientes bastante convincentes: o trabalho de fotografia, os movimentos em cena, a luz e as sombras, o tom operístico, tudo esteve a serviço do processo criativo que procurou, antes de qualquer coisa, evocar uma espécie de improvisação, “como um quadro que está sendo pintado no momento em que a cena acontece”. Todos esses elementos juntos serviram para deixar no espectador aquela mesma incerteza experimentada ao se ler o romance. Além disso, o personagem-narrador esteve presente o tempo todo na adaptação de Luiz Fernando Carvalho: o contraponto entre o que ele narrava e o que era mostrado só fez aumentar essa sensação de dúvida e ambigüidade (talvez até mais que no romance, ouso dizer). E o jogo de câmeras foi magistral: para as cenas que representam o ponto de vista de Dom Casmurro, criou-se uma lente especial de mais ou menos 30 cm de diâmetro, cheia de água, acoplada à frente da câmera “para dar à imagem a textura aquosa como o mar de ressaca dos olhos de Capitu e a aparência de alguém que ora flutua, ora é arrastado pelas águas do tempo – a matéria de Dom Casmurro são apenas suas memórias, suas fantasias”. E uma terceira crítica que muito vi nos tais fóruns foi a que se refere aos elementos de modernidade explícita presentes na microssérie: o rock e as músicas internacionais, os aparelhos de mp3, o celular, o trem da Supervia, o rap de Marcelo D2, entre outras coisas. Particularmente, eu achei tudo isso magnífico. Como falei no início, é com os olhos de espectador ávidos por imagens e inovações visuais que falarei de Capitu. E, nesse sentido, a microssérie cumpriu talvez mais um importante papel: reaproximar os jovens da obra machadiana, desfazer o preconceito que esses jovens têm da obra de Machado, a qual só lêem por obrigação escolar. “O que fiz foi reafirmá-lo em termos de conteúdo e linguagem. A síntese do texto é dele. Agora, é claro que eu espelhei aquelas situações e as lancei para outras relações de imagens, procurando um diálogo com possibilidades simbólicas da modernidade, alçando o texto a outras visibilidades”, conta Carvalho.


Mas, voltando à microssérie e esquecendo as críticas a ela, que prazer imenso experimentei nesses últimos cinco dias! O primeiro capítulo me pegou de jeito. Logo no início, a cena do trem superlotado da Central já foi um baque: os acordes da guitarra de Hendrix e o trem grafitado serpenteando pela noite contemporânea do Rio de Janeiro formaram o cenário perfeito para o encontro do personagem-narrador com o rapaz que ele conhecia de vista e de chapéu e que lhe daria a alcunha que serviria de título para o romance... Ah... “a vida tanto pode ser uma ópera quanto uma viagem de mar... ou uma batalha”...





Logo depois, a CENA!!!! Sim, a CENA… Capitu nos é apresentada no mesmo e exato momento em que nos é apresentada a música que vai ficar em nossos ouvidos por muito e muito tempo. “Elephant Gun” do Beirut ao fundo, enquanto Capitu jovem risca no chão um traço de giz sobre o qual Dom Casmurro caminha trôpego e faceiro. E ali fica a dúvida: caminhará Capitu nas linhas traçadas pelo narrador ou, ao contrário, foi o narrador-personagem que teve seu destino traçado por Capitu? A cena é linda de doer... Letícia Persiles deixa qualquer marmanjo apaixonado! Melhor escolha não poderia haver para representar a jovem Capitu dos “olhos de ressaca, como um força que arrastava para dentro”... Michel Melamed (que interpreta o já velho Dom Casmurro e o Bentinho adulto) dá show de atuação, nessa cena e em todas as outras... Apaixonei-me por ele também...





E então vêm duas cenas também magistrais: a da varanda e a da inscrição. Bentinho jovem oferecendo a hóstia a Capitu, num ritual perfeito de comunhão entre a inocência do rito católico e sensualidade dos passos quase dançados de Capitu. O muro foi transportado para o chão, que virou lousa onde os personagens inscreviam suas impressões a giz, como numa sala de aula... A vida como uma aprendizagem... E Capitu diz: “Meus sonhos são mais bonitos que os seus”... “Eram!”, concorda o velho Dom Casmurro. E Bentinho se dá conta: “Quer dizer então que eu amava Capitu e Capitu me amava?”... Ora, Bentinho, tu não leste a inscrição que ela fez ao esburacar o reboco do muro?! O muro, meu caro Bentinho, o muro falou por vós... E dá-lhe mais “Elephant Gun”!!!!









Mas é, talvez, no segundo capítulo que está a cena mais linda e perfeita de toda a microssérie... A cena do penteado, sem dúvida alguma, vai virar umas daquelas cenas antológicas da teledramaturgia brasileira... Sobre ela nem comentarei nada... Seria quase uma heresia... Capitu é uma esfinge a ser desvendada... Dom Casmurro chora vendo os dois nessa cena... Eu também... E quem não? Ah... “eis aqui um que não fará grande carreira nesse mundo: as emoções o dominam”...





No terceiro capítulo, a cena que chocou o mais conservadores... Escobar é apresentado dançando sobre uma mesa. A música é “Iron Man”, da banda de heavy metal Black Sabbath dos anos 70/80, tocada ao piano. A coreografia foi criticada por alguns por seu gestual efeminado (juro que li um “boiola” nos fóruns de discussão do Orkut!)... A cena é de uma teatralidade impressionantemente bela! Em alguma coisa, lembrou-me uma outra cena do filme Hair, em que o personagem Berger também dança sobre a mesa cantando “I’ve got life”. É o início dessa relação de amizade (alguns teimam em afirmar que era mais que isso) entre Bentinho e Escobar... Bentinho parece inebriado pela figura do amigo que acabara de conhecer, o amigo o seduz à primeira vista, a identificação de almas é imediata... Almas são casas: ora com muitas janelas e portas abertas, cheias de luz; ora, fechadas, cheia de sombras, semelhantes a conventos e prisões...





