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18.9.07

Do virtual ao real



Tenho uma penca de amigos na web com os quais eu falo quase todo dia. Rolando essa página um pouco mais para baixo, vocês poderão inclusive ver um vídeo que postei no YouTube em que rasgo minha seda pura para esses “quase irmãos”. Rimos juntos, trocamos figurinhas, reclamamos do trabalho, da vida, brigamos às vezes, confundimos sentimentos, acompanhamos as novelas amorosas uns dos outros, ensaiamos conselhos – tudo como deve ser numa verdadeira relação de amizade.
Há muito pouco tempo, as amizades virtuais eram vistas com certo preconceito. A neurose urbana e moderna aconselhava o “pé-atrás” para esse tipo de relacionamento. Dizia-se ser coisa de nerds, sujeitos solitários, infelizes e incapazes de fazer amigos no mundo desplugado. Ou então, tarados ou serial killers em potencial à espreita de uma próxima vítima desavisada. Evidentemente que tudo isso mostrou-se ser uma grande bullshit que ficou lá nos primórdios da internet. Hoje, os limites que marcavam as relações on e offline esvaeceram: amigos virtuais tornam-se cada vez mais reais; e os reais, em contrapartida, na roda-viva do dia-a-dia, vão se tornando virtuais por conta das despedidas, dos deslocamentos espaciais e temporais – não raro ausentes, offline, volto logo, ocupados ou mesmo bloqueados e ignorados...

Talvez o grande barato da internet seja proporcionar o encontro de almas semelhantes que, provavelmente, nunca se cruzariam pelos caminhos do real. Ou, ainda que os caminhos coincidissem, jamais teriam a oportunidade de se enxergar e se encontrar. Quem pode garantir que o cara sentado ao nosso lado no metrô também não leu os mesmos livros que a gente, não ouve os mesmos cd’s, não tem os mesmos ídolos? E se aquela gostosa do escritório em que trabalhamos e cujo nome nem mesmo sabemos (por força do hábito de só nos referirmos a ela como “aquela do rabão maravilhoso”) também não leu tudo de Saramago ou Nothomb? São coisas que só iremos descobrir nas comunidades do Orkut... E lá nessas comunidades, descobrimos atônitos que a gostosa do rabão maravilhoso tem um cérebro e uma alma para além do rabão maravilhoso... e que a gente foi um babaca de antolhos durante muito tempo...
A alusão aqui a Saramago e Nothomb não foi gratuita. Lembrei-me de um depoimento que me fez uma amiga de Orkut (ainda virtual) que adora esses autores, onde ela fala justamente sobre isso: a Daia é carioca da gema, mas mora na França há anos... o depoimento pode ser lido no meu perfil do Orkut, mas reproduzo aqui:

“A vida tem dessas coisas: a gente nasce, cresce, namora, casa, tudo na mesma cidade. Vai embora pra nunca mais voltar. Se instala em um país novo, começa tudo outra vez, conhece mais gente, o tempo passa, os filhos crescem... E quando menos se espera, graças à magia da informática, conhece alguém que sempre esteve lá, na mesma cidade que você, com quem você tem afinidades, que escreve super bem e que parece ter sido seu amigo desde sempre. O que dizer? O orkut e o destino consertaram o erro imenso que foi ter vivido tanto tempo tão perto sem ter te conhecido.
Um beijo, Edmilson! Você é genial!”


E tem também os e-mails, o MSN e afins que são grandes aliados para se manter acesa a chama da amizade no reino da virtualidade. Porque um amigo, virtual ou não, precisa mesmo é ser lembrado, precisa ver que o outro está ali ao alcance de uma mensagem, de um recado, de uma piada; precisa acreditar que um dia ainda vão conseguir marcar aquele tão planejado e ansiosamente esperado encontro... ainda que leve semanas, meses, anos para que isso aconteça.


Para um pequeno grupo de amigos virtuais isso não demorou tanto assim. No último fim de semana, alguns amigos que se conheceram através da comunidade orkutiana Ame e dê vexame, tiveram o prazer imenso e indescritível de se encontrar, se abraçar, se beijar, conversar, brincar, rir – enfim, sentir a presença física um do outro no “orkontro” que promovemos por ocasião do primeiro aniversário da citada comunidade. E foi bom demais!!!!!! Estou até agora em estado de graça! E o mais interessante é que - descontados os 10 minutos iniciais de comoção e embasbacamento diante da comprovação e ratificação da beleza dos amigos (o que se nos apresentava ali no real era exatamente como se imaginara a partir do virtual) - parecia que todos que ali estavam já se conheciam há muito tempo: não havia necessidade de apresentações, de cada um falar um pouco de si; tal era o grau de intimidade e cumplicidade que todos compartilhavam. O “orkontro” aconteceu aqui no Rio, mais exatamente em Paquetá, e teve a duração de um fim de semana inteiro. Mas veio gente de São Paulo, de Resende e de vários pontos dessa imensa cidade que é o Rio de Janeiro. Relações que até então estavam mediadas pela telinha tornaram-se mais consolidadas, mais estreitas... O presencial explicitando as afinidades que já sabíamos existirem desde sempre... Foi lindo demais!

















O fato é que, independentemente de ser um amigo de infância, de faculdade, de Orkut, de blog ou de MSN, quando é sincero, fiel e dedicado será sempre um amigo real.


Confiram alguns momentos do "orkontro" nos vídeos a seguir!



1.9.07

Por trás de uma porta verde, há um diabo na carne da gente gritando do mais profundo de nossa garganta



"O único cinema real é o cinema pornográfico."

Jean-Luc Godard




Eram os primeiros anos da década de 80. Eu estava na faixa dos 14 ou 15 anos. Bigode na cara já, cara de homem feito, carteirinha do colégio adulterada, lá fui eu me aventurar naquele poeirinha do subúrbio de Madureira. Lembro-me até hoje daquele dia. Foi como um ritual de iniciação: o primeiro filme pornô (muitos viriam depois). Eu ali, no meio de todos aqueles homens: uns suados vindos do trabalho; outros cheirando a loção pós-barba (família, esposas e filhos esquecidos por algumas horas na sacrossantidade do lar); as mariconas velhas à espreita de uma oportunidade com os mais excitados... e eu ali, me achando o máximo, me sentindo um homem como todos eles, efetuando meu rito de passagem. Aos olhos do menino habituado até então aos “catecismos” do Carlos Zéfiro, às revistinhas suecas de cores fortes e mal impressas e aos romances proibidos de Cassandra Rios, a visão daqueles paus e bocetas enormes naquela tela também enorme foi como o descortinar de uma nova dimensão. Lembro-me de ter ficado excitado durante toda a projeção do filme, a cueca ensopada por um misto de pré-sêmen e suor... Ao chegar em casa, as duas punhetas seguidas foram inevitáveis... O filme em questão era nada mais nada menos que Garganta Profunda.

É dito que o primeiro filme pornográfico foi La Bonne Auberge. Rodado na Paris de 1908, o filme mostrava prostitutas interpretando a si mesmas em cenas de sexo explícito. Mas foi somente na década de 70 que houve o verdadeiro boom do chamado cinema pornô.

O grande responsável por alavancar a porno-indústria foi Gerard Damiano que dirigiu, entre 1972 e 1973, os dois maiores clássicos do gênero: Garganta Profunda (Deep Throat) e O Diabo na Carne de Miss Jones (The Devil In Miss Jones).

Em O Diabo na Carne de Miss Jones, por exemplo, Justine Jones foi uma mulher que morreu virgem e, por conta disso, iria arder no fogo do inferno (nada mais justo, se pensarmos bem). Mas ela consegue a permissão do Diabo para voltar à Terra e experimentar tudo aquilo que havia renegado em vida - incluindo bananas e cobras vivas. É, sem dúvida alguma, um dos filmes que transformou o pornô em gênero cinematográfico legítimo – Garganta Profunda e Por Trás da Porta Verde sendo os outros dois que eu colocaria na lista. Georgina Spelvin, a Miss Jones, apesar de um tanto passada (à beira dos quarenta anos, na época) convence como a solteirona virgem suicida que se converte, por artes do capeta, em deusa da luxúria. E a bela trilha sonora de autoria de Alden Shuman foi utilizada em comerciais e até em telenovelas da Globo.

Já Linda, de Deep Throat (Linda Lovelace interpreta a si mesma no filme), descobre que não atinge o orgasmo porque tem o clitóris na garganta, o que leva a moça a enveredar pelo que os antropólogos costumam chamar de "cultura oral". Garganta Profunda é talvez o filme pornográfico de maior sucesso de todos os tempos. Gravado em seis dias no mês de janeiro de 1972, em Miami Beach, escrito e dirigido por Gerard Damiano e estrelado por Linda Lovelace, teve um custo irrisório de 24 mil dólares financiados pela família mafiosa Peraino. Ele estreou três meses depois em abril de 1972 num cinema da Rua 42, em Manhattan, Nova York. Arrecadou só nos EUA cerca de 20 milhões de dólares, no mundo inteiro esse valor chega a 600 milhões. Por conta desse estrondoso sucesso, várias celebridades deram atenção ao polêmico filme: o cineasta Mike Nichols, o escritor Truman Capote, o ator Warren Beatty, o cantor Frank Sinatra, entre outros. Ele foi descrito pela revista Variety como o Ben-Hur do pornô e como O Poderoso Chefão do cinema erótico pelo presidente da Paramount, Frank Yablans. Garganta Profunda mudou a maneira de ver o cinema pornô, que a partir daí virou uma forma legítima de entretenimento.

Por Trás da Porta Verde (Behind The Green Door) é considerado o primeiro filme erótico para mulher que existiu. A personagem principal do filme é vivida pela loira Marilyn Chambers, que é seqüestrada e levada a um estranho clube de porta verde no qual ocorrem muitas depravações. O filme dá um show de direção e a história começa a ser conduzida de forma brilhante pela visão da mulher, na qual a antológica cena da orgia seria copiada de forma muito clara no filme De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick. Uma referência muito bem escolhida e acertada pelo sempre perfeccionista Kubrick.

É claro que as três histórias são inverossímeis, diria até viajantes demais, mas servem infelizmente de pretexto para toda a putaria mal acabada que rolaria a partir de então.

Mas o que importa aqui é salientar que esses filmes tinham histórias... e histórias até bem interessantes.

Lá pelos meados dos anos 80, entretanto, a filmografia pornô começa a abandonar os roteiros mais elaborados e parte pro "vamos-ver" da forma mais diretamente nua e crua possível (inevitável o trocadilho). Inaugurava-se aí a fase fast-food do cinema pornô.

Chegariam então os anos 90 e o século XXI. E, com o advento das locadoras de vídeo, da internet e da tv a cabo, tudo mudaria mais uma vez. Enredos, roteiros e histórias então cedem lugar a cenas estanques de poucos minutos, às vezes segundos. Envereda-se pelo filão de uma concepção funcionalista que acredita que a duração dos filmes não precisa ultrapassar o tempo da punheta mais afobada. E como se não bastassem os atores e atrizes (eu disse atores e atrizes?) de hoje em dia siliconizados, artificiais, construídos e depilados (o que são aqueles caras de saco raspado, meu Deus?!), o erotismo e a insinuação caem por terra de maneira broxante, e a gente experimenta a nostalgia de um tempo de inocência: aquele dos filmes de Gerard Damiano. Sim, de inocência... por mais paradoxal que possa parecer essa afirmação. Inocência nos olhos do menino querendo parecer homem naquele poeirinha de subúrbio... e até mesmo dos marmanjos que ali se encontravam. Naquela época, estávamos longe de imaginar que os atuais reality show, os programas de auditório e o entretenimento fácil e rasteiro que pululam na tv acabariam de forma tão infame com o efeito da surpresa e da sedução dos pornôs de outrora.

Pois se há um gênero merecedor de uma página especial e à parte, devido à polêmica que causa, este é o ramo do cinema pornô, tido muitas vezes como um cinema bandido, periférico e ordinário. Desmascarar este falso mito é mostrar que fazer cinema é fazer arte, independente do gênero e conteúdo. Há que se criticarem evidentemente os filmes que simplesmente exploram a sensualidade e recordar os que a mostravam de forma inteligente e com suas próprias razões de exibi-la. Pois não apenas os filmes devem ser inteligentes, as pessoas que a eles assistem também devem. É preciso ter olhos educados e exigentes, além de saber como apreciar este tipo de arte. A melhor maneira de se fazer isso é se desfazer de preconceitos babacas e desse sentimento de culpa que a sociedade tem em relação à questão sexual. Valores arcaicos que aliam sensualidade e sexualidade a algo impuro já deviam estar superados neste início de milênio. O erotismo sempre esteve ligado ao cinema de forma mais ou menos diluída. Esta junção de cinema e erotismo, com o passar do tempo, foi atingindo uma maior expressão, ainda que assumindo um falso caráter pecaminoso, buscando soluções inteligentes de criticar a imposição severa da censura. Devemos lembrar do diretor Russ Meyer, da década de 60, que soube aproveitar e criticar este "sexo culposo". Em seus filmes, as mulheres se faziam de puras para excitar o objeto de desejo, o que ocasionava um singelo estupro. Foi nos seus filmes, aliás, que surgiu uma das mulheres que se tornaria um ícone da época: a ruivíssima Uschi Digart, que estaria presente em várias capas de revistas famosas depois. Uma forma inteligente de que o diretor se utilizava para mostrar que a mulher, satisfazendo seus desejos, ainda assim não era culpada pelo fato ocorrido. A mulher pura querendo acabar com a repressão de seus impulsos. Bem, eu poderia também citar clássicos como A Bela da Tarde, de Luis Buñuel, em que Catherine Deneuve é Séverine - jovem rica e infeliz que procura um discreto bordel para realizar suas fantasias sexuais e conseguir o prazer que seu marido não consegue lhe dar. Ou mesmo À Procura de Mr. Goodbar , dirigido por Richard Brooks, em que a atriz principal Diane Keaton faz o papel de Theresa, uma mulher reprimida sexualmente que de dia dá aulas como professora de crianças surdas e, à noite, procura o prazer nos braços de homens desconhecidos. O talento de Diane Keaton mantém nossa atenção sobre o filme que foi indicado ao Oscar em 1978. O filme marcou também o primeiro trabalho substancial de Richard Gere e de Tom Berenger . Eram filmes ainda tímidos, mas importantes por chocar de maneira sutil e sensual.

Só nos resta a nós - os punheteiros "deslocados" e saudosistas - que gostaríamos de ver esta volta ao cinema pornô de qualidade, exigir cenas inteligentes, roteiros elaborados que justifiquem o erotismo em tela. Esperar que sejam mais bem selecionados os atores e as atrizes. E ver estes filmes com olhos apropriados. E pedir que, nos filmes pornôs atuais, as pessoas não façam apenas sexo, mas sim copiem, se precisar, a forma dos clássicos antigos nos quais as pessoas faziam amor.

Baixei nos emules da vida esses três clássicos. Foi muito emocionante assistir mais uma vez a esses filmes que povoaram minha imaginação de garoto nos momentos solitários. Obviamente que a excitação não foi nem um décimo da que experimentei anos atrás. Se o pau subiu, nem percebi. Donde concluo que eu também preciso resgatar a inocência de antes... Rever estes filmes trouxe uma nostalgia de mim mesmo...


Um presentinho para os leitores deste blog: a trilha sonora do filme O Diabo na Carne de Miss Jones, composta por Alden Shuman. Clique nos nomes das músicas para efetuar o download.


01. In the Beginning
02. Hellcat
03. I'm Comin' Home (muita linda, talvez a mais famosa)
04. The Teacher
05. Ladies in Love
06. Love Lesson
07. Beauty and the Beast
08. Walk With the Devil
09. Trio in the Round
10. Miss Jones Comes Home (reprise da 3ª música, também muito linda)
11. At the End

26.8.07

Tietagem pura do tio babão

Caríssimos amigos, tem coisa mais fantástica do que passar o domingão corujando os sobrinhos lindos e ouvindo a Gabriela, minha sobrinha de 15 aninhos, arrasando na voz e no violão?????.... Coisa mais linda!

Escutem e vejam vocês mesmos e digam se eu não tenho razão!




Confesso: quando o assunto são esses "anjinhos", sou coruja assumido.

Bjs e abraços extasiados do Ed!

23.8.07

NÃO EXISTEM HOMOSSEXUAIS

Caramba! E eu que sempre tive opiniões tão arraigadas, beirando o extremismo, sobre o assunto!!!! Após a leitura do texto que segue abaixo, estou fortemente inclinado a rever meu ponto de vista... É algo em que eu realmente nunca havia pensado. E que inveja, meu Deus! Esse é o tipo de texto que eu gostaria de ter escrito.

Agradeço do fundo do coração ao amigo que me enviou e possibilitou que eu o publicasse aqui no meu blog... Embora eu possa estar incorrendo em ato ilícito, por estar ferindo direitos autorais, vale a pena correr o risco... Até porque não deixo de citar o autor nem a fonte. Espero que o autor entenda...




NÃO EXISTEM HOMOSSEXUAIS

Acreditar que um adjetivo se converte em substantivo é uma forma de moralismo pela via errada