No quarto capítulo, mais emoção... É a cena do retorno de Bentinho já adulto após ter ido estudar em São Paulo. Aqui um parênteses para falar da brilhante atuação do ator Antonio Karnewale, que faz o agregado José Dias. Foi, ao lado do Melamed, uma das grandes surpresas da microssérie. Deu o tom exato e perfeito ao personagem dos muitos superlativos. Nesta cena, Bentinho retorna e é chamado por todos de Dr. Bento Santiago. D. Glória, tio Cosme, prima Justina e José Dias o paparicam ainda mais... “Eis aí teu filho... Filho, eis aí tua mãe”, diz José Dias. Mas o grande reencontro mesmo ainda estava por vir. Surge na sacada a Capitu também adulta: linda, estonteante!! Maria Fernanda Cândido mais bela que nunca empresta seu corpo e seus olhos à personagem feminina mais famosa de nossa literatura... Chorei mais uma vez...





Bem, foram muitas as cenas que me comoveram nessa adaptação de Dom Casmurro para a televisão. Para ser sincero, quase todas elas. O toque mágico de Luiz Fernando Carvalho foi essencial para que esse sentimento de “já-saudade” que estou experimentando começasse a se prefigurar já ontem no início do último capítulo. Que, aliás, segundo os críticos de plantão, foi o capítulo que mais se aproximou da atmosfera machadiana. Se foi, não sei. Só sei que foi muito lindo! A cena em que Escobar se afoga é outra que vai ficar na memória da televisão brasileira: o movimento de um enorme plástico balançado pelos próprios atores. Pierre Baitelli dá um show de expressão corporal! Logo em seguida, a cena do enterro: o cenário todo branco em contraste com o luto dos personagens... E a lágrima de Capitu diante do morto no caixão... Lágrimas quase de uma viúva, segundo o doentio ciúme de Bentinho. A seqüência de cenas é magnífica e tocante! Mais choro deste que vos escreve...





E então, o grand finale: o retorno de Ezequiel da Europa após a morte de Capitu, que lá foi enterrada durante a longa viagem que fez depois de sua separação de Bentinho. O choque de Bentinho ao ver o filho crescido, acreditando estar vendo seu amigo Escobar diante dele. A cena da morte de Capitu contada pelo filho: o espelho caindo-lhe das mãos (o mesmo da cena do penteado no segundo capítulo), o sorriso estampado-lhe no rosto na hora da morte.





Infelizmente, não há no site da Globo a cena da morte de José Dias. Essa vocês terão que esperar que saia a DVD para conferir. Mas foi belíssima. O último superlativo do agregado foi de machucar corações. Antonio Karnewale merecia o Oscar por ela!

A cena final é com Dom Casmurro congelando os personagens da história à medida que passa por eles, um a um, no galpão do Automóvel Club em que a microssérie foi gravada; isso ao som de “Elephant Gun”, que será, logo em seguida, substituída pela belíssima “Juízo Final” de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, enquanto mais uma vez o trem da Supervia serpenteia pelo Rio de Janeiro contemporâneo... E o velho Dom Casmurro - agora meio Bentinho, meio Capitu, meio D. Glória, meio José Dias (fantástica a incorporação de todos os outros personagens na figura de Dom Casmurro nessa cena final!) - soltando as últimas frases do romance: “A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios”... Chorei baldes...


E aí, cabe a vocês agora me perguntarem o porquê do título desta postagem. Bom, tem a ver com a postagem imediatamente anterior a esta, na qual falo sobre a banda Beirut e seu hit “Elephant Gun”. Não sei vocês, mas toda vez que eu reler agora Dom Casmurro, o farei com essa música na cabeça. Nunca uma música encaixou-se tão bem a uma história como essa ao texto de Machado. Até mesmo a letra da música tem algo de machadiano, tem algo niilista, pungente e cético:

If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight

Far from home, elephant gun
Let's take them down one by one
We'll lay it down, it's not been found, it's not around

Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down

Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down

And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the night

And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the silence, all that is left is all that i hide


(Se eu fosse jovem, eu fugiria desta cidade
Enterraria meus sonhos no subsolo
Como eu, nós bebemos até morrer, nós bebemos essa noite

Longe de casa, arma para elefante
Vamos derrubá-los um a um
Nós os deitaremos, eles não foram encontrados, não estão por aqui

Que comecem as estações - elas rolam como devem
Que comecem as estações - derrube o grande rei

E rasgam o silêncio do nosso acampamento à noite
E rasgam a noite

E rasgam o silêncio do nosso acampamento à noite
E rasgam o silêncio, tudo que é deixado é o que eu escondo)




É isso. A microssérie Capitu teve o mérito de atirar em elefantes. E foram vários os elefantes: desde as críticas mais pesadas à roupagem dada ao texto machadiano por Luiz Fernando Carvalho, passando pelo suposto estranhamento provocado naqueles que se arvoram donos da obra de Machado, até o preconceito que os jovens tinham com relação ao romance Dom Casmurro... Alguns silêncios foram, sem dúvida, rasgados com esse belíssimo trabalho de Luiz Fernando Carvalho.



A propósito: o primeiro elefante a tombar, acredito eu, foi o imbecil do Diogo Mainardi.
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