NÃO CONHEÇO homossexuais. Nem um para mostrar. Amigos meus dizem que existem. Outros dizem que são. Eu coço a cabeça e investigo: dois olhos, duas mãos, duas pernas. Um ser humano como outro qualquer. Mas eles recusam pertencer ao único gênero que interessa, o humano. E falam do “homossexual” como algumas crianças falam de fadas ou duendes. Mas os homossexuais existem?
A desconfiança deve ser atribuída a um insuspeito na matéria. Falo de Gore Vidal, que roubou o conceito a outro, Tennessee Williams: “homossexual” é adjetivo, não substantivo. Concordo, subscrevo. Não existe o “homossexual”. Existem atos homossexuais. E atos heterossexuais. Eu próprio, confesso, sou culpado de praticar os segundos (menos do que gostaria, é certo). E parte da humanidade pratica os primeiros. Mas acreditar que um adjetivo se converte em substantivo é uma forma de moralismo pela via errada. É elevar o sexo a condição identitária. Sou como ser humano o que faço na minha cama. Aberrante, não?
Uns anos atrás, aliás, comprei brigas feias na imprensa portuguesa por afirmar o óbvio: ter orgulho da sexualidade é como ter orgulho da cor da pele. Ilógico. Se a orientação sexual é um fato tão natural como a pigmentação dermatológica, não há nada de que ter orgulho. Podemos sentir orgulho da carreira que fomos construindo: do livro que escrevemos, da música que compusemos. O orgulho pressupõe mérito. E o mérito pressupõe escolha. Na sexualidade, não há escolha.
Infelizmente, o mundo não concorda. Os homossexuais existem e, mais, existe uma forma de vida gay com sua literatura, sua arte. Seu cinema. O Festival de Veneza, por exemplo, pretende instituir um Leão Queer para o melhor filme gay em concurso. Não é caso único. Berlim já tem um prêmio semelhante há duas décadas. É o Teddy Award.
Estranho. Olhando para a história da arte ocidental, é possível divisar obras que versaram sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo. A arte greco-latina surge dominada por essa pulsão homoerótica. Mas só um analfabeto fala em “arte grega gay” ou “arte romana gay”. E desconfio que o imperador Adriano se sentiria abismado se as estátuas de Antínoo, que mandou espalhar por Roma, fossem classificadas como exemplares de “estatuária gay”. A arte não tem gênero. Tem talento ou falta de.
E, já agora, tem bom senso ou falta de. Definir uma obra de arte pela orientação sexual dos personagens retratados não é apenas um caso de filistinismo cultural. É encerrar um quadro, um livro ou um filme no gueto ideológico das patrulhas. Exatamente como acontece com as próprias patrulhas, que transformam um fato natural em programa de exclusão. De auto-exclusão.
Eu, se fosse “homossexual”, sentiria certa ofensa se reduzissem a minha personalidade à inclinação (simbólica) do meu pênis. Mas eu prometo perguntar a um “homossexual” verdadeiro o que ele pensa sobre o assunto, caso eu consiga encontrar um no planeta Terra.

(por João Pereira Coutinho)

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Fonte do texto

19.8.07

"Se meu mundo cair, eu que aprenda a levitar"




ENSAIO SOBRE ADÃO

Há cinco possibilidades. Primeira: Adão caiu.
Segunda: foi empurrado. Terceira: saltou. Quarta:
ao debruçar-se sobre o parapeito perdeu o equilíbrio. Quinta:
nada digno de nota aconteceu a Adão.

A primeira, de que caiu, é precária demais. A quarta,
medo, foi examinada e revelou-se inútil. A quinta,
de que nada aconteceu, não interessa. A solução é a alternativa:
saltou ou foi empurrado. E a diferença está apenas

na questão de saber se o demônio
age de dentro para fora ou de fora para
dentro: aí está
o verdadeiro problema teológico.

(Robert Bringhurst - Tradução de João Cabral de Melo Neto)



Realmente um puta problema teológigo. Ou seja, não tem “ou seja”: Adão, com certeza já prevendo que viria servir a posteriori para trocadilhos infames do tipo “eu vi Adão”, talvez tenha sido o primeiro neurótico ou psicótico de que se tem notícia na história da humanidade. Também, coitado, Eva andava lá pelo jardim das delícias vendo a uva já naquele tempo... Uva lembra cacho, cacho lembra bagos... bagos lembra bolas.... Putz! Safadinha essa Eva, hein! Depois ainda vieram com um papo furado de que foi maçã (era uva, pô!... toda criança que foi alfabetizada pela cartilha Sonho de Talita sabe disso!). Ou seja (agora tem um “ou seja”), enquanto Eva deliciava-se com bagos e cobras (a rapaziada já era chapa quente naquele tempo), o moçoilo dos trocadilhos infames burilava suas dúvidas existenciais para saber se saltava ou se era empurrado... ou se deixava que nele empurrassem (os trocadilhos não foram à toa, tá vendo?)... Pirou, coitado. Surtou legal.

A questão é que Freud, lá pelos idos de 1923 e 24 (isso é perseguição, hein!), preocupado com a questão do que a psicanálise teria a dizer a respeito da saúde mental, escreveu dois pequenos textos: Neurose e psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose. Os dois falam basicamente sobre o mesmo tema: a tensa relação do eu com o isso, fonte das demandas pulsionais, diante das exigências do superego. No primeiro texto, Freud afirma que as neuroses e as psicoses são efeito de um fracasso das funções do eu na administração do conflito entre o superego e as pulsões. No segundo texto, ele avança um pouco mais e afirma que essas duas modalidades de sofrimento psíquico correspondem a dois modos de distorção da relação do sujeito com o real. Na neurose, sugere o viajandão, o eu está em conflito com as demandas do isso, em obediência ao superego e à realidade. Para atender às exigências destes dois senhores, o eu recalca as representações das demandas pulsionais do isso, perdendo ou deformando uma parte importante da realidade psíquica; ao mesmo tempo, para que a defesa funcione, o sujeito precisa conseguir ignorar todas as percepções da realidade externa que possam se associar à representação recalcada. No caso da psicose, é a relação com a realidade externa que se deforma, a cada vez que esta resiste a satisfazer a demanda pulsional, ou seja: a cada vez que se anuncia para o sujeito, como que vinda do real, a ameaça de uma castração que ele é incapaz de simbolizar.

Entenderam alguma coisa??!!! Não? Eu também não entendi porra nenhuma. O cara tava fumadão, não é possível! Mas achei o texto legal e profundo e resolvi colocar aqui pra vocês, caros leitores. Nem só de babaquices e viadagens se faz um blog, aprendam isso, ok? De qualquer forma, a passagem acima já nos dá pistas da real inquietação do nosso homem de argila. Eu tava tentando entender o que poderia ser esse “isso”. Mas atentando para os detalhes, observem que eu até mesmo sublinhei algumas palavrinhas-chave. Veja bem: enquanto a putinha da Eva ficava lá com os bagos da rapaziada e no tête-à-tête com a cobra (literalmente tête-à-tête), o camarada tinha que satisfazer a demanda pulsional do “isso” dele, oras! E quem tem um “isso” sabe que, quando o bicho começa a pulsar, a gente tem que dar vazão. Senão dá tilt. Só que no caso do nosso primeiro analisando da história, ele ainda tinha forçadamente que “ignorar todas as percepções da realidade externa” que se associassem a uma “representação recalcada” (palavras do fumadão). Ou seja, a tal da Eva, não obstante o sem número de uvas que andou vendo, devia ser feia pra caralho ainda por cima... E dá-lhe percepção da realidade ignorada, e dá-lhe representação recalcada... Mas a pulsação do “isso” tinha que ser satisfeita de alguma forma. A saída então era fechar os olhos e mandar ver na imaginação. No fundo, ele queria mesmo é que a mocinha lhe trouxesse logo a tal da maçã (eu continuo suspeitando que era uva), mas vinha-lhe sempre à mente o dedo acusador do Criador ameaçando-o com a possível “castração”. Castração entendida aí num sentido mais metafísico e filosófico, entenderam? Não? Bem, mas é isso... Daí então é que veio a fatídica queda. E até hoje não se sabe se ele saltou ou foi empurrado. E como resultado, nos deixou esse legado: a neurose e a psicose. Mais do que o “cair” mítico de que nos fala o gênesis de quase todas as religiões, acho que o pecado original, o legado que nos foi deixado, é justamente esse: nos tornamos seres neuróticos e psicóticos por medo da queda.

Mas o que é o “cair”, eu pergunto.

Também só fico na pergunta. Não achem que eu vou responder... Até porque eu também tô querendo saber. Cair, saltar ou ser empurrado... acho que tudo acaba sendo a mesma porra, se não soubermos manter a pose na hora H. É preciso classe e graça mesmo na queda. Minha adorada Maysa Matarazzo dizia: “Se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”. Apesar de gostar muito da vozinha rouca dela e do estilo dor-de-cotovelo, eu prefiro ir mais além... Vou de José Miguel Wisnik mesmo... sobretudo quando ele diz: “Se meu mundo cair, então caia devagar”... Mas não é verdade? Pra quê a pressa, né não? E, diferentemente da Maysa, ele diz: "eu que aprenda a levitar"... Caramba! Levantar é mole, foda mesmo é levitar depois de uma queda! Há que se ter muita leveza de espírito, meus caros!... Grande Wisnik! Esse é dos meus...

Ótimo domingo a todos!


SE MEU MUNDO CAIR

Se meu mundo cair
então caia devagar
não que eu queira assistir
sem saber evitar

cai por cima de mim:
quem vai se machucar
ou surfar sobre a dor
até o fim?

cola em mim até ouvir
coração no coração
o umbigo tem frio
e arrepio de sentir
o que fica pra trás
até perder o chão
ter o mundo na mão
sem ter mais
onde se segurar

se meu mundo cair
eu que aprenda a levitar

(José Miguel Wisnik)

15.8.07

O voyeurismo canalha do gauche


É interessante observar pessoas sem que elas nos vejam. É quase doentio isso, eu sei, mas é algo a que tenho me dedicado há algum tempo. Não diria que chego ao extremo de um L.B. Jeffries hitchcockiano (até porque não tenho o charme do James Stewart), mas observar aqui do meu cantinho me dá um prazer meio estranho... Sei não, mas tô sentindo um cheiro de uma sociopatia qualquer no ar... Alguém aí me indicaria um bom analista? hehehehehe

Ok, ok. No filme do mestre do suspense tinha um puta binóculo, um puta apartamento, uma puta janela numa puta sala e um puto numa cadeira de rodas observando a vizinhança... De tudo isso, acho que só tenho o tanto de puto e a imobilidade das pernas... não por estar também numa cadeira de rodas, mas por conta dessa letargia que parece ter se apoderado de mim. Há meses que fiz do espaço pouco do meu quarto o meu mundo. Daqui vejo tudo, espio tudo, ouço tudo, rio de tudo e choro por tudo. Meu quarto fede a cigarro e a esquecimento (eu ia falar "esperma", mas me contive por achar que isso chocaria aqueles que ainda não conseguem ligar o nome à coisa)... e nem a poeira dos móveis eu ouso retirar: faz parte da ambientação. E devo avisar que já estou de antemão mandando tomar no cu o primeiro filho da puta que vier me falar de síndrome do pânico, depressão, morte em vida ou coisa que o valha, ok? Não, não é nada disso. É só recolhimento mesmo. E ponto final. A única coisa que poderia me preocupar seria se essa imobilidade que se verifica no corpo atingisse as idéias. Aí sim, meus caros, vocês poderiam mandar vir o carro fúnebre, caixão, coroa e uma banda de rhythm‘n’blues (que eu vou querer um funeral como aqueles bem tradicionais de New Orleans... pois vamos combinar: o Ed aqui gosta é de pompa mesmo!!!!). Mas não, não é ainda o caso. No fundo, estou bem. Recolhido, é certo. Mas bem. Quando muito, os amigos (os verdadeiros amigos) poderiam me dizer a título de exortação as famosas palavras de ordem "vai à luta", "sai dessa lama, jacaré", "solta a franga" "volta pro reduto, luana" ou, para ser mais moderninho, uma que o Selton Mello usa numa propaganda de um banco veiculada atualmente na tv e nas rádios: "sai de trás dessa pilastra, se joga, criatura!"

Feito esse enoooooooorme parêntesis, volto ao tema do início: o meu voyeurismo atual. Muitos acham, por exemplo, que ando afastado do orkut e do MSN. Nada. Estou tão presente quanto antes. Só não interajo tanto quanto antes. Enquanto fico aqui baixando meus filminhos e meus mp3, observo as pessoas desfilando pelo orkut, pelas comunidades e, sobretudo, pelo MSN. Adoro, por exemplo, observar as mensagens pessoais que os amigos colocam logo após o nick no MSN... é cada coisa bem interessante mesmo! Sem falar nas músicas que as pessoas estão ouvindo! Dia desses, por exemplo, minha amiguinha Bel estava ouvindo "Another brick on the wall"... eu a via, ela não me via... cruel, não? hehehehehe

Just another brick on the wall... Só mais um tijolo no muro. That’s it! Somos apenas mais um tijolo na porra do muro, essa é a verdade. E fico aqui pensando que, enquanto passo meu tempo a observar pessoas, a vida corre lá fora, queira eu ou não. Meu peso, enquanto tijolo, será mensurado e considerado como algo significativo nesse processo todo? Ou será preciso que eu, enquanto tijolo em falso, despenque desse muro e caia na cabeça do passante desavisado para que se perceba que, ainda que tijolo, continuo por aqui? De qualquer maneira, haverá algum barulho (tijolo se espatifando em queda faz um estrondo do caralho) ou alguma fúria (tijolo nas fuças tem o poder de liberar muitos palavrões) na pequena história deste pobre idiota aqui?
"A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico que se empavona e se agita por uma hora no palco, sem que seja, após isso, ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de som e fúria, que nada significa."

Cito Macbeth de propósito: quero assim mostrar a degradação da minha natureza humana, o lado obscuro da minha alma, as conseqüências últimas da minha entrega total ao pecado. O delicioso pecado de espiar os outros. Pois hoje cedi mais uma vez a esse vício. Mas não foi no virtual. Foi bem real. Gargalhei intimamente ao observar a mediocridade e a pequenez humana disfarçada de tenacidade moral. Não sou nem nunca fui muito adepto de termos pejorativos como "vadia" ou "cachorra" para se referir às mulheres. É algo que não parece condizer muito bem com meu jeito meio feminil de ser. Mas a observação minuciosa das atitudes de uma certa mulher hoje me deu ganas de lançar mão de tais adjetivos. Pela primeira vez em muito tempo me deu vontade de ser meio troglodita, canalha e filho da puta com uma mulher. Continuei, porém, na minha observação das atitudes e reações da infeliz e quase que acabei por sentir pena da dita cuja. Observando-a, deleitei-me. Senti um prazer imenso ao vê-la se debater para querer mostrar retidão após ter tão descaradamente deixado cair a máscara da pretensa pureza. Não que eu seja moralista a ponto de achar relevante a pureza numa mulher. Mas coerência e honestidade, isso sim eu acho muito relevante. Caetanamente, não vou querer falar da malícia de toda mulher. Mas até para se ter malícia é preciso coerência, inteligência e honestidade, caramba!

A pobre passante desavisada foi vítima do meu tijolo em queda franca, coitada... Também, quem mandou esbarrar no muro? Não se esbarra impunemente num muro introspectivo e observador. Eu tava aqui na minha imobilidade e esquecimento, lembram? E muro é sempre muro. Rima com duro. Se não vai encarar que passe ao largo. Mas não me venha com falso puritanismo babaca porque eu, recém-chegado aos 40, degradado e degradante, obscuro e pecador, observo e observo sempre... É meu vício, é meu prazer calhorda. Sou um voyeur da alma humana. Perspicaz quando necessário. Fútil quando assim me convém. Sentimental quase chegando às raias do existencialismo (como observou minha amiguinha Cristiane) quando me sinto sufocado. Mas sarcástico, ácido e cruel quando instigado. E tudo isso, fruto desse voyeurismo a que venho me dedicando...

Coitada mesmo da passante desavisada de hoje! Se eu tivesse o charme inocente do James Stewart talvez ela tivesse tido mais sorte... Mas ela teve o azar de esbarrar com o sociopata esquisitão, sórdido e doentiamente observador do Ed aqui... Por mais que ela tenha tardiamente tentado se camuflar, eu a vi nua em pêlo...



"Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro."

(Mario de Sá-Carneiro)

26.7.07

Quase irmãos... Presque frères

Amanhã é meu aniversário, mas fui eu que decidi dar um presente a alguns amigos.

Em dois anos de Orkut, conheci pessoas fantásticas e maravilhosas... E algumas se tornaram indispensáveis na minha vida!...

Esse pequeno vídeo é justamente uma homenagem a alguns desses amigos. Aqui não estão todos os 400 contatos da minha lista orkutiana, é bom que se diga. Aqui estão os 10 amigos com os quais desenvolvi uma relação mais estreita, para além do virtual... Através do MSN, de telefonemas, de e-mails ou até mesmo pessoalmente, essas pessoas se tornaram mais que amigos virtuais; se tornaram confidentes... quase irmãos... Elas conhecem meus segredos, minhas dores, meus amores, meus choros e meus risos.

Obviamente que tenho outros amigos com quem também tenho esse mesmo tipo de relação (aliás, amigos estes que também estão na minha lista do orkut), mas este vídeo aqui é especialmente dedicado às relações que começaram graças ao virtual... Alguns ainda nem conheci pessoalmente, mas é como se já tivesse acontecido, tal é o grau de afinidade e cumplicidade !

Essa é a minha pequena homenagem a essas 10 almas que, de certa forma, ajudam a completar a minha!



Demain c’est mon aniversaire, mais c’est moi qui ai décidé de faire un cadeau à quelques amis.

En deux ans sur Orkut, j’ai connu pas mal de gens fantastiques et merveilleux... Et quelques-uns sont devenus indispensables dans ma vie !...

Cette petite vidéo-ci est justement un hommage à quelques-uns parmi ces amis. Ils ne sont pas là tous les 400 contacts de ma liste orkutienne, il faut que je le dise. Vous y trouverez les 10 amis avec lesquels j’ai développé un rapport plus étroit, au-delà du virtuel... Par MSN, coup de fil, mail ou même par des rencontres perso, ces gens sont devenus plus qu’amis virtuels, ils sont devenus des confidents... presque frères... Ils connaissent mes secrets, mes douleurs, mes amours, mes pleurs et mes rires.

Évidemment j’ai d’autres amis avec qui j’ai un rapport pareil (d’ailleurs, des amis qui sont aussi sur ma liste d’orkut), mas cette vidéo-ci est spécialement dédiée aux rapports qui sont issus du virtuel... Quelques-uns je n’ai pas toujours rencontrés en chair et os mais c’est comme s’il s’était déjà passé, à tel point on a de l’affinité et de la complicité !

Ceci est mon petit hommage à ces 10 âmes qui ont aidé, d’une certaine manière, à remplir la mienne !



Entretanto, é sabido que os vídeos no YouTube perdem muito em qualidade. Assim, se for do seu interesse, caros leitores, vocês podem baixar o arquivo wmv(50 MB) aqui.

Tout le monde sait pourtant que les vidéos sur YouTube perdent beaucoup de qualité, alors vous pouvez télécharger le fichier wmv (50 MB) ici, si vous y avez intérêt.

24.7.07

Temos todos duas vidas: uma a que sonhamos, outra a que vivemos

Dentre os filmes que tenho baixado da internet graças a minha novíssima, maravilhosa e super velocíssima banda-larga, hoje tirei o dia para rever o filme Quase dois irmãos, de Lúcia Murat, lançado em 2005. E falar sobre esse filme é bastante complicado, pois nele o que mais importa é a história em si... A produção, a fotografia, os atores estão excelentes, mas nada disso é maior do que a questão social apresentada. Como ser justo? Como alcançar justiça social? Eis a grande questão que parece permear toda a discussão a que o filme se propõe. Um sem número de complexidades caracteriza todos os níveis que podem servir de ponto de partida para falar sobre essa magnífica obra do cinema brasileiro: da história contada à montagem, das concepções ideológicas e políticas que afloram no filme ao balanço que nele se faz sobre a esquerda brasileira... Ah, a esquerda no Brasil... tsc tsc tsc tsc











A palavra “quase” que aparece no título é de uma exatidão impressionante (por mais paradoxal que essa minha afirmação possa parecer). Da tentativa de aproximação entre a classe média e os moradores da favela, o que sobra é apenas um planar sobre um imenso abismo. É dessa aproximação de aparência harmoniosa, porém tensa e nunca consolidada, que Lucia Murat vai construir as situações mais emblemáticas entre os personagens de Quase dois irmãos. A história – que basicamente acompanha dois personagens, Miguel e Jorginho, durante os últimos 50 anos – desenrola-se em três períodos distintos: a década de 50, época da infância dos dois; os anos 70 e o regime militar; e a época atual.


Na romântica década de 50, Miguel é filho de um boêmio jornalista branco e de classe média (interpretado por Fernando Eiras) que acompanha as rodas de samba promovidas pelo talentoso – mas nada reconhecido – Seu Jorge (interpretado por Luis Melodia), pai do negro Jorginho, amigo do filho do jornalista. Nos anos 70, os dois garotos reencontram-se na prisão da Ilha Grande. Miguel (Caco Ciocler), agora, é um intelectual de esquerda, preso por participar na luta armada, e Jorginho (Flávio Bauraqui ) é um criminoso comum. Passados 20 anos, Jorginho (agora interpretado por Antônio Pompeo), que continua na cadeia, agora no complexo de Bangu (de onde lidera o Comando Vermelho e o tráfico de drogas) é visitado pelo deputado federal Miguel (então interpretado por Werner Schünemann ) que busca autorização para implantar um projeto social no morro, numa tentativa desesperada de “afastar a juventude do tráfico” e, por tabela, distanciar sua própria filha do namorado, um “gerente” que opera os negócios de Jorginho. Não dá certo. Assim como não havia dado certo a união entre intelectuais e presos comuns 30 anos atrás. A filha de Miguel (a atriz Maria Flor) sobe o morro, mas também percebe a impossibilidade de firmar uma relação amorosa com Deley (Renato de Souza, ator do grupo Nós do Cinema), garoto de 20 e poucos anos que chefia o tráfico a mando de Jorginho.

Filmado sem continuidade temporal, e com uma fotografia lindíssima (um tom de “sépia” para os anos 50, preto e branco para a década de 70, e cores, nos anos 90), Quase dois irmãos é marcado pela maravilhosa trilha sonora de Naná Vasconcelos, entrecortada pela música “Quem me vê sorrindo”, de Cartola.

Muito bem realizado, mas com uma visão um tanto cética sobre a realidade, o filme serve como profunda reflexão sobre a necessidade de derrubarmos os muros e obstáculos para que possamos construir uma nova sociedade. E fica difícil não pensar no filme não só como um balanço político dos últimos anos da história brasileira, mas também como a reflexão um tanto quanto pessoal da própria Lúcia Murat (quase um mea culpa da esquerda), que foi dirigente estudantil, guerrilheira e presa política e que já havia discutido sobre os anos de chumbo da ditadura no seu filme Que bom te ver viva.

O filme tem como eixo central os desencontros entre esses dois mundos, cuja proximidade é ilusória. Ao metaforizar esta “realidade” a partir da dura convivência entre “morro” e o “asfalto”, Lúcia Murat reflete sobre esse gigantesco “quase” que separa os intelectuais e o povo, os negros e os brancos, os presos políticos e os comuns e, acima de tudo, a esquerda e os proletários... Pois é, meus amigos: engana-se quem pensou que alguma vez esquerda e proletariado estiveram juntos!... Marcada, de um lado, pelo ledo engano da experiência da guerrilha tupiniquim e, de outro lado, pelo aburguesamento e reformismo da “esquerda” institucionalizada dos dias de hoje (alguém aí lembrou de um José Dirceu?), essa reflexão da diretora emerge nesse alto grau de ceticismo. Assim, no filme, a gente vê esse “quase” se transformando em sólida e real impossibilidade na figura de um muro que, em dado momento, é levantado para separar os presos de uma mesma galeria da Ilha Grande.


Não é novidade para ninguém que o atual nível de organização do tráfico, em grupos como o Comando Vermelho, é atribuído à convivência entre presos políticos e comuns. Lúcia Murat, entretanto, faz um recorte no tempo e esmiúça o exato momento em que, em menor número em relação aos presos comuns que povoam o presídio, os presos políticos já não conseguem mais impor suas regras. E, se vendo ameaçados, exigem a separação. Regras essas, aliás, que se caracterizam por três leis que merecem destaque pelo conteúdo moralista que têm: “Aqui não tem pederastia (!?), aqui não se fuma maconha, aqui não se rouba”.

Homofobia, preconceito e moralismos à parte, o tal muro é erguido em meio a uma enorme polêmica que mostra as diferenças ideológicas entre as facções políticas de esquerda da época. A discussão sobre a possibilidade ou não de aproximar o “povo” das posturas revolucionárias tem, em um militante supostamente trotskista (mostrado de forma um tanto caricata), um dos poucos defensores da busca de uma solução para a questão. Aliás, é ainda através de metáforas – com o gato desse militante (que tem o sugestivo nome de Trotsky) – que também é cruelmente mostrado o tratamento que facções da própria esquerda dão aos seus adversários (matam o gato do coitado!). O filme trata, a cada seqüência, do choque de classes. Quando Miguel tenta persuadir outros presos comuns a seguirem as tais “regras do coletivo”, quando ele passa a impor medidas goela abaixo, os amigos de Jorginho obviamente não admitem e armam a insurreição contra a ordem vigente. E aí é simbólico quando a situação foge ao controle e o muro é erguido. Jorginho fala para Miguel: “Agora, sim... branco de um lado, negro do outro.... rico de um lado e pobre do outro”.

E é assim que os desencontros dos dois amigos de infância dentro da prisão, depois metaforizados mais uma vez nas grades que os separam na cadeia, já em 2004, prenunciam a tragédia para a qual o filme deslancha. Uma tragédia que, na visão da cética Lúcia Murat, é quase que inevitável. Tragédia moderna e urbana que marca os dois lados do muro, mas particularmente o “sonho” perdido da esquerda, representado por um verso de Fernando Pessoa que pontua todo o filme: “Temos todos duas vidas: uma a que sonhamos, outra a que vivemos”.

Embora fruto das experiências da diretora e de sua avaliação sobre o momento atual (ah, a esquerda no Brasil... tsc tsc tsc tsc), essa visão, infelizmente, parece ser a que impera, quando nos damos conta da impossibilidade de se erguerem pontes entre os mundos que o capitalismo cruelmente separou.

Como bem observou o escritor Paulo Lins – co-roteirista de Quase dois irmãos – “a gente só se encontra na arte”. Talvez a manifestação artística seja o único elo cultural possível e efetivo entre esses dois mundos. A única ponte possível sobre o abismo. O morro cria, a classe média assimila e agradece: o samba, o rap, o funk, o carnaval. Quase dois irmãos começa justamente com o compositor Luis Melodia, aqui no seu primeiro papel como ator, interpretando o pai de Jorginho, a entoar um samba, e dois moleques dançando na rua. “A música no filme tem um papel fundamental. É o ponto de encontro entre os dois mundos”.

E o filme é magnífico justamente nisso. Enquanto outros filmes brasileiros se esforçam para mostrar a violência como uma forma de chocar o público (não vá esperando um banho de sangue e tiroteios à la Cidade de Deus e Carandiru), Lúcia Murat trabalha brilhantemente com um roteiro em que o problema é visto como um todo: mostrando o seu início, ou seja, a violência de ontem e procurando, em 50 anos de história do Brasil, entender a raiz da violência de hoje, enfrentada nas grandes cidades.

O filme critica certa visão ideológica da esquerda brasileira dos anos 70 e nos mostra como ela não soube entender as camadas mais baixas da população. Esquerda esta que, sempre frente a uma dificuldade, cercou-se de proteção, colocando-se à parte do resto da sociedade. Entretanto, apesar da dura crítica à burguesia e à classe média, o enredo, em momento algum, é maniqueísta, personificando os personagens em mocinhos e bandidos. E aí reside a grandiosidade do filme. Questiona, instiga, mas não traz soluções. É assim o filme de Lúcia Murat: abre uma série de críticas e não nos ajuda a resolver os problemas – mas é esse mesmo o seu propósito. Talvez o grande mérito do filme foi o de ter dado uma aula de sociologia, abordando a relação entre a classe média branca e os negros favelados, sem ser chato em momento algum. O painel sociológico criado por Lucia Murat é pungente, é uma porrada no estômago. Obviamente, como qualquer avaliação abrangente, é passível de críticas. No entanto, os seus acertos são muito, muito maiores.

Belíssimo filme! O bonequinho Ed aqui aplaude de pé...


Assistam aqui ao trailer do filme.

Download aqui da linda canção do filme, com Luiz Melodia e Naná Vasconcelos.

20.7.07

Vôo 3054 da TAM - O dia que não acabou

Este foi, sem dúvida, o vídeo mais difícil que já fiz... Cada foto escolhida, cada palavra da letra da música, tudo me tocava profundamente. Ao terminar a tarefa, eu estava prostrado, esgotado, os olhos banhados em lágrimas...

Fico então aqui pensando que se eu, tão distante, me senti assim, o que devem estar passando os familiares e amigos das vítimas...

Não farei nenhum comentário sobre o acidente, não procurarei culpados... Minha revolta traduz-se em luto e nessa singela homenagem às vítimas, parentes e amigos.

19.7.07

Até quando esperar?

No Rio, em São Paulo, no nordeste do Brasil, em Paris, em Beirute, em Bagdá, em Nova Delhi, nos países da África ou da Ásia... é sempre a mesma violência, o mesmo descaso, a mesma tristeza, a mesma miséria... só mudam os rostos, os nomes, as cores e as línguas...


Jusqu'à quand attendre?

À Rio, à São Paulo, dans le nord-est du Brésil, à Paris, à Beyrouth, à Bagdad, à Delhi, dans les pays de l'Afrique ou de l'Asie... c'est toujours la même violence, la même indifférence, la même tristesse, la même misère.... il ne change que les visages, les noms, les couleurs et les langues...




Até quando esperar
(Plebe Rude)
Não é nossa culpa
nascemos já com uma benção
mas isso não é desculpa
pela má distribuição
Com tanta riqueza por ai
onde é que está, cadê sua fração?
Com tanta riqueza por aí
onde é que está, cadê sua fração?
Até quando esperar?
E cadê a esmola
que nós damos sem perceber
que aquele abençoado
poderia ter sido você
Com tanta riqueza por ai
onde é que está, cadê sua fração?
Com tanta riqueza por ai
onde é que está, cadê sua fração?
Até quando esperar?
A plebe ajoelhar esperando a ajuda de Deus?
Até quando esperar?
A plebe ajoelhar esperando a ajuda de Deus?
Posso, vigiar teu carro, te pedir trocados, engraxar seus sapatos?
Posso, vigiar teu carro, te pedir trocados, engraxar seus sapatos.
Se não é nossa culpa
nascemos já com uma benção
mas isso não é desculpa
pela má distribuição
Com tanta riqueza por ai
onde é que está, cadê sua fração?
Com tanta riqueza por ai
onde é que está, cadê sua fração?
Até quando esperar?
A plebe ajoelhar esperando a ajuda de Deus
Até quando esperar?
A plebe ajoelhar esperando a ajuda do divino Deus

15.7.07

Educação sentimental: estupre-me (ah Colbain, o que fizeste dessa geração?)


Não sei se estou mais para o flaubertiano Frederico Moreau, se para o enigmático e vampiresco Dalton Trevisan ("O que não me contam eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.”) ou se para a fresquinha da Paula Toller; mas que ando tentando desesperadamente minha educação sentimental, isso é fato. Só sei que ultimamente venho construindo meus discursozinhos a partir de idéias que tentam assimilar um sem número de divagações que levam invariavelmente a um feixe de relações mitológicas, memorialísticas e psicológicas. Estou prenhe de mitos, memórias e psicologia barata. E isso, longe de me parecer uma riqueza, tem me deixado meio fora do ar. Não sei o que fazer de tudo isso. Há tanto o que dizer, caros leitores, e sinto que não sei por onde começar ou o que selecionar. É como se estivesse num espaço bem apertado, o in utero do Kurt Colbain, o cordão umbilical querendo me estrangular, os fórceps pressionando minha têmporas e eu no meio de muitas águas, querendo rasgar o ventre de minha mãe e vendo alguma luz no fim do túnel, onde sorrisos, lágrimas e aplausos me aguardam (Venha para a luz, Caroline!). Mas ao mesmo tempo que esse difícil parto é um rasgar de ventre e vagina maternos, é também um me rasgar. Se me exponho, me deixo rasgar, me estuprar.... Mas é isso aí, meu caro Colbain, i'm not the only one, rape me my friend, rape me again, hate me, do it and do it again, que eu pareço gostar e permitir que assim me invadam... De qualquer maneira, eu ando tão nervoso pra te escrever os versos mais profundos... ninguém vai resistir se eu usar os meus poderes para o mal... eu treino a tarde inteira o que é que eu vou falar, vai ser tão simples quanto eu vejo nas revistas... ninguém me explicopu na escola, ninguém vai me responder...


O que estou tentando dizer é que preciso pedir desculpas a vocês, caros leitores, pelos meus desvarios “umbiguistas” em recentes postagens, inclusive nesta aqui. Como está escrito acima, na descrição deste blog, “aqui vocês encontrarão considerações esparsas, algumas vezes sem nexo algum, a respeito desse meu caminhar: desabafos diários, poemas, notícias que li, trechos de livros que me tocaram”.... Certo é que ficou faltando um “etc” nessa enumeração, mas tão mais certo é que esse “etc” - e gostaria de deixar isso bem claro - que este “etc” não deveria ir, em hipótese alguma, até o delírio sentimental.


Assim sendo, faço aqui minha autocrítica, caros leitores. Aqui estou, de joelhos, a pedir-lhes clemência. Eu sei que não agi bem. Tinha o caminho reto à minha frente (ainda que “gauche”) e desviei-me. Me protegiam e me guardavam de todo mal os altíssimos desígnios deste blog e posterguei-os. Fui fraco, caprichoso, fútil e “umbiguista”. Fui enigmático, dúbio, inconseqüente e, sobretudo, incapaz de dirigir os meus esforços, a preciosa energia do meu intelecto, para a procura do bem comum. Revelei-me, em suma, lamentavelmente burguês. Por isso peço-lhes que me condenem já e com dureza, pois diante de tão horrendo crime qualquer pena será leve.
Sim, caros leitores, de cabeça baixa e mais corcunda do que já sou, eu admito: por mais que a palavra me queime os lábios ao pronunciá-la, eu fui um miserável traidor da sempiterna causa deste blog tão revoltadinho como se propunha no início. Que me venham as chibatadas, as masmorras infectas, o livrinho vermelho e as cuias de arroz mal cozido. Eu mereço isso tudo e muito mais.


Mea culpa, mea maxima culpa!



ALTA VOLTAGEM

Tudo plugado
Tudo me ardendo
Tá tudo assim queimando em mim
Como salva de fogos

(Adriana Calcanhoto)


Numa manhã cinza e inacabada
tudo ardeu em mim em segundos
E aquela presença absoluta
circulando em mim contínua
elétrica e indetectável
ricocheteando em minhas células
Como numa noite de São João
a vista turvou para o céu pontilhado
o cruzeiro de ponta a cabeça
inverteu a polaridade dos meus dias
e a festa acabou mais cedo...
Mas poeta cambaleante e fraco
ainda tentei em versos tímidos
seguir a procissão das horas restantes
visitando antigos altares
rememorando nos ex-votos
a carne trêmula e trigueira
que andava à mostra e nua
nos templos urbanos da luxúria
ora envolta em vapores de eucalipto
ora difusa pela fumaça e projetores...
Chegada a noite no entanto
não era mais uma metrópole a atravessar
mas a certeza do silêncio
da casa inabitada onde outrora
o tilintar de taças, o resvalar de corpos
davam a vã promessa de um longo caminho...
O copo d’água sobre o criado-mudo
repousa em prisma à meia-luz
antes de conduzir garganta abaixo
o milagre científico e único que
dissimula a contento essa ardência
sem contudo aniquilá-la...
De uma ponta a outra do meu corpo
em correntes de múltiplos ampères
assola-me paradoxal voltagem...
Só isolante achado da modernidade
protegerá incauto e ávido amante
a desafiar temerário e louco
a fulminância de minhas descargas.


(Edmilson BORRET)

12.7.07

Contra a maledicência e o sarcasmo, use a abundância de idéias, de amores e de risos

Então estive pensando que quando nada parece acontecer, é que coisas talvez estejam sub-repticiamente acontecendo. Quando pensamos haver uma aridez do caralho no campo das idéias, talvez o germezinho de uma puta idéia esteja se debatendo e se contorcendo justamente aí. Agora sigam meu raciocino: germe, campo... caralhos me mordam, fertilização!!!! Pois é, caros leitores, o tal germezinho fertilizou meu campo das idéias... engravidei! E como sempre fui/sou meio precoce em quase tudo, engravidei, gestei e pari.... tudo a um só tempo. Porque a grande sacação que me veio, na verdade, é que devo me forçar a ter idéias. Os lapsos deste blog estão cada vez maiores. Então apelei para a técnica da cornucópia (nada a ver com corno que trabalha com máquina de xerox, já vou logo avisando aos mais néscios!) para ter mais idéias para escrever. A partir de agora escreverei sobre tudo.... A cornucópia da abundância, segundo a lenda, é uma espiral que funciona assim: quanto mais usamos, mais riqueza vem. Na vida, isso também se aplica: aos ricos nada falta, tudo abunda. Como não sou rico de money, mas biliardário de idéias, resolvi delas fazer uso constante, só pra ver/sentir se algo em mim abunda... (caramba! adorei essa cacofonia... hehehehe)

A chave de tudo parece ser o humor. Porque o mau humor arrasta os pensamentos ralo abaixo, isso é uma verdade facilmente comprovável. E um sorriso sempre melhora tudo, gentileza gera gentileza e coisa e tal e aquele papo todo. A mais pura verdade, a gente sabe.
É que sempre se achou que o mau humor tivesse certo glamour filosófico... e até mesmo um certo charme... Pura cascata, caros leitores... Mau humor, pelo menos no campo das idéias, é uma praga. A partir do momento que resolvi cagar pro mau humor (mais uma vez, sigam meu raciocínio: cocô, o resultado da cagada, fertiliza tudo), parece-me que idéias começaram a brotar de todo canto. E cá estou para abrir esse imeeeeeenso parêntesis para discutir o impacto da extinção do mau humor e do sarcasmo para o meu ecossistema social e pessoal. Ah sim, outra praga a ser erradicada, não sem certa nostalgia, é a maledicência - esta é velha companheira, mas é fato que também nos arrasta à baixeza... Então passemos a freqüentar ambientes mais elevados: mosteiros no Himalaia, cumes nevados nos Andes, Machu Pichu ou até mesmo coberturas em Manhattan servem... mas há que se sair do rés-do-chão, do mesquinho e banal... freqüentar essas alturas onde todos parecem felizes e riem o tempo todo. Rico ri à toa, pode reparar. Os sábios também riem, embora mais discretamente. Estou treinando um riso búdico pra ver se abunda pro meu lado... (pausa para a foto)

Porque o grande segredo mesmo dessa porra toda é o seguinte, gente: se você não é feliz (pelo menos não como gostaria de ser), finja! Aja como se fosse, sorria muito, você perceberá como é fácil enganar os outros e até a si mesmo! Veja bem que esse é um segredinho de família que estou passando em primeira mão para vocês, caros leitores... E agora eu estou assim, quem nem besta, rindo à toa... Mesmo tendo um caminhão de motivos para estar puto da vida. Ok, ok, ok... Vocês não estão entendendo xongas do que estou falando com todo esse meu papinho risonho... É que estou cá pensando com meus botões (na verdade, velcro) se devo contar ou não... (pausa para eu pensar se vou contar mesmo)

Está bem, está bem... Mas vamos combinar assim: como boa celebridade que sou, eu não falo da minha vida pessoal... então vamos falar tudo de maneira genérica, ok?

Digamos assim que há algum tempo atrás eu andei meio no osso, na capa do Batman, como se diz... Mais para tiririca do brejo do que para flor do campo. A coisa estava “sinistra”, como diz a galera aqui da área onde moro: o financeiro, o emocional e, por conseguinte, a saúde, parece que tudo resolveu subir no telhado ao mesmo tempo... Mas vamos pular genericamente essa parte, porque o importante mesmo é entrar na tal lei da abundância. Porque o que vou dizer todo mundo sabe, e isso é fato, então volto a falar em termos genéricos: quando a gente está em fase encalhada, nem os mendigos olham quando a gente passa. Mas quando arranja alguém, é batata: todos os ex-futuros-casos, ficantes eventuais, potenciais e congêneres resolvem lembrar da sua existência, aparecer, telefonar, e até se materializar do nada, por acaso, no meio do seu caminho. Nada garante que, dentre estes, esteja o amor de sua vida, mas as chances aumentam muito... hehehehe... E da mesma maneira que se pode aplicar a lei da abundância e da cornucópia no campo das idéias, o mesmo se pode fazer no campo dos encontros...

Mas aí, vocês lembram das três pragas de que falei que impedem qualquer coisa de fertilizar e germinar? Sim, o mau humor, o sarcasmo e a maledicência.... Bem, o mau humor rolava por minha conta mesmo, no tempo em que eu não sabia fingir. O sarcasmo e a maledicência vinham dos olhos da vizinhança aqui da rua. Já haviam até mesmo decretado minha morte por antecedência. Tornei-me, aos olhos da massa ignara, colheita maldita 1, 2 e 3 e todas as continuações e refilmagens possíveis e imagináveis. Se fuderam de verde e amarelo!!!! Estou mais firme que nunca.

O que posso revelar genericamente aos leitores de Caras (ops, deste blog) é que, ao que parece, os olhos maledicentes agora me perscrutam por conta do meu riso à toa e dos meus muitos encontros. Como a maldição-do-fim-do-século dos tempos das vacas magras não se confirmou, os boçais agora andam espantados com a minha cornucópia.... Só sei que estou rindo de orelha a orelha e cagando e andando para esses infelizes.... E só fertilizando os campos (tanto das idéias quanto dos encontros) por onde ando.

Mas vejam bem: tudo isso que eu disse aqui, foi assim genericamente falando, ok? Não está mais aqui quem falou... hehehehe

Bjs e abraços felizes do Ed!

25.6.07

De casamento, de separação & de solidão


Pois é, minha amiga. Outro dia falávamos sobre solidão e nos magoávamos. Entretanto, eu podia perceber que você me compreendia ainda assim. Ah, as impossibilidades de algumas relações!!! A gente se mascara, não?! Depois, você me perguntou: "Na sua opinião, o casamento pode dar certo?" Não lhe respondi de imediato... Eis-me aqui então.

Já que vamos falar de solidão, devo lhe dizer que não entendo nada do assunto. Eu a trago em mim, sinto-a em mim, mas dela não entendo nada... da mesma forma que nada entendo de casamento. O que eu poderia falar? Você desdenhou e riu de mim por nunca tê-lo vivenciado. Mas será realmente necessário tê-lo vivido para falar disso? – fico aqui me perguntando... Ok, então. Falemos de relação antes de tudo! O casamento sendo apenas umas dessas possíveis relações, e não "A Relação".

O que é uma relação entre duas pessoas? Eu costumo chamá-la de "um desvio". Uma forma de se fazer um desvio para escapar ao caminho inequívoco da solidão. Somos todos seres solitários, isso é uma verdade inescapável. Faz parte da natureza humana. Portamos em nós uma solidão inata. Aliás, nos dois momentos limites de nossa terrena existência, estamos total e completamente sós: ao nascer, nascemos sós; ao morrer, morremos sós. Entre esses dois momentos, o que fazemos nada mais é do que disfarçar essa condição natural do homem. O casal, a tal cara-metade, é o disfarce por excelência de toda essa porra. Com freqüência, esperamos que o outro preencha o vazio de nossa existência. A gente diz "eu te amo" e isso já é uma puta responsabilidade para o outro. Puta que pariu! Que carga de responsabilidade jogamos nas costas do outro quando lhe dizemos um simples (porém necessário, veja bem!) "eu te amo"!!!! E vice-versa... Assumimos responsabilidades para com o outro que, no fundo, seriam responsabilidades para com nós mesmos. "Tudo bem, eu te acolho, eu te abrigo" – dizemos com freqüência. Quando na verdade, gostaríamos de dizer:"Acolha-me, abriga-me!"

É preciso ter muito colhão para aceitarmos nossa solidão, minha amiga! É preciso saber que o casal não é uma solução, um fim – mas um meio. O tal do amor sempiterno não existe, ok? Ah sim, e aquele e-foram-felizes-para-sempre também não existe, ok? Sinto informar que não lhe contaram toda a estória. Que parte do "era uma vez" que você não entendeu? Voltando, porém, à sua pergunta: sim, sem dúvida alguma o casamento pode ser algo que dê certo. Se assim não fosse, ele não teria razão de existir, oras! O que as pessoas insistem em fazer, no entanto, é tentar conferir ao casamento esse status de mutualidade tanto da felicidade quanto da infelicidade. Pela mãe do guarda, minha querida! Não quero ser um estraga prazeres, mas felicidade ou infelicidade são estados d’alma próprios ao indivíduo (a própria etimologia da palavra já dá conta disso: "indivíduo" = indivisível, único, só). Só dele, de mais ninguém. Como compartilhar esses sentimentos? A gente compartilha cama, escovas de dentes, dívidas, momentos, sensações e uma pá de outras coisas numa relação. Mas não venha me dizer que sentimentos são compartilhados... na boa. No casal, no casamento como queira enfim, temos quando muito duas liberdades que vão assumir o compromisso de se descobrirem, se enfrentarem, se respeitarem e talvez se ampliarem. E também (calma! não me voe no meu pescoço ainda não, minha amiga!) o desejo!!! É... às vezes o desejo também se volta para um objeto fora do casal... E aí? E aí que o casal não dá conta disso. Que pretensão querer achar que pode dar!!!! Como eu falei, o objeto do desejo instalou-se fora do casal. A parte envolvida e interessada do casal que vá lá e resolva. E volte ou não. E pronto!

Se aceitarmos a idéia de casal como passagem, como meio, como conhecimento do outro (no fundo, conhecimento de nós mesmos, já que não conhecemos ninguém além de nós mesmos... às vezes nem isso), e não como complementação um do outro, como compartilhamento - é bem possível que o casamento torne-se algo mais cool, mais leve. Além do mais, a gente se caga de medo mesmo não é do fracasso do casamento, mas da possível solidão que disso possa advir. Mas porra, se nos reconhecermos como seres solitários por excelência, se não considerarmos o casamento, o casal, como a solução para essa solidão... caramba! por que pirar tanto nessa batatinha???!!!! É muito mais fácil suportar a solidão depois de uma separação quando a gente se dá conta de que ela sempre esteve presente. Ela nunca se foi. Que dor e que maravilha quando a gente percebe isso! A gente se sente frágil, mas estranhamente forte ao mesmo tempo. A gente sabe que perdeu algo, mas em contrapartida, sabe também que ganhou. A gente ganhou. O quê? A paz. E isso é tudo. A paz que advém do entendimento das coisas, do entendimento de si próprio. "Gnoti seautón", conhece-te a ti mesmo: está lá no pórtico do templo a Apolo, em Delfos. Conhecimento é poder, minha querida! Se você conhece o seu mal, se você lhe retira a máscara, você o domina.

Se o casamento pode dar certo, você me pergunta? É óbvio que pode. Da mesma forma que a separação também pode. Cabe a nós possibilitar isso. Vamos para a vida, minha amiga, vamos para a vida!


Cada aeroporto
É um nome num papel
Um mesmo rosto
Atrás do mesmo véu
Alguém me espera
E adivinha no céu
Que meu novo nome é
Um estranho que me quer
E eu quero tudo
No próximo hotel
Por mar, por terra
Ou via Embratel
Ela é um satélite
E só quer me amar
Mas não há promessas, não
É só um novo lugar

Viver é bom
Nas curvas da estrada
Solidão, que nada
Viver é bom
Partida e chegada
Solidão, que nada

Ela é um satélite
E só quer me amar
Mas não há promessas, não
É só um novo lugar

(Cazuza)

18.6.07

Le Bal... et hier encore j'avais vingt ans



C'était l'an 1989, j'allais sur mes 22 ans. À la fac des Lettres, le prof de français nous avait fait voir le film pour la première fois. C'était Le Bal, d'Ettore Scola, de 1983. Étonnement général! Tous les étudiants muets, comme les personnages du film. Lèvres cousues ou bouches béantes, voilà les deux opposés d'une même réaction de stupéfaction et d'émerveillement face aux images qui défilaient devant nos yeux. Aucun mot, aucun dialogue, et 50 ans de l'histoire de France se déroulaient dans presque deux heures de film. Il me fallait écrire quelque chose après la séance. Ça a toujours été comme ça: quand quelque chose me touche, il faut que j'écrive.
Alors, les amis, le texte suivant est un texte de jeunesse. Veuillez excuser ce qu'il puisse avoir de niais. En effet, il s'agit de l'ardeur propre aux jeunes. En rangeant mes anciens papiers, j'ai décidé de fouiller les caves de mes mémoires. Et voilà que ce texte en est sorti. Mais attention, les amis! On parcourt pas impunément le terrain des mémoires. Les larmes sont venues à mes yeux en lisant ces textes d'auparavant. Tant de choses vécues... Ça voulait dire on a vingt ans... On était jeunes, on était fous...



Le Bal

Eh bien, me voilà de nouveau! Ça recommence. Le salon est déjà nettoyé, rangé, éclairé. Les rangs des tables patiemment disposées des deux côtés du salon. Il faut faire le même avec les verres, les bouteilles... La vie, l’âme, le monde, rien n’est forcément en ordre mais, le salon, au moins le salon, il faut qu’il le soit. Ranger le dehors pour avoir l’impression d’avoir rangé le dedans. D’où vient qu’on doit s’y attacher ? Je sais pas. C’est tout de même une vraie responsabilité la mienne, voire un pouvoir ! Leur donner cette frêle et débile apparence d’organisation. Combien ça me coûte toutefois ! C’est à moi la réussite aussi bien que l’échec de leurs espoirs. Car au bal, comme dans la vie, il n’y a jamais de demi-mesures : c’est tout ou rien. Et moi au beau milieu. Qu’espèrent-ils de moi ? J’en ai déjà assez de remplir leurs espaces entre le souhaité et le vécu. Je n’arrive même pas à me souvenir de mon premier bal. Je peux cependant assurer à qui veut le croire que dès ce moment-là je savais déjà ce que je serais à jamais : le ménager des rêves d’autrui. Qu’est-ce qu’ils attendent, ces gens ? Qu’est-ce que j’attends, moi ? Et voilà qu’elles arrivent. Elles arrivent toujours le premier, les femmes. Au moins là, au bal – il faut le ramarquer ! Toujours la même scène. La descente des escaliers, droite, assurée. Un défilé jusqu’au fond du salon pour vérifier dans le miroir si le dehors est en ordre. Le masque retouché, l’armure étincelante, à la bataille ! Allons les dames de la Patrie ! Marchons, marchons ! Elles attendent en harmonie avec la musique, toujours la même... J’attendrai le jour et la nuit, le tourne-disque crie. Elles attendent toutes. En se regardant, en se comparant peut-être. Laquelle est la plus belle ? Si chacune pouvait deviner le dedans les unes des autres, elles en seraient sûrement toutes la même et une seule. Elles seraient moi. Moi, je serais elles. Ou peut-être eux qui viennent d’arriver, les hommes. Le même rituel : la descente, le défilé. La comédie commence. Les femmes assises aux tables. Les hommes debout au comptoir. Elles ne se font pas du tout par hasard ces positions marquées comme dans un tableau ou dans une mise en scène. Comme ça on peut remarquer ce qui est offert et demandé dans les particularités de chaque côté. C’est tout comme un jeu. Un jeu d’échanges. Un jeu d’encaissement. D’un côté la proie ; de l’autre, le chasseur. Sans qu’on sache assez bien qui joue quel rôle. De toute façon, il faut participer au jeu. Mais qui commence ? Et maintenant, que vais-je faire? On se demande sans attendre une réponse quelconque. De tout ce temps que sera ma vie ? De tout ce petit bout de temps qu’est le bal. De toute cette immensité de temps qu’est ma vie. De tous ces gens qui m’indiffèrent et qui m’attirent le regard à la fois. Mademoiselle, il y a longtemps que je vous regarde. Pourrions-nous peut-être ouvrir la danse ? Qu’en pensez-vous ? Mesdemoiselles, il y a déjà bien un demi-siècle que je vous regarde. Messieurs, il y a déjà bien un demi-siècle que je me moque de vous. En tous cas, dansons joue contre joue. J’ai déjà gardé vos rubans rouges lors de vos premiers congés payés. Je vous ai déjà servi ein Bier ou einen Wein. Je vous ai déjà cueilli des fleurs d’un printemps pas tellement calme, bien que partout on dise que tout ce dont on avait besoin c’était l’amour – tu te rappelles, Michelle ? J’ai déjà vu tant de choses dans ce salon que je ne m’excuserais pas de me placer au-dessus de tout cela, de vous tous. Vous êtes les mêmes depuis longtemps. Il ne change que votre musique et vos pas. Valse, tango, twist, bebop, biguine, blues, boston, cakewalk, charleston, fox-trot, java, jerk, marche, mambo, one-step, paso doble, rock, rumba, samba, slow fox, swing, disco – je les ai vus tous, dansés tous. Et je ne me sens pas du tout vieux quand même. C’est pas moi qui vieillis. Ce sont les rythmes qui changent. C’est le dieu du temps qui vieillit. Moi, je m’en moque. Autrement vous n’existeriez pas. C’est moi qui vous donne vos dehors, messieurs-dames. Les guerres, les vagues, les danses s’en vont. Moi, mon salon, mes boissons – votre scotch, madame – moi, je continue. Pendant que vous accomplissez votre drôle d’accouplement, j’attends. Comme d’ailleurs j’ai toujours attendu. Et j’attendrai...

(Edmilson BORRET - 1989)











Pour apprendre davantage sur le film, cliquez ici.

15.6.07

Sobre meninos, peraltagens e poesia... Manoel de Barros


Nascido em 1916, em Cuiabá, Mato Grosso, e depois de cursar Direito na capital do Rio de Janeiro, publicar alguns livros e já receber prêmios por eles, a partir de 1960 Manoel de Barros recolhe-se em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para trabalhar como fazendeiro e criador de gado. Mas não abandonou o seu fazer poético a partir daí. Ele é, sem dúvida alguma, um dos principais poetas contemporâneos do Brasil. Em sua obra, segundo a crítica Berta Waldman, "a eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca, dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada), formam um conjunto residual que é a sobra da sociedade capitalista; o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais".
Manoel de Barros, num dos seus poemas mais conhecido, nos fala do ato fazer poesia como se fosse o mesmo que carregar água em uma peneira. Para ele a poesia é uma criação que, no parco entender dos mais desavisados e menos sensíveis, não teria uma finalidade prática e objetiva, algo sem valor palpável ou mensurável. Entretanto, fazer poesia, para ele, seria também “montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos”, ou seja, seria trabalhar com uma lógica que, não raro, estaria para além do rotineiro e do previsível; seria olhar a realidade do mundo por uma ótica nem sempre objetiva. Fazer poesia é fazer “peraltagens” com as palavras, arrumá-las como quem cria um mundo particular capaz de produzir inexplicáveis efeitos em que lê. A poesia, aliás como toda a literatura, é a arte da palavra – sua essência sendo necessariamente um trabalho com a linguagem esteticamente organizada de forma a buscar a expressão e a comunicação universais.



O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos

(Manoel de Barros)
